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ventar revoluçõezinhas

crítica de O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, da Cia. Novelo com realização do IBT – Instituto Brasileiro de Teatro.

Em tempos antigos, quando o Vento contava histórias que atrasavam a Manhã em seus afazeres de raiar o dia, diversos animais conviviam em um mesmo parque. As relações se mantinham harmoniosas enquanto se respeitavam as distinções: cada qual com o seu qual, como regulava a velha lei. Então, uma andorinha ousou aproximar-se de um gato malhado, apontado pelos outros como egoísta, perigoso e mau. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, encenado no Parque Augusta pela Cia. Novelo, é a história de um amor impossível pois fora dos enquadramentos da normatividade ali presente.

Jorge Amado (1912 – 2001) escreveu O gato malhado e a andorinha Sinhá como um presente para o primeiro ano de seu filho João Jorge, em 1948. A história só seria publicada quase trinta anos depois, em 1976. O livro foi editado sem nenhuma revisão; segundo o autor, se fosse bulir nele, teria de reestruturá-lo por completo, fazendo-o perder sua única qualidade: a de ter sido escrito simplesmente pelo prazer de escrevê-lo, sem nenhuma obrigação de público e de editor.



A liberdade de uma escrita que se desenvolve simplesmente pelo prazer se verifica na estrutura própria da narrativa: repleta de parênteses, capítulos “fora de lugar” e idas e vindas na história a partir da implicação e dos comentários do autor, imbricado na fábula construída. Samya Pascotto, Valérie Mesquita e Domitila Gonzalez assinam a dramaturgia  (com colaboração de Thalita Trevisani, Marina Campanatti, Beatriz Kovacsik, Maria Eugênia Portolano e Maristela Chelala, além da provocação de Marco França) nesta adaptação da Cia. Novelo que mantém-se fiel ao conteúdo e faz bom uso das brincadeiras formais do texto no movimento de encená-lo.

Chelala faz de suas atrizes-narradoras quase palhaças na lida épica com o espaço da rua e a relação entre elas, suas personagens e o público. Ao caracterizar Portolano como o próprio Jorge Amado, possibilita uma dinâmica extremamente eficaz com a fragmentação da narrativa ao mesmo tempo em que abre um espaço de diálogo direto entre intenções da obra, da companhia e as expectativas dos espectadores.

A adaptação consegue respeitar a essência da história e até mesmo as palavras de Amado ao mesmo tempo em que cria um protagonismo maior para as personagens, muitas vezes apenas descritas ou citadas no livro, à serviço da composição e do jogo cênico entre as artistas. Revezando-se entre os tantos animais, utilizando bonitos e práticos adereços assinados por Kovacsik, a Novelo encanta crianças de todas as idades enquanto as mantém absolutamente conectadas à narrativa e seu discurso.

Esta conexão é fundamental para que não reste dúvidas no espectador em torno da mensagem sustentada por O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá: para além de uma cristalina mensagem de respeito e tolerância a todas as formas de amor, há ainda uma série de camadas passíveis de análise no subtexto do trabalho.

Diante do próprio título da obra, uma problemática é indesviável: enquanto a andorinha, que voa alto, é chamada de Sinhá – forma de tratamento com que pessoas escravizadas referenciavam-se às suas patroas – o gato é apenas malhado; no texto de Amado, é só ele que tem características físicas descritas, de forma que o animal marginalizado pelos demais é, de algum modo, também o único racializado na narrativa. Ainda que a encenação da Novelo não aborde esta perspectiva, suas implicações são desenvolvidas pelo próprio texto original – e outros atravessamentos que partem de recortes e marcadores sociais são destacados pela encenação.

Não é apenas uma história de amor e diversidade: a Novelo insere comentários assertivos em torno da situação atual do país. Se Amado aponta que não apresentavam provas, mas quem punha em dúvida a ruindade do gatarraz?, a Novelo lembra de condenações onde os acusadores afirmavam que não temos provas, mas temos convicção. 

O paralelo entre a maneira com a qual os animais do parque desenhavam a figura do Gato Malhado e a contemporaneidade das fake news – entre outros fenômenos lamentáveis da política atual – aprofunda o discurso de O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. Isso se evidencia, inclusive, nas tantas citações propostas pela Novelo, desde a presença de um livro de bell hooks nas mãos de uma personagem – e assim se pensar no amor como ação –  até o jogo com a métrica e melodia de Geni e o Zepelim no momento em que o Gato torna-se importante para proteger os demais bichos.

Além destas, há a movimentação do Rouxinol evocando Tiago Iorc no clipe de Masculinidade que enquadra o pássaro como esquerdomacho, a já citada menção à frase de Deltan Dallagnol e, entre outras alusões, também uma menção puramente pelo efeito estético à Não falamos do Bruno, da animação de sucesso Encanto.

Na direção de Chelala, a encenação da Cia. Novelo sabe dosar comentários, citações e referências na costura da narrativa de modo que tudo parece orquestrado na direção de uma organização fluida, ainda que com marcações precisas de movimentação das atrizes, que mantém uma energia pulsante durante toda a obra ao mesmo tempo em que se permite desenhar ritmos distintos.

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá é obra conduzida musicalmente: na direção musical de França, composições poéticas e perfeitamente executadas embalam as cenas e a narrativa. Gonzalez assina a grande maioria das canções, além dos arranjos ao lado do diretor musical. Em sua versatilidade também está um grande destaque da encenação: a artista toca diversos instrumentos, canta, dança e encanta, sobressaindo-se em um elenco talentoso e equilibrado – todas, aliás, encontram seus brilhos individuais ao longo do espetáculo.

Sob a direção de movimento de Dinho Hortencio, as intérpretes fazem uso de diversas técnicas, sempre à serviço da composição cênica – a Andorinha ganha imagens circenses na corporeidade de Pascotto, enquanto Trevisani integra o Gato à cultura urbana com o passinho e até mesmo um moonwalk em suas movimentações e coreografias. 

Tudo está muito bem alinhado pela Cia. Novelo. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá mantém a sutileza da poesia e a potência das metáforas e alegorias ao mesmo tempo em que afirma constantemente seu subtexto, não deixando margens para dúvidas em torno do que defende e o que quer dizer ao estar na rua, fazendo teatro, no Brasil de 2022.

A epígrafe que inspirou Jorge Amado, trova do poeta popular baiano Estêvão da Escuna, é tornada canção na adaptação de Gonzalez e encerra a obra, que ambiciona uma revoluçãozinha, como sugere a coruja:

O mundo só vai prestar
para nele se viver
no dia em que a gente ver
um gato maltês casar
com uma alegre andorinha
saindo os dois a voar
o noivo e sua noivinha
dom gato e dona andorinha

Antes, porém, um parênteses é criado pela Novelo para lembrar ao público de que fazer arte é um ofício. Que contar uma história é assar um pão, é desenhar uma ponte, é construir uma ponte. Uma fala direta que lembra a plateia, totalmente imersa na fábula e navegando pelas águas da imaginação, de que aquela estrutura é uma exceção. Que estamos no Brasil de 2022. Compartilhar a instabilidade do fazer artístico. E defender, mais uma vez, o amor em sua amplitude e potência política possível. Um final triste, mas que convoca e vislumbra futuros: para que o mundo venha a prestar, seguir contando histórias.

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serviço
O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, com a Cia. Novelo
Temporada: de 28 de maio a 17 de julho, aos sábados e domingos, às 15h 
Parque Augusta – Rua Augusta, 200, Consolação
Classificação: livre
Ingressos: grátis (basta chegar e assistir ao espetáculo)
Duração: 70 minutos

ficha técnica
Direção: Maristela Chelala
Concepção: Cia. Novelo
Direção Musical: Marco França
Dramaturgia: Samya Pascotto, Valérie Mesquita, Domitila Gonzalez
Colaboração dramatúrgica: Thalita Trevisani, Marina Campanatti, Beatriz Kovacsik, Maria Eugênia Portolano, Maristela Chelala.
Provocação de dramaturgia: Marco França
Figurino: Cia Novelo
Orientação e produção de figurino: Marichilene Artisevskis
Arranjos: Marco França e Domitila Gonzalez 
Músicas originais:
"Era uma vez, Antigamente" | Composição:  Domitila Gonzalez. Colaboração: Samya Pascotto
"Repente do Gato mau, miau" | Composição: Samya Pascotto
"O primeiro amor", "Tema do Rouxinol", "Balada brega", "Coração-Passarinho", "A última carta", "Teia de Aranha", "Valsa do Amor ruim (para Sinhá)", "Seresta Ventada", "Tema do Outono" | Composição: Domitila Gonzalez 
"Tango das Murmurações" | Composição: Domitila Gonzalez, Samya Pascotto, Thalita Trevisani, Valérie Mesquita, Marina Campanatti
"Marchinha do soneto mal-escrito" | Composição a partir do soneto escrito pelo personagem Gato Malhado: Domitila Gonzalez. 
"O Mundo só vai prestar" | Composição a partir do poema de Estêvão da Escuna: Domitila Gonzalez 
Direção de movimento: Dinho Hortencio
Elenco: Beatriz Kovacsik, Domitila Gonzalez, Maria Eugênia Portolano, Samya Pascotto, Thalita Trevisani, Valérie Mesquita
Cenografia - Concepção e Arquitetura: Estúdio Chão / Adriano Carneiro de Mendonça, Antônio Pedro Coutinho, Leonardo Ribeiro
Construção de cenário: Bruno Fonseca
Arte e Pintura de cenário: Tainan Cabral 
Figurino: Marichilene Artisevskis
Costura: Judite Geronimo de Lima
Adereços: Beatriz Kovacsik
Visagismo: Samya Pascotto
Realização: IBT
Produção executiva: Oliver Tibeau
Direção de Produção: Nathalia Gouvêa
Assistência de Produção: Vitória Rodrigues
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Design Gráfico: Estúdio Alles Blau 
Fotografia de divulgação: José de Holanda
Intérprete em Libras: Jhafiny Lima
Desenho de Som: André Teles
Técnico de som: André Teles
Operador de Som: André Teles e Viviane Barbosa
Assistente de Som: Lucas Paiva 
Apoio: Prefeitura de São Paulo e Secretaria do Verde e do Meio Ambiente

Este projeto foi financiado pelo IBT – Instituto Brasileiro de Teatro, com recursos de pessoas físicas e sem uso de leis de Incentivo à Cultura