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réquiem para uma gorda

crítica de 116 gramas – peça para emagrecer, idealizado por Letícia Rodrigues. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Na porta do espaço, uma balança convida todo o público que entra a se pesar e uma pequena garrafa de Pepsi é entregue com um cartão de visitas de 116 gramas – peça para emagrecer. Nele, um QR Code; como tem sido comum nas obras pós-pandêmicas, se espera que dali se acesse o programa da obra. Mas o espetáculo idealizado, escrito e atuado por Letícia Rodrigues, que codirige o trabalho ao lado de João Pedro Ribeiro, foge, desde aí, das expectativas. (E para descobrir o convite especial que espera quem direciona a câmera do celular para o código, só assistindo).

A sinopse apresenta a personagem do solo: A Gorda. Um solo de uma mulher gorda, cuja personagem se chama gorda, e emagrecer está no título. Desde a divulgação da temporada, já houve certo burburinho em torno da temática do trabalho. Na publicação do perfil do Sesc Av. Paulista, que recebe a temporada de estreia, por exemplo, comentários apontaram para um medo de se tratar de “romantização da obesidade“. É interessante apontar para uma celeuma cultural cada vez mais frequente nos tempos que correm: o rechaço prévio. Um ser-contra sem-saber, odiar-sem-ver; enfim: geralmente, elegem-se espantalhos que se tornam simultaneamente ameaças e alvos. 



A ideia da aceitação da própria imagem corporal se enquadra neste embate, que geralmente ignora toda uma gama de complexidades envolvidas não apenas na subjetividade moldada pela autoimagem como também nas próprias estruturas – físicas e institucionais – da sociedade. Assim, não é novidade que há uma estranha rixa entre movimentos body positive e profissionais de saúde, e seria mesmo de se esperar esse tipo de “preocupação” em torno de uma obra protagonizada por uma gorda – mesmo que carregue no subtítulo o que pode ser lido como uma súplica: “peça para emagrecer” é polissêmico, e sua primeira palavra talvez seja mesmo advinda do verbo pedir.

Peça, do verbo pedir. Peça, parte de um quebra-cabeça. Peça, espetáculo teatral. A perspectiva tríplice do subtítulo foi apontada pelo performer e pesquisador Renan Marcondes quando da leitura dramática de 116 gramas dentro do Ciclo de Leituras Públicas do TUSP e é uma boa chave de entrada para a leitura da encenação de Rodrigues e Ribeiro. Lá estão as três possibilidades de peça: quando fala da infância e juventude, desejos de emagrecimento se traduzem em pedidos e desejos que dialogam com referências da cultura pop; nos quadros-cenas que se estabelecem como tentativas de dizer-fazer, peças se ordenam em encaixes estranhos; por fim, o espetáculo e o alinhamento entre o que talvez seja sua razão de ser e a linguagem escolhida.

Na costura dramatúrgica de Rodrigues, pode-se vislumbrar em alguns momentos a construção de um biodrama, nome de um ciclo de trabalhos da artista argentina Vivi Tellas que se tornou espécie de sinônimo de uma forma de se levar biografias para a cena. Poderia se falar também em autoficção, mas, aqui seguindo a própria Tellas, “penso que tudo o que está no palco é ficção” (dito em entrevista realizada por Janaina Leite). Para além de uma verdade (ou de uma invenção) em torno daquilo vivido por Rodrigues em sua vida e todas as possibilidades de formalização destes ocorridos, 116 gramas, como que em sua totalidade pensado para sua função – ou seja, uma peça para emagrecer – pode ser visto então como um programa performativo teatralizado. A encenação é, vista desse modo, atividade física e gasto calórico.

Após se apresentar e apresentar sua proposta, Rodrigues fica nua e se pesa. Ela fará o mesmo no final – porém, o fato de estar vestida faz com que o público não tenha real acesso à efetividade dessa mobilização. A ausência destes 116 gramas pairam como mistério para quem testemunhou seus esforços. Pois talvez não se trate mesmo deles, nem de toda essa metade de si, em quilogramas, que ela deve deixar de ser. 116 gramas – peça para emagrecer é, em seu quadrado, em suas teorias da conspiração, em suas referências da tragédia e da música pop, um semear de metáforas que partem da inteireza da artista. 

A obesidade e o emagrecimento são o chão onde se pisa e os começos de caminhos a trilhar; é na performatividade do corpo nu de uma mulher gorda que dança, que diz, que luta, que um tanto se desvela quase que em revista. Cabem nestas 116 gramas então toda a contradição que habita as distâncias entre o que se faz de si e o que se espera que seja feito de si. Na cena-síntese do trabalho, Rodrigues dança-golpeia um cisne. A ave é a do balé, mas torna-se de algum modo também aquela do fígado – o próprio, adoecido para o foie gras, e o eviscerado cotidianamente de Prometeu. Neste fluxo talvez caótico entre apresentadora de programa de auditório e artífice de tragédia grega, Rodrigues faz de 116 gramas piso-pouso para seu balé. A morte do Cisne é o réquiem para uma gorda a quem nunca foi permitido descansar.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica
116 gramas - peça para emagrecer

Idealização, dramaturgia e atuação | Letícia Rodrigues
Direção | João Pedro Ribeiro e Letícia Rodrigues
Direção de arte | Eliseu Weide
Direção de movimento e coreografia | Luaa Gabanini
Direção musical | Natália Nery
Composição e arranjo de trilha sonora | Lana Scott e Natália Nery
Gravação e mixagem | Lana Scott Técnica e operação de som | Lana Scott 
Direção e edição audiovisual | Lana Scott 
Motion graphics | Pablo Vieira
Mapping e operação de vídeo | Lana Scott 
Desenho de luz | Camille Laurent 
Operação de luz | Felipe Stucchi
Coordenação de produção | Leo Birche
Produção | Jéssyca Rianho
Planejamento estratégico de comunicação | Thiago Dias
Comunicação visual e fotografia | Maria Luiza Graner
Assessoria de Imprensa | Pombo Correio