teatro

dos caminhos da memória construídos por ausências

crítica de “Galo Índio”, de Rodolfo Amorim e Antônio Januzelli (Janô)

foto de Jonatas Marques

“Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para. (…) Ele continua intacto, mas se recusa a pulsar, atividade para a qual toda a sua estrutura foi construída. É um cenário desolador e estranho, como uma fábrica que trabalhadores tivessem sido obrigados a evacuar às pressas, os veículos parados a projetar a luz amarela dos faróis na escuridão da floresta, os galpões abandonados, os vagões carregados sobre os trilhos, um atrás do outro, estacionados na encosta da montanha.”

O trecho acima, retirado do começo da monumental série autoficcional “Minha Luta” (2009-11), do autor norueguês Karl Ove Knausgard, traz o início de sua reflexão acerca da morte. Mais a frente, conforme o título do volume diz (“A morte do pai”), saberemos que esta é motivada pela perda de seu pai, com quem manteve uma conturbada relação – que será explorada com brutal honestidade ao longo dos seis volumes da obra (cinco dos quais traduzidos para o português).

A narrativa que borra as fronteiras entre ficção e biografia, navegando afetivamente na retomada de fatos e compreendendo suas reverberações, não é novidade na literatura. E tem sido cada vez mais comum verificar no teatro esse jogo com o depoimento pessoal; a ideia de contar a própria história, narrar, performar, atuar a si mesmo.

Tal qual Knausgard desenha, em sua detalhada escrita (e constantes digressões), um retrato de quem foi frente aos acontecimentos de sua vida – e o que veio a ser, depois de tudo isso – entre descrições concretas de dias passados e a construção de imagens metafóricas, o ator Rodolfo Amorim concebe, escreve e atua em “Galo Índio”, monólogo com direção de Antônio Januzelli, o Janô.

A súbita morte do pai de Amorim ainda em sua infância é o principal disparador da obra. Neste sentido, longe das paragens norueguesas, um dos gatilhos para o trabalho do ator foi o livro “A invenção da solidão” do norte-americano Paul Auster. Na primeira parte, “Retrato de um homem invisível”, o autor busca retratar seu pai enquanto este ainda habita sua memória.

Os anos passados desde o início da pesquisa de Amorim fazem com que “Galo Índio” apresente-se como um espetáculo de extrema verticalidade sem perder um caráter autêntico e sintético. Neste sentido, as escolhas de Janô, cuja direção opta por uma encenação sem recursos excessivos e por uma grande precisão nos movimentos faz emergir a potência dramatúrgica a partir da presença do intérprete, abrilhantada por sua limpeza gestual.

São diversos os tons da narrativa apresentada por Amorim. Se no início uma breve introdução contextualiza de forma contundente a temática da obra, pouco depois a leveza da lida com a morte na infância ganha cores cortazarianas. Ainda que sem as nuances fantásticas – para além da própria retomada de lembranças puras e doces, é claro! – não é difícil se lembrar do “Comportamento em velórios”, presente nas “Estranhas ocupações” propostas por Julio Cortázar em “Histórias de Cronópios e Famas”. Em pouco tempo, porém, a inocência é substituída pelo primeiro “memento mori” daquelas crianças.

Cada momento da trajetória de “Galo Índio” parece abrir em cada espectador um pequeno caminho possível por entre as curvas e labirintos da memória, buscando na própria história suas identificações e reflexões. Nos objetos apresentados na cena, a metáfora da travessia aos poucos se estabelece como concretude do percurso entre fatos e afetos. Da bolacha maizena à água e sal quebrada; o súbito da perda incompreensível e a tentativa de entender o tempo que a ausência tem.

Na interessante escolha de revelar, ao longo do espetáculo, dados do processo, Amorim compartilha suas tentativas de lidar com os momentos em que se viu às voltas com as contas da memória. Confrontando o documento aos limites da recordação – e sem negar a invenção presente a cada instante em que se rememora algo – compromete-se com sua própria formação da identidade. Frente a um abraço visto de fora que talvez nunca tenha dado, mais importante é a sensação que a lembrança traz.

Assim, “Galo Índio” é sobre a perda de um pai; mas é também sobre um filho – que é hoje mais velho do que o pai jamais será – e sobre um pai de um filho. Do apelido de infância à percepção de que “se um Rodolfo podia ser mal, eu também poderia – era questão de tempo”, o espetáculo concretiza-se como uma organização de Amorim sobre quem ele se tornou a partir não apenas de um fato definidor, mas fundamentalmente a partir de como ele construiu as próprias memórias acerca do que lhe aconteceu.

No trânsito entre o comezinho e as grandes percepções, a obra estabelece um contato direto e afetivo com o público. Neste sentido, o que permeia a experiência estética é a beleza de perceber alguém se revisitando para contar a sua história. Há uma grande potência no material pessoal quando este, de maneira honesta e despretensiosa, é trabalhado artisticamente. Assim, o que é suscitado como reflexão é que, em torno dos acontecimentos que nos definem, a construção de nossas ausências e as memórias que criamos para sobrepô-las talvez digam mais sobre quem somos do que os fatos que vivenciamos.