arquipélago, reflexões, teatro

dois lances sobre a fantasia

crítica a partir de “Stalking” e “Vingança Voyeur”. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

“Arte é uma coisa imprevisível, é descoberta, é uma invenção da vida. E quem diz que fazer poesia é um sofrimento está mentindo: é bom, mesmo quando se escreve sobre uma coisa sofrida. A poesia transfigura as coisas, mesmo quando você está no abismo. A arte existe porque a vida não basta.” (Ferreira Gullar)

Na mesma entrevista que Ferreira Gullar afirmou que “a arte existe porque a vida não basta”, o poeta criticou a vanguarda, que para ele “é que nem o terrorismo”. Então, é possível que o próprio autor das frases que abrem este texto se coloque em posição de rechaço às obras aqui comentadas. São diversos os questionamentos em torno dos usos do real na cena teatral contemporânea; especialmente nos casos que dizem respeito à narrativas autobiográficas ou autoficcionais. Pois “Stalking”, a partir da perseguição sofrida por Livia Vilela, se enquadra no primeiro caso, enquanto “Vingança Voyeur”, escrita a partir de estupro sofrido por Julia Terron (Victor Moretti também assina a dramaturgia), pode ser enquadrado pela ótica do segundo.

Importante apontar desde já que se tratam de materiais radicalmente distintos no que diz respeito às formas cênicas. “Stalking”, codirigido por Elisa Volpatto e Rita Grillo, se anuncia como um “conto de terror documental”; tanto encenação quanto a dramaturgia de Paulo Salvetti, em cena com Vilela, fazem uso de expedientes comuns à linguagem do teatro documentário, ao mesmo tempo em que estilizam interpretações e jogam com figuras arquetípicas – dos contos de fada e da sociedade contemporânea. 

“Vingança Voyeur” é mais um passo adiante na pesquisa continuada de Pedro Granato diante do mutável Núcleo Pequeno Ato, onde coletividades distintas se formam obra após obra, sempre na soma de temáticas caras aos tempos que correm e encenações imersivas, considerando a dinâmica relacional em suas diversas possibilidades. Desde uma peça-festa, como “Fortes Batidas” (2015), passando por uma arena da polarização em 11 SELVAGENS(2017) para chegar no culto de uma sociedade teocrática de Distopia Brasil(2019). Depois, no ambiente online, o público tornou-se detetive em Caso Cabaré Privê(2020) e jogador em Descontrole Público(2021).



De todo modo, parece não apenas possível como frutífero analisar as obras supracitadas em conjunto para observar um fenômeno que vem se espalhando nas cenas performativas: nas narrativas de si, com maior ou menor distanciamento e ficcionalização, há uma prática recorrente de lançar mão de dispositivos que partem da realidade, são enquadrados por dramaturgias e escrituras cênicas da ordem da ficção e dialogam diretamente com a fantasia.

Assim, a ideia de que “a arte existe porque a vida não basta” de Gullar se encaixa como uma luva nesses casos. Não apenas no lugar do desejo e da intencionalidade de artistas que buscam nas formas teatrais mecanismos de elaboração de vivências e traumas, mas na percepção de que não “só” a vida como um todo não baste, mas especialmente a realidade e suas maneiras de lidar com violências de ordens distintas, das mais sutis aos casos mais extremos.

“Vingança Voyeur” e “Stalking” são obras que nascem como reações de mulheres vítimas de violências sexistas – estupro e perseguição – que, como tantas e tantas, se vêem revitimizadas quando das denúncias em delegacias, processos jurídicos e até mesmo no momento de contar suas histórias para parentes e amigos. 

No caso da obra de Vilela, a dramaturgia de Salvetti e a encenação de Volpatto e Grillo se debruça quase em sua totalidade no ato de compartilhamento de todos os meandros da perseguição, desde o momento em que a atriz conhece seu stalker até os andamentos processuais e o todo – inoperante – que circunda esse acontecimento nevrálgico na vida de uma mulher. Salvetti, em cena, é o Professor X, o criminoso, mas é também representações de chefes, delegados, esquerdomachos, e de uma miríade de de figuras que poderiam ajudar e que, por motivos estruturais ou pessoais, acabam por se tornarem mais empecilhos na lida com a situação perigosa e aviltante.

Em “Vingança Voyeur”, o que se formaliza na cena é um depois possível; um ato que, como o nome da peça carrega, de vingança, pura e simples. Na dramaturgia que chega aos espectadores-cúmplices por fones de ouvido, desde o momento da obra que acontece no bar Salve Jorge até seus finalmentes na Galeria Olido, aos poucos se compreende o contexto daquilo que aconteceu antes, que é quase como a faísca que gera a combustão deste imenso incêndio.

Assim, os espetáculos trabalham com perspectivas diferentes em torno do que se conta, do que se vê, de como se engaja o espectador. “Stalking” é um true crime cênico, construindo atmosferas de terror para que a fruição se dê por essa chave, focando no pavor da vítima diante dos acontecimentos reais que a assolaram por anos e anos. “Vingança Voyeur” investe na imersão, na cumplicidade, intensificado pelo dispositivo proposto por Granato que faz do público voyeur deste ato de vingança (é indesviável se repetir, visto que o nome do trabalho carrega sua síntese).

Observando pontos de partida e de chegada, deixando um pouco de lado as imensas diferenças entre as duas peças, nota-se que ambas nascem da realidade e dos desejos de elaborá-la artisticamente; e ambas terminam absolutamente mergulhadas em fantasias de violência. Ainda que a frase creditada a Malcolm X lembre que não se deve confundir a reação do oprimido com a violência do opressor, nestes casos o que se vê é violento, sim, beirando o sadismo.

Não há julgamento em afirmar isso; se em “Vingança Voyeur” não vemos na cena a realidade da revitimização diante da morosidade dos sistemas de segurança pública, desde o amparo imediato até medidas de punição e reparação, em “Stalking” o caminho até a convocação da fantasia para a elaboração do trauma é visível. Em ambas, é difícil argumentar em favor de um moralismo que rejeite as fantasias finais. Elas são, de algum modo, justificadas. E talvez necessárias.

Entre a emulação do real em sua forma imersiva e a apresentação direta dele na cena através do documento, em comum está a possibilidade de trazer a realidade para a arte e, compreendendo que ela não basta, propor enquadramentos ficcionais que permitam encará-la, ressignificá-la, até chegar a um mergulho completo na fantasia. Pois mesmo que a vida não baste, ela está aí para ser vivida em plenitude – ainda que para isso sejam necessários escapes à imaginação, fantasias de vingança, num ato de restituição de subjetividades roubadas por atos simultaneamente íntimos e sociais, que talvez lancem ao futuro seu próprio desejo de não mais precisarem existir.

logo do projeto arquipélago

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

fichas técnicas

STALKING
Atuação: Livia Vilela e Paulo Salvetti
Codireção: Elisa Volpatto e Rita Grillo
Assistência de Direção: Jackeline Stefanski Bernardes
Dramaturgia: Paulo Salvetti
Trilha Sonora Original: Malka Julieta
Iluminação: Gabriele Souza
Direção de Arte: Beatriz Barros
Provocação: Janaína Leite
Fotos: Betânia Dutra, Anna Bueno e Guilherme Radell
Identidade Visual: Orú Florydo
Operação de Som: Jess Silva
Operação de Luz: Sancler Pantano
Edição Vídeo Benfeitoria: Igor Luís
Produção: Corpo Rastreado - Gabs Ambròzia
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto Comunicação | Márcia Marques

VINGANÇA VOYEUR
Direção e concepcão: Pedro Granato. 
Dramaturgia: Julia Terron e Victor Moretti. 
Assistência de Direção: Carolina Romano. 
Atores: Ana Herman, Antonio Sedeh, Camila Johann, Julia Terron, Riggo Oliveira, Milena Pessoa, Michelle Braz, Lucival Almeida, Gabriela Maia, Tallis Oliveira e Rommaní Carvalho Lima. 
Fotos: Gabriela Rocha. 
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli. 
Design gráfico: Carolina Romano. 
Técnico de Som: Felipe Aidar. 
Técnico de Luz: Ariel Rodrigues. 
Cenotécnicos: Diego Dac e Roberto Tomasim. 
Produção Executiva: Carolina Henriques e Julia Terron. 
Direção de Produção: Jessica Rodrigues. 
Produção e Realização: Pequeno Ato e Contorno Produções.