orgulho, teatro

por um sagrado dos corpos que re-existem

crítica de “Cora Primavera”, da Santa Cia. (à época, cia. nada pensAtivo)

foto de Brendo Trolesi

Do caos à criação; Adão, Eva, Dionísio, Afrodite, Deméter, Perséfone/Cora – em seu lado mais primaveril – e um Frei Caneca duplamente executado. No trabalho da Companhia Nada Pensativo, mitologias dialogam em uma grande evocação da liberdade. “Cora Primavera” bebe na fonte do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade e se insere na linhagem do teatro como rito de celebração.

Ao passo que é impossível não notar semelhanças com o histórico trabalho de Zé Celso e o Teatro Oficina, a companhia faz uso das tradições para buscar a própria identidade. Formada majoritariamente por jovens estudantes da UNESP, a Nada Pensativo leva a uma praça o seu espetáculo-rito-manifesto, como nomeado no programa.

Na dramaturgia assinada por Rafael Abrahão – também diretor – a narrativa busca costurar de forma panorâmica – e por vezes, não tão fácil de acompanhar – diversos tempos, figuras e mitologias. Partindo de uma quase sobreposição entre a narrativa criacionista bíblica e as evocações libertárias do grupo, é a fricção do sagrado com o terreno que permeia toda a obra.

Não se trata, porém, de uma discussão metafísica. Questões políticas são abordadas diretamente a partir desta relação essencialmente cristã entre o dogma e o pecado. As múltiplas possibilidades livres de existência são postas em jogo em diversos níveis da encenação. Concretamente, a própria ideia da rua como lugar de convívio (versus local de passagem) é evidenciada na escolha pela praça como palco. “Cora Primavera”, apresentado na rua durante este momento histórico, encampa uma disputa do campo simbólico – tão em xeque nestes tempos – em nome da liberdade artística e do encontro.

Ainda no sentido de um espetáculo de rua, a presença constante de músicas é fundamental para o engajamento do público com a obra. Sob a direção musical de Claudio Mascaro e Juliana Gotz, uma numerosa banda toca composições autorais, que se integram organicamente à dramaturgia; além de canções conhecidas, utilizadas muitas vezes como fonte de comentários críticos.

Na ágora cinza – ainda que cercada de árvores – um numeroso coro colore a praça (com o belo figurino de Careaux Calsone e Saia Sem Gênero). Por vezes, sua mera presença ali, viva e livre, serve de lembrete de que sim, a primavera há de chegar. No entanto, pode ser notado certo desbalanço nas interpretações. Dentro da concepção de um rito-manifesto de celebração, tal percepção não se dá na valoração técnica de um intérprete, mas talvez em seu engajamento enquanto atuador. A energia e o ímpeto – estes sempre presentes – dos jovens, porém, faz com que isso seja mero detalhe frente ao que se apresenta.

A relação construída entre coro e público é harmônica, sendo propostos diferentes níveis de interação. Em um belo e potente momento, espectadoras mulheres são convidadas para uma grande roda. Uma evocação/oração para que possam florescer. Mulheres, aqui, são “de todos os cantos, cores e formas: com útero, com pinto, sem peito, com pelos.”

A personagem-título, Cora, é interpretada por Renata Bastos, atriz trans. Assim, utilizando um termo recorrente nos debates acerca da representatividade trans nos palcos, a Nada Pensativo se inclui, talvez, na ideia de que hoje não seja a antropofagia, mas sim a transpofagia que nos una. Essa divindade é mais conhecida como Perséfone; filha de Zeus e Deméter, que, raptada por Hades, o desposa e torna-se rainha de seu reino.

Após um acordo entre Deméter e Hades, ela passa a viver metade do ano em cada morada. Sua dupla existência – a eterna adolescente Cora, bela, livre, flor, no Olimpo; e Perséfone, rainha do submundo – pode ser lida no espetáculo a partir de diversos ângulos. A obra escolhe transcriar o mito a partir da alegria de Deméter junto à sua filha.

São os debates sobre identidade de gênero e orientação sexual que se colocam, dentro da perspectiva de disputa de um corpo entre pecado e liberdade, como centrais no discurso da encenação.

Frei Caneca, interpretado por Demétrio Abrahão, surge primeiro como figura histórica. Na peça, seu lado religioso se apresenta; mas o político e rebelde não é esquecido: “quem bebe da minha ‘caneca’ tem sede de liberdade!”. Alguns quarteirões distantes de onde “Cora Primavera” ocorre está a rua que leva seu nome. Evocado em nossos tempos, a sede de liberdade de Frei Caneca não mais comunga vinho, mas catuaba.

Assim, a obra transpofagiza a mitologia grega e ressignifica um ícone histórico do catolicismo a partir de sua descoberta enquanto homossexual. Dionísio e Deméter acompanham todos os acontecimentos com certo entusiasmo. Afinal, nada mais justo do que a divindade da festa, do vinho e do teatro fazer companhia à deusa da fertilidade e das estações do ano, mãe da primavera.

A percepção – e, até, a defesa – do sagrado enquanto possível em nossa existência terrena sem abrir mão dos prazeres da carne se relaciona com a representação destas deidades. Muito além de compreensões dogmáticas do que é o divino (e nossa relação com ele), a obra busca efetivar uma perspectiva terrena da transcendência, que não se descola do corpo que somos/habitamos.

O espetáculo realiza críticas diretas às instituições religiosas – sobretudo católicas e, mais assertivamente, evangélicas. “Cora Primavera” leva a cena a segunda execução de Frei Caneca e a entrega, pela mão de pastores, de Cora à Satanás – não só uma possibilidade contemporânea de Hades, mas fundamentalmente um espantalho contra o qual tanto ódio se prega.

Não apenas no momento onde os pastores estão em cena – onde a dramaturgia deixa de ser metafórica e discursos de pessoas públicas são facilmente identificados em sua incorporação na fala dos líderes evangélicos – mas também contaminados pelo clima polarizado, a encenação muitas vezes faz referências diretas ao momento político do país.

É completamente compreensível. Porém, há certo risco de diminuir um discurso que parece ambicionar mais do que apenas responder à uma mentalidade de nossos tempos. Manter a gira aberta, cantar quando o grito não basta, recontar a história e estórias com jovens olhos dos que vivem hoje é o que segue nutrindo as sementes da primavera vindoura.