arquipélago, destaque, teatro

a insistência da maré: contracontar origens

crítica a partir da realização de Ma’é Yyramõi – MAR À VISTA, da Cia. de Arte Teatro Interrompido e do Coletivo Nhandereguá de Etéato. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Na beira-mar da Aldeia Tapirema, dentro da Terra Indígena Piaçaguera (Peruíbe/SP), ao lento dançar da maré, que aos poucos avança e recua por toda a extensa faixa de areia, outro movimento se soma: durante o primeiro final de semana de agosto de 2023, a Cia. de Arte Teatro Interrompido e o Coletivo Nhandereguá de Etéato realizaram as primeiras apresentações de Ma’é Yyramõi – MAR À VISTA. Da praia fez-se espaço cênico, pouso de uma semente contranarrativa cuja realização é um acontecimento que se pode contar a partir de diversos prismas – especialmente porque os cerca de sessenta minutos da obra talvez falem pouco sobre os cinco anos de processos de criação, invenção e transformação que envolvem o trabalho.

O projeto nasce em 2018, quando da primeira visita do artista Potyguara e potiguar Juão Nyn à T.I. Piaçaguera. Conforme relatado por Nyn no artigo O teatro como contracolonyzação Tupy-guarany Nhandewa (presente no livro Teatro e os povos indígenas, janelas abertas para a possibilidade e escrito, evidentemente, antes da tão sonhada estreia), “após a prymeyra vyvêncya teatral na terra Piaçawera”, ele e Carol Piñeiro, sua parceira da Teatro Interrompido passaram “dyas ansyosos sobre o retorno dos que partycyparam da ofycyna”. Nesse meio tempo, conta Nyn, “muytas águas rolaram”: em movimentações internas da T.I., entre renúncias e reorganizações de aldeias, a perspectiva de seguir ensinando teatro em Tekoas foi também se movendo pelo território. Inicialmente, as oficinas estavam sendo ministradas na aldeia que leva o nome da T.I. (Piaçaguera); antes de chegar à Tapirema, passaram pela Awa Porungawa Dju e pelo Centro Cultural Tatatynadjary, além de um intercâmbio com a aldeia Tabaçu. 

Ao longo dessas migrações, Nyn e Piñeiro conhecem Dhevan Kawin, à época cacique da Awa Porungawa Dju – aldeia que leva o nome de seu pai. É nesse “reencontro lytorâneo” que nasce a fagulha inicial de Ma’é Yyramõi: ao mesmo tempo em que a Teatro Interrompido desejava há anos realizar uma peça à beira-mar, indígenas da T.I. Piaçaguera, demitidos da realização de autos teatrais em São Vicente que contavam da chegada dos portugueses, queriam contar sua própria versão, a perspectiva nativa deste momento histórico: “na fome de mundo, eles vyram terra, a gente vyu mar”; MAR À VISTA.

Também é na Awa Porungawa Dju que o Coletivo Nhandereguá (“somos todos iguais”) de Etéato se desenha. Dessas idas e vindas, insistentes e pacientes como a maré que a cada dia avança e retorna, além do já citado artigo de Nyn, há também um registro dos primeiros três anos de teatro na T.I. Piaçaguera no canal da Teatro Interrompido no YouTube. Ali, perguntado se o fazer teatral, o ato de contar as próprias histórias, fortalece a identidade e o orgulho indígena nos jovens, o Pajé Guaíra não hesita em responder: “com certeza. Eles nunca viram isso, então estão recordando também, para estar vendo também como é que era a nossa gente antes”.



Depois disso, uma pandemia e a suspensão de todas as atividades presenciais; a boa notícia do projeto contemplado no edital 01/2021 do ProAC e a péssima notícia do AVC sofrido por Dhevan (que segue em recuperação). Então, recentemente, a retomada, agora com a perspectiva de estrear esse trabalho conduzido por 35 artistas indígenas na beira-mar de uma T.I. – e a tristeza da ausência de um grande companheiro de jornada neste momento tão importante. 

A Teatro Interrompido e o Coletivo Nhandereguá – que se colocam não apenas como atuantes, mas Nhe’e Moĩ porãa, “guardiões das palavras-alma” do Guarani Nhandeva –  constroem, então, a estrutura deste contrateatro a partir da dramaturgia de Luz Bárbara, indígena Kariri, e da perspectiva do desencontro, como nomeado pelo escritor Tapuia Kaka Werá, da chegada da colonização portuguesa. No artigo já citado neste texto, Nyn se questiona se “é possývel utylyzar o Teatro como ferramenta antyetnocýda e antygenocyda, o ynverso do que hystóriycamente ele fez nessas terras”, e no contrateatro de Ma’é Yyramõi é precisamente este o ponto.

Ainda que não se trate de pensamento necessariamente inédito, essa utilização do teatro dentro das circunstâncias desta criação carrega consigo singularidades. Há alguns anos se pode verificar uma interessante efervescência na cena teatral das questões indígenas (entre tantas outras narrativas dissidentes dentro das ordens normativas da sociedade contemporânea); no mesmo Teatro e os povos indígenas, janelas abertas para a possibilidade pode-se ler, dentro do artigo de Zahy Tentehar, relato da atriz em torno de sua participação em Macunaíma: uma rapsódia musical (2019, direção de Bia Lessa).

Tomando a atriz como exemplo, ela também esteve presente em encenações da mundana companhia, além de participar, em vídeo, de Hip-Hop Blues: espólio das águas, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e recentemente estar em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo com a ópera O Guarani (2023, concepção geral de Ailton Krenak e direção cênica de Cibele Forjaz). Além da artista, há uma série de outras obras e iniciativas que poderiam ser citadas, de dimensões diversas – desde Os Um e Os Outros (2019, Cia. Livre e Cia Oito Nova Dança) até amazonias – ver a mata que te vê (2022, projeto do Sesc São Paulo) -, e todas, a seu modo, relevantes e fundamentais para que se possa pensar em um projeto de país antigenocida – até porque, como pergunta Nyn em seu Manyfesto Potyguês (que antecede O teatro como contracolonyzação), será que “é possývel demarcar terrytóryos fýsycos sem demarcar ymagynáryos? A mente é um terrytoryo. O YMAGYNÁRYO é terra”.

A singularidade de Ma’é Yyramõi reside precisamente no que Nyn chama de deformação do teatro; é uma inversão na perspectiva de integração das questões indígenas dentro do que se estabelece enquanto teatro contemporâneo, uma simultaneidade na lida com o imaginário do território e o território do imaginário – em todas as contradições e desafios que emergem disso. De algum modo, resulta visível na encenação algo do que permeou o longo processo como um todo: esse fazer-se ser Nhe’e Moĩ porãa, o encontrar dessas palavras-alma a serem ditas, das histórias a serem contadas; das tradições a serem inventadas. Do contracontar origens.

Pois se há uma origem histórica do teatro brasileiro vinculada ao prisma da catequese e, por consequência, da colonização, esse contrateatro contracolonial deve fazer ver uma outra possibilidade; uma origem que veio antes, mesmo que criada depois. Uma temporalidade contralinear opera dentro da dramaturgia de Ma’é Yyramõi, o que é facilmente verificado nas espirais que organizam os acontecimentos da narrativa. 

Nyn anuncia que na obra, contam “através da autofycção, do documental e das escrytas de sy, como era o velho novo mundo”. Nessa “ficção nativa sobre a etnogênese do povo Tupi Guarani” (como aponta a sinopse do trabalho), cabem homenagens que ao mesmo tempo são celebrações e subversões: na narrativa, Tatatī Djary dá a luz a Awa Porangawa Dju. Na vida real, seria como se uma neta parisse o próprio avô. É uma camada acessível apenas aos que conhecem as histórias de vida da população da T.I. Piaçaguera – que, pode-se pensar, são o público alvo deste acontecimento cênico, especialmente nesses primeiros momentos. Ao mesmo tempo, é possível ler nessa escolha a possibilidade inventiva e transformadora de fazer nascer do futuro aquilo que veio antes; um futuro ancestral.

Assim, Ma’é Yyramõi evoca a realidade imediata e passados longínquos em sua travessia do Peabiru, contracontando o desencontro em sua encenação espiralar, organizada em um espaço (inevitavelmente) circular na areia, recortada por lasers e grafismos que brilham na luz negra, cantado em tupi guarani e, por enquanto, narrado em português. Fazer nascer uma tradição não é ato que se dá de imediato; a Teatro Interrompido e o Coletivo Nhandereguá apontam para o desejo de apresentar MAR À VISTA anualmente – do mesmo modo que os autos do desencontro se dão – e, a cada vez, ouvir menos a língua do colonizador e mais a nativa. Diferente de ondas que podem surgir e quebrar a todo instante, aqui o que corre é o tempo e a insistência das marés: na vazante, o espanto; na enchente, a retomada.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica

Ma'é Yyramõi - MAR À VISTA
Cia. de Arte Teatro Interrompido e Coletivo Nhandereguá de Etéato

Direção Geral: Juão Nyn
Assistência de Direção: Carol Piñeiro e Dandara Azevedo
Produção Geral: Vivência na Aldeia
Coordenação de Produção: Juli Xavier
Coordenação interna Aldeia Tapirema: Guaciane
Produção Local: Itamirim
Dramaturgia que inspirou a montagem: Luz Bárbara
Adaptação dramatúrgica para montagem: Itamirim, Carol Piñeiro e Juão Nyn
Preparação Corporal e Vocal: Txon, Dandara Azevedo e Catarina
Elenco: Arataendy, Eitsy, Thuany e Gwyrati,Patrick, Itamirim, Mana'i, Ita'iara, Djedjy, Samuel, Panama, Endju, Sueli, Ara, Kaique, Apo'i, Djatsy, Joaquim, Laiane, Txon, Pê, Kywy, Adrielle, Samuel, Guaciany, Txidi, Karaimirim e Awati
Músicos: Txon e Endju
Grafismos: Mboja
Grafismos nas esteiras: Mara Carvalho e Adriel
Designer Gráfica: Wanessa Ribeiro
Assessoria de Imprensa: Thais Peixoto
Laser e legendas: Diogo Terra
Captação de Som e Trilha: Wescritor e Wallace
Fotografia: Mylena Sousa
Registros Audiovisuais do processo: Mylena Sousa e WeraMoru
Registros audiovisuais do espetáculo: Floresta Periférica / Ray Pará Poty e Mylena Sousa
Contraregra: Kunumimdju
Figurino: Itamirim
Transporte: Ará
Alimentação: Thayná e Mimi
Apoio: Estopô Balaio e Cooperativa Paulista de Teatro
Realização: Teatro Interrompido Cia de Arte, Coletivo Nhandereguá de Etéato e Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo