arquipélago, destaque, teatro

da negatividade de heterotopias queerfuturistas

crítica de FRACASSADAS BR, da Coletiva de Teatro, com realização do Instituto Brasileiro de Teatro. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

“Que tipos de recompensas o fracasso pode nos oferecer? Talvez o mais óbvio é que fracasso permite-nos escapar às normas punitivas que disciplinam o comportamento e administram o desenvolvimento humano com o objetivo de nos resgatar de uma infância indisciplinada, conduzindo-nos a uma fase adulta controlada e previsível. O fracasso preserva um pouco da extraordinária anarquia da infância e perturba os limites supostamente imaculados entre adultos e crianças, ganhadores e perdedores. E ainda que, indubitavelmente, o fracasso venha acompanhado de uma horda de emoções negativas, tais como decepção, desilusão e desespero, ele também proporciona a oportunidade de usar essas emoções negativas para espetar e fazer furos na positividade tóxica da vida contemporânea.” (Jack Halberstam, A arte queer do fracasso)

Em dado momento de FRACASSADAS BR, uma personagem diz: “somos nós contra a máquina de ficção”. Não há maior ficção do que as expectativas em torno do que é sucesso na sociedade contemporânea. Jack Halberstam, autor de A arte queer do fracasso, inspiração da Coletiva de Teatro para a encenação, defende que “sucesso, em uma sociedade heteronormativa e capitalista equipara-se facilmente a formas específicas de maturidade reprodutiva combinada com acúmulo de riqueza”.

No enredo, as engrenagens desta incansável máquina operam de modo que o sol passa a estar a cada dia por mais tempo no céu. Esgotando-se a noite, finda o tempo do descanso e a exploração agora pode vir a ser ininterrupta. Além disso, “as habitantes da noite se tornam monstras privadas de casa e de família e se refugiam numa boate antiga”, afirma a sinopse de FRACASSADAS BR. A escolha da boate não é por acaso: na dramaturgia e direção de Ave Terrena e Ymoirá Micall, o espaço da cena se torna runway de um insistente ball – que é, em sua natureza sociocultural, território de resistência.

A cena ballroom do modo que conhecemos hoje, com suas Houses e categorias diversas, nasce no início dos anos 1970 como uma subcultura LGBTQIAPN+, essencialmente trans, preta e latina, a partir da indignação de Crystal LaBeija, fundadora da House of LaBeija, diante do racismo que impedia competidoras não-brancas de vencerem os balls que existiam até então. O documentário Paris is Burning, de 1990, é uma excelente referência para conhecer a cena pioneira.



FRACASSADAS BR foi contemplada pela Convocatória Piloto do iBT (Instituto Brasileiro de Teatro), de modo que sua temporada de estreia se deu na sede da instituição – auspiciosamente, no espaço onde antes havia a Lions, boate conhecida na noite paulistana. Após apresentações no Centro Cultural Arte em Construção, sede do Instituto Pombas Urbanas, na Cidade Tiradentes, cumpre temporada no mês de outubro de 2023 no TUSP Butantã, dentro da cidade universitária.

Independente dos usos anteriormente feitos dos lugares onde se apresenta, seja no centro, na periferia ou no campus de uma universidade pública, FRACASSADAS BR instaura algo de outro-espaço e de outro-tempo no momento em que abre as portas para o público. O fracasso sustentado pela teoria de Halberstam e pelas dramaturgias textuais e cênicas de Terrena e Micall se estabelece como uma possibilidade de uma contrateatralidade contrahegemônica, amparada também por uma perspectiva queerfuturista (como nomeou Fernando Pivotto em seu texto sobre a obra no Tudo, menos uma crítica) em sua encenação. O trabalho se desenvolve em um sucessivo não-se-saber, em uma localização difusa entre a lógica da ficção científica e um belo caos, ao mesmo tempo em que se verifica que há ali uma contundência em torno do que se formaliza enquanto discurso.

O segurança da boate, a musa dançarina, a catadora, a entregadora de aplicativos, a vendedora de bebidas: o prólogo de FRACASSADAS BR nos dá a ver quem são as personagens que virão a enfrentar a “máquina de ficção” que é a realidade distópica da obra. Ali, exploração e precarização do trabalho andam lado a lado com a marginalização de existências dissidentes. A partir do momento em que o público ocupa seus lugares – formando, como corredor no centro do espaço, uma verdadeira runway – o que se sucederá na obra é um esfacelamento daquelas identidades não enquanto assimilação, mas pelo contrário; como assunção da necessidade de “acolher uma negatividade política verdadeira, que dessa vez prometa falhar, bagunçar, foder, ser exagerada, rebelde e mal humorada, gerar ressentimento, rebater, falar o que se pensa, perturbar, assassinar, chocar e aniquilar” a fim de efetivar uma “virada antissocial na teoria queer”, conforme Halberstam propõe; um espaço para a autodestruição (“o contrário de narcisismo”) e para outras destruições.

O esforço empenhado por FRACASSADAS BR em sua composição, nessa espécie de abandono da humanidade tal qual concebida pela heterocisnormatividade ocidental, é também eco poderoso da Ética Bixa de Paco Vidarte: “vale tudo para romper o bloqueio racional do dizível, do pensável, do digno de ser colocado em circulação, do politicamente possível: isso é a censura racional patriarcal, heterossexista, transfóbica e homofóbica do respeitável, do colocável, do recebível, do escrevível, do publicável. Pensada justamente para evitar o assalto do irrecebível, do ilegível, do impublicável, do impensável, do indigno, do incontrolável, do irracional.”

Um índice de indeterminação seguirá toda a narrativa ficcional, desde as coreografias coletivas de uma dança-teatro singular até os desenvolvimentos do enredo. No processo de tornarem-se os monstros que vos falam, para citar Paul B. Preciado, o queerfuturismo de FRACASSADAS BR brinca com a própria teatralidade para, na irrupção do real, reiterar o fato de sua realização ser histórica pela eminência queer e trans espalhada por toda a sua equipe: de fato, raríssimas vezes – o que é absurdo! – a cena teatral paulistana pode ver três artistas transmasculinos dividindo o palco, como acontece em determinado momento e é destacado por Jota Guerreiro Vilar, ao lado de Bibi de Bibi e Felipe Fly. Aliás, a apresentação da ficha técnica, tendo Vilar como chanter, simultaneamente efetiva a cultura ballroom como centro da obra e também aponta para um desejo de horizontalidade ao incluir todas aquelas presenças, partícipes do processo e de outros arranjos que englobam o fazer artístico, no momento do ato teatral.

Este outro espaço-tempo instaurado pela festa-peça carrega algo do que Michel Foucault chamou de heterotopias, “espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis” (em Outros Espaços). São lugares que “solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham” (em As palavras e as coisas). 

Enquanto o sol aos poucos vai tomando conta dessa claridade sem fim, essas FRACASSADAS BR fazem de uma boate seu refúgio, tornando-a um território que grita pelo direito à opacidade proporcionada pela sombra da noite. É a partir de um enfrentamento que se dá pela recusa da transparência do dia que a encenação faz de si um tratado da negatividade de heterotopias queerfuturistas, onde a criação de seu espaço de ilusão “denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real” (Foucault em Outros Espaços). E assim o disco ball que pende no teto e tudo reflete é em si a luminosidade ocupando a totalidade da vida mas é também o que espalha fragmentos de céus noturnos estrelados. Os fachos de luz que escapam ao globo espelhado curiosamente projetam no piso da sala do TUSP Butantã o contorno do que se pode ver como três luas minguantes e lá está então algo de místico, ainda que incidental.

Foucault também aponta que as heterotopias se ligam a recortes do tempo – que chama, por simetria, de heterocronias – e que elas se põem “a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional”. A festa é uma ruptura, assim como as balls, assim como o teatro. É nessa justaposição de possibilidades de manifestação ético-político-artísticas que FRACASSADAS BR se desenvolve: combater a máquina de ficção é constituir-se de uma construção de realidade ainda mais ficcional, assumindo o fracasso como espécie de vitória diante de paradigmas normativos de sucesso.

Desse modo, há também a recusa de uma pretensa progressão linear e única na direção de soluções, seja no sentido de reconciliações ou revoluções possíveis. Não há em FRACASSADAS BR a experiência da passagem do tempo como seta que aponta do passado rumo ao futuro. Na ação final em que convida o público a participar, o espetáculo reverbera mais uma vez Foucault: um momento em que o mundo se experimenta “como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama”. FRACASSADAS BR faz com que o céu caia e o sol esteja ao alcance de todes para produzir, na negatividade de sua heterotopia queerfuturista, encruzilhadas coletivas; uma recusa da normatividade como possibilidade de habitar um não-saber do tanto que há nas margens da noite.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica
FRACASSADAS BR

Atuação: Barbara Vitoria, Lucas Madureira, Jota Guerreiro Vilar, Rand Barbosa e Wini Bueno Lippi
Direção e dramaturgia: Ave Terrena e Ymoirá Micall
Direção de movimento: Zaila
Direção musical: Malka Julieta
Operação de som e Assistente de sonoplastia: Bibi de Bibi
Iluminação e Operação de luz: Felipe Fly
Cenografia: Su Martins
Figurino: Kyra Reis
Assistência de Figurino: Flora Babylon
Costureiro: Luã Ayo Ayana
Produção e Confecção de Adereços: Caiô Akotê, Kamala Omobirin e Luccas Caetano
Preparação vocal: Palomaris
Instalação de vídeo, Captação e Montagem: Cabaça Realiza
Fotos do processo: Anali Dupré
Assistente de iluminação: Léo Sousa
Textos: criação colaborativa
Participações especiais: Andrei Roque | Beatriz Gonçalves | Dama Blackout | Deusa de Souza | Draken Maciel | Elloy Queiroz | Emanuelli Silva | Gael Mariano | Gabrielly Pizatto | Gustavo Barbosa | Larissa Nascimento | Leonardo Bartolomeu | Lucca Dantas | Luka Aron | Pedro Henrique Dias | Riven Oliveira | Scarlet Lee | Victoria Alves | Wiliam Fenício | Yandra Rodrigues
Parceria com as Casas de Acolhida Casa João Nery e Casa Florescer
Projeto gráfico: Lusca
Fotografia: José de Holanda
Captação de vídeo: Bruno Favery
Edição de vídeo: Iago Augusto
Coordenação de comunicação: Luiz Fernando Ferreira
Assistência de comunicação: Amanda Gomes e Vinícius Silva
Mídia: Clayton Rodrigues
Site: Junior Zinni
Idealização: Barbara Victoria, Lucas Madureira, Rand Barbosa e Victoria Lins
Produção: Corpo Rastreado - Gabs Ambròzia e Julia Tavares
Produção Executiva: A Coletiva de Teatro
Realização: Instituto Brasileiro de Teatro

EQUIPE iBT
Conselho: Elisa Volpatto, Guto Portugal, José Aragão, Oliver Tibeau e Samya Pascotto.
Diretor Executivo: Oliver Tibeau
Coordenador de Projetos: Agnaldo Moreno
Coordenadora de Relações Institucionais: Thalita Trevisani
Analista de Comunicação: Luiz Fernando Ferreira
Assistentes de Comunicação: Amanda Gomes e Vinícius Silva
Auxiliar Administrativa: Cristiana Alipio
Analista Financeira: Nayara Gimenes