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flechas e feitiços contracoloniais

crítica de “RESET BRASIL”, do Coletivo Estopô Balaio. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Quando as portas do trem da CPTM se fecham na estação Brás e ele parte, não é uma viagem que começa. É fuga, e fuga é travessia; é ir além do que circunscreve o existente. É, além de tática de sobrevivência, ato de imaginação radical: assunção de que o que é não está dado, não é imutável, não é permanente. Nem sempre o destino da fuga é certo; no caso de “RESET BRASIL”, do Coletivo Estopô Balaio, sabemos onde será a chegada – ou, melhor, chegança: no extremo leste da capital paulista, o pouso é São Miguel de Ururay e seus tantos tempos sobrepostos e soterrados, prenhes de retomadas.

Para começar, pensar no antes. Em maio de 1562, João Ramalho tornou-se chefe da defesa militar da vila de São Paulo dos Campos de Piratininga. O português, que não se sabe se chegou nestas terras como colono, náufrago ou degredado, além dos laços familiares estabelecidos com o líder tupiniquim Tibiriçá, de quem foi genro, mantinha também laços “econômicos” com indígenas, sendo traficante de escravizados. No início visto com certo desprezo pelos jesuítas, acabou por se tornar figura importante na história do desenvolvimento regional da colônia. Ramalho havia chegado à vila que se tornaria a cidade de São Paulo dois anos antes, junto de uma série de colonos que viviam em Santo André da Borda do Campo. A mudança era reflexo da preocupação crescente com a “hostilidade” das populações indígenas da região.

Se o estado de São Paulo celebra a data de 9 de julho de 1932, o município de mesmo nome deveria lembrar-se com mais frequência de outro 9 de julho – o de 1562. Naquele dia, liderados por Jaguaranho – sobrinho de Tibiriçá e filho de Piquerobi, líder da aldeia de Ururay – uma coligação de nações indígenas (guarulhos, guaianás e carijós) ataca a vila no episódio que entrou para a história como o Cerco de Piratininga, um movimento de resistência histórica contra a catequização e a escravização de povos nativos.

Durante o cerco, Tibiriçá matou seu irmão, Piquerobi, e seu sobrinho, Jaguaranho. No programa de “RESET BRASIL”, uma profecia para os tempos presentes: “Perdemos agora em 1562, mas não perderemos em 2023”. Pensar no antes, pensar no agora. Quando o trem começa seu movimento sobre os trilhos, fones de ouvido entregues ao público transmitem vozes de intérpretes que compartilham o mesmo vagão e também muitas outras, de crianças e anciãs. O transporte torna-se cobra coral, e aquela coletividade formada para a apresentação de “RESET BRASIL” é convidada a organizar-se como mutirão; o batalhão do dia.



Identificam-se, assim, dispositivos similares aos utilizados em A Cidade dos Rios Invisíveis(2014, em repertório até 2021): ali, e também nas Cartas 2 e 3 (respectivamente “A vida adulta, a mulher” e “A velhice, o artista”, integrantes do projeto “Nos Trilhos Abertos de um Leste Migrante”, 2017), o ponto de encontro era o Brás e parte da ação desenvolvia-se no trajeto do trem, com intervenções de artistas do Estopô e uma audiodramaturgia em diálogo com as paisagens vistas pelas janelas do vagão; durante a caminhada pelo Jardim Romano, o público era muitas vezes colocado como uma equipe de documentaristas.

A semelhança entre os procedimentos utilizados – e também suas singularidades dentro de cada contexto e obra – denota tanto a assinatura de um coletivo quanto o desenvolvimento de sua pesquisa continuada de linguagem. “RESET BRASIL” também carrega em seu cerne a performatividade de um território; não mais as memórias alagadas do Romano, mas as identidades retomadas dentro de uma terra indígena nesta obra “para todes que acredytam nas reparações hystórycas”, como enuncia a capa do programa.

O espetáculo inscreve-se na nova trilogia do Estopô, a terceira de sua história. Depois da Trilogia das Águas (2012 – 2014) e o tríptico de cartas Nos Trilhos Abertos de um Leste Migrante (2017), agora o coletivo mergulha na Trilogia da Amnésia, iniciada com “RESET NORDESTE” (2021, online), seguida por este “RESET BRASIL” (2023) e a ser completada pelo trabalho “RESET AMÉRICA LATINA” (ainda sem previsão de estreia).

A dramaturgia de Juão Nyn espirala tempos na lembrança de que o Cerco de Piratininga nunca fechou e suas feridas seguem abertas e suas flechas seguem em pleno voo. Nyn tensiona 1562 aos tempos mais próximos, aos tempos dos vivos: além da narrativa histórica, transbordam depoimentos de processos de resgate, afirmação e legitimação de identidades indígenas – das proximidades de Ururay, vindas de longe em movimentos migratórios, atravessadas por diásporas; de todos os cantos deste Brasil Terra Indígena.

Aliás, e se o Brasil sumir? O que sobra? O que emerge? A pergunta é lançada ao vento e aos ouvidos do público ainda no trem. Nas palavras de Nyn, flechas e feitiços contracoloniais provocam e mobilizam a reflexão em torno do que é esta nação-ficção; do que é um bairro que antes foi aldeia, de quem somos em nossos dias e quem foram os que vieram antes.

Na encenação de Ana Carolina Marinho, a performatividade do território se verifica na presença viva não apenas do elenco periférico, do bairro de Ururay e suas adjacências, mas também na dinâmica que se estabelece entre vida e cena. Em muros e postes, intervenções urbanas criam o elo entre encenação e cotidiano; nas mesas de bar, o som baixa seu volume e as atenções estão ali, nas palavras-portais, nos gestos e coreopolíticas, no teatro que se faz no meio da vida.

O elenco infanto-juvenil recebe o público em canto-encanto na saída da estação de trem e então o mutirão-batalhão, que deixou Piratininga para percorrer e ser percorrido por Ururay, segue em coralidades cobra-coral pelas ruas e vielas, recebendo as licenças e as bênçãos para ali estar e passar. Música, dança, coro, narração, depoimento, testemunho: as cenas de “RESET BRASIL” se desenham como quadros, convocações, evocações, súplicas; ancestralidades passadas presentes e futuras convivem no que se vê e no invisível da obra.

As memórias individuais surgem sempre como fagulhas para lembrar do que é coletivo. Avós, mães, pais, parentes tantos ali, em possibilidades de se (re)pensar a vida comunitária. De se observar o que existe, o que se quer fazer existir e as ficções que assumimos como realidades dadas, prontas. De lembrar de mil nações, mais de mil, e de todas as vidas que pulsam.

E pulsam em muitos tempos; a retomada é espiralar, e por isso, em dois mil, dois mil e vinte, dois mil e vinte três, estamos também em mil, mil e quinhentos, mil quinhentos e sessenta, mil quinhentos e sessenta e um e dois, nas idas e vindas das sete flechas do Caboclo das Sete Encruzilhadas e de tantas encantarias e pajelanças neste encontro entre Abya Yala e África. 

Entre sonho, realidade e transe, o Estopô Balaio propõe um novo cerco, um levante, uma demarcação. Ao longo de suas quatro horas, “RESET BRASIL” prepara seus guerreiros flecha a flecha: memória, amarração, cura, subversão, proteção, sabedoria, ressignificação. É como se cada esquina, cada encruzilhada, cada encontro, cada participação especial, cada cena, trouxesse consigo um aprendizado necessário para os movimentos de retomada. Dos momentos de “reflorestar o invisível” aos gritos de denúncia das Mães de Maio da Leste, a obra é dinâmica em suas atmosferas e cores. A fuga pode parecer cansativa, mas é importante prolongar histórias encurtadas. De ontem, de hoje, de amanhã.

Então, na Praça do Forró, já de noite, “RESET BRASIL” monta o cerco. E ao lado, está a Capela de São Miguel Arcanjo, “templo religioso mais antigo entre os existentes na cidade de São Paulo”, originalmente construída em 1560 por indígenas, fundada por José de Anchieta, reconstruída em 1622, restaurada neste século. A Capela dos Índios, como é conhecida popularmente, e o tanto ali acumulado e soterrado. Ali, próximo ao que foi, o Estopô finaliza a paramentação, o encontro, a fuga. Ali, contra o que foi, projeta na copa das árvores sonhos futuros.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica

RESET BRASIL
Coletivo Estopô Balaio

Direção – Ana Carolina Marinho. Dramaturgia – Juão Nyn. Direção de Movimento e Preparação Corporal – Rodrigo Silbat. Diretora Assistente – Maíra Azevedo. Direção Elenco Infantojuvenil – Carol Piñeiro. Direção Musical, Edição e Mixagem “Trem-Ato” –Rodrigo Caçapa. Direção de Arte – Mara Carvalho e Juão Nyn. Elenco – Dandara Azevedo, Dunstin Farias, Jaqueline Alves, Jefferson Silvério, Jéssica Marcele, Keli Andrade, Laís Farias e Silvana Farias. Elenco Infantojuvenil – Anny Beatriz, Anny Victoria, Eduarda França, Eduarda dos Santos, Gabriely Vitória, Gi Godoy, Julya Pereira, Kim Andrade, Lua Brites, Pedro Henrique, Ryan Peixoto e Suemy Dagmar. Percussionistas – Josué Bob e Thiago Babalotim. Flautista – Giovani Facchini. Operação de Som – Jomo Faustino, Devão Sousa e Emerson Oliveira. Efeitos [Arte Laser] – Diogo Terra. Artistas Visuais [Artes Muros] – Felipe Urso, Morales, Ricardo Cadol, Ana Kia, Rote, Vini Meio, Ignoto, Auá Mendes e Ju Costa. Participações Especiais – Socorro, Márcia Gazza, Olga, Ângela Alves, Fernando Alves, Didão e Page Rubens. Cenotécnico – Enrique Casa. Figurinos – Mara Carvalho. Adereços – Aline Dayse. Costureira – Pamela Rosa. Artes Gráficas – Daniel Torres. Contrarregras – Lisa Ferreira, Rodrigo Vieira e Wesley Carrasco. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Assessoria Jurídica – Paulo Rogerio Novaes e Aline Dias de Andrade.  Secretaria – Lisa Ferreira. Mídias Sociais – Gabriel Carneiro. Fotografia e Câmera – Cassandra Mello. Produção e Direção de Produção – Wemerson Nunes [Wn Produções]. Realização – Coletivo Estopô Balaio e Cooperativa Paulista de Teatro.