arquipélago, destaque, teatro

como olhares tanto

reflexão a partir de “Solo de Marajó” (Grupo Usina/PA) e “amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético]” (realização Sesc São Paulo). este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Durante um mês deste início de 2023, no Teatro Paulo Autran e no Auditório do Sesc Pinheiros, divididos por três andares, duas obras coexistem em temporada – como tantas vezes acontece. O que chama a atenção neste momento é a possibilidade de observá-las em perspectiva curatorial, sendo tal programação definida de forma consciente ou não. Às sextas e sábados, quando amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético] se aproxima de seu final no imenso teatro do subsolo, no terceiro andar está começando o Solo de Marajó. 

Enquanto o trabalho apresentado no Paulo Autran é o decantar de um projeto artístico-pedagógico idealizado pelo Sesc São Paulo, com extensa ficha técnica dividida em uma série de núcleos criativos, técnicos e de apoio – que, conforme o programa aponta, trabalharam de forma circular e horizontal – além de uma grande quantidade de atuantes selecionados a partir de chamamento público, no auditório o espectador se vê diante de apenas um ator e o palco nu. Então, qual o sentido de aproximar tais encenações? Seria simplificador dizer que trata-se do tema; mais adequado, pensar em seus olhares – ambos miram um tanto, de formas singulares e radicalmente distintas.



Solo de Marajó, criação de Alberto Silva Neto (dramaturgia, iluminação, encenação e direção) e Claudio Barros (dramaturgia, figurino e atuação), do Grupo Usina (PA), é um representante – tantas vezes solitário – dos teatros do Norte do país a se apresentar em palcos sudestinos. Na análise de Kil Abreu para o Cena Aberta, além das leituras sobre a cena, o leitor pode encontrar uma contextualização importante em torno desta questão – e também um apontamento sobre a qualidade que existe mesmo onde nossa “vista” não alcança: entende-se, tantas são as condições na contramão: a deficiência das políticas públicas locais e o chamado “custo amazônico” – uma conta em que se mostra o quanto é dispendioso cruzar o país vindo de cima para apresentações em outras praças. Mas o fato de não estar à vista das outras regiões não quer dizer que uma parte do melhor teatro brasileiro não esteja lá.

A obra baseia-se no romance Marajó (1947), do também paraense Dalcídio Jurandir, que compõe o chamado Ciclo do Extremo Norte, sendo o segundo de dez livros que apresentam um quadro da Amazônia paraense provavelmente desconhecida – se não ignorada – por grande parte de nós, sudestinos. E não apenas a realidade, mas também sua literatura, suas criações, seus imaginários que vão além do que geralmente se espera, sejam em estereotipias pejorativas – como quando se insiste em falar de um brasil profundo, por exemplo – ou naquelas que fazem das matas (e as amazônias certamente são mais do que concebemos como matas) espaço idílico de resgate e invenção.

Silva Neto e Barros adaptam o romance de modo a fazer de suas cenas quase que capítulos, episódios de narrativas vivenciadas por diversas personagens cujas relações se revelam no caminhar deste Solo de Marajó. No texto já citado de Kil Abreu, Solo de Marajó e a lenta vazante das marés amazônicas, o crítico aponta para o fato de que a dramaturgia, voluntariamente ou não, se inspira ​​no plano livre dalcidiano, que mescla o andamento dos fatos na vida ordinária dos personagens à reflexão íntima e, ainda, que se pode perceber um recorte nas escolhas do texto: o drama das mulheres do andar de baixo.

Para dar vida a essas vidas, Barros faz de seu corpo e voz veículo de poesias e dores. Intérprete de grande precisão, move-se no palco como se Solo de Marajó fosse uma grande coreografia – o que, inclusive, poderia convidar a iluminação a outras possibilidades para além do blecaute que marca o encerramento de cada narrativa, para que o público pudesse acompanhar os passos de Barros nas transições gestuais de cada uma das caracterizações e marcas de cena. Nesse sentido, ainda que salte aos olhos a qualidade técnica do ator, não se trata de obra formalista: o que grita no trabalho do Usina é o abandono, o desamparo, as cicatrizes coloniais que se mantém desde muito; na época retratada por Jurandir, na época da escrita do livro, nos tempos que ainda correm.

A complexidade está imbricada em uma teatralidade do simples. Nas violências que correm em texto e subtexto, em ausências e partidas. São precisas as escolhas do como contar, do como representar, do que se faz presente no palco e o que se constrói entre narrador e plateia, evocado no invisível que é matéria da cena. Da poesia de duas luas aos rostos que permanecem vistos nas águas, Barros povoa o ar que preenche a sala com a leveza do que é grave, movendo águas há muito paradas mesmo no correr do rio.

Alguns andares abaixo, no mesmo prédio, as amazônias são inspiração para amazonias, grafada sem acento, como que ação, sinfonia, também dissonância; distâncias, espelhamentos e aproximações neste gesto de ver a mata que te vê, entre jovens das margens (e do centro, também por vezes periferia) da cidade de São Paulo e as imensidões das margens dos rios e igarapés que cortam a floresta. 

Se Solo de Marajó é encenação de longa trajetória, estreado em 2009, realizado no escopo de um grupo independente com mais de trinta anos de pesquisa e criação, por artistas de grande experiência, amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético] é fruto de ação sociocultural, pedagógica e artística gestado no contexto de uma das mais fortes instituições do país – o Sesc São Paulo.

Assim, vale dizer aqui com todas as letras de que o presente texto não ambiciona tecer nenhum tipo de comparação entre os trabalhos, por ser nítido que tratam-se de obras de naturezas radicalmente distintas. De todo modo, cabe falar de ambos em uma mesma reflexão por conta, novamente, da programação da unidade Pinheiros, cuja curadoria acabou por oferecer a seu público dois espetáculos de teatro com relações diretas com a região Norte do país, seus biomas e seus modos de vida.

No farto programa de amazonias – ver a mata que te vê, as intenções e ambições do projeto se apresentam de forma cristalina. Sua relevância é inegável, especialmente no que diz respeito à marca que uma experiência de tal dimensão deixa nas jovens pessoas atuantes envolvidas no processo formativo de pesquisa e encenação – cujas reverberações oxalá serão vistas nos palcos e espaços culturais de suas regiões e da cidade como um todo. Também em seu conteúdo, de denúncias urgentes (como são tantas nestes tempos).

Neste sentido, já é possível refletir em torno dos efeitos e alcances deste manifesto poético. Considerando se tratar de temática amplamente divulgada em veículos de imprensa, pode-se pensar que muitos dos dados apresentados são de conhecimento público – ainda mais considerando o público que frequenta os teatros do Sesc São Paulo. Isso não diminui a importância, no sentido de que muitas vezes é fundamental insistir em localizar questões histórica, demográfica e estatisticamente. 

No que diz respeito à encenação, Maria Thaís opta por uma organização fragmentada, compondo amazonias de uma forma (inescapavelmente?) plural. O risco assumido é de um andamento inconstante, em quadros que tateiam muitos possíveis, de modo que pode causar a impressão que os sobrevoa de maneira panorâmica. Uma análise do que se vê na cena é indissociável do subtítulo da obra: [um manifesto poético]. Talvez não se possa, mesmo, olhar para amazonias como se mira um espetáculo tradicional. Seu caráter formativo (de artistas, de públicos) parece mesmo o ponto focal do projeto, de visível relevância pedagógica e sociocultural. 

Porém, insiste-se numa espetacularidade, numa teatralidade que soa excessiva em suas materialidades cênicas, como se aqueles corpos e corpas em pesquisa e ação não fossem o bastante para levar ao palco suas narrativas. A simultaneidade de ações e composições traz uma curiosa beleza, ora como coletividades que pulsam em distintas frequências, ora como desfiles que se permitem um risco de quase (quase!) cair em lugares comuns. O sudeste tipicamente exotifica o tanto que compõe o imaginário e o universo amazônico, e é importante implicar-se nestas amazonias. Ao mesmo tempo, qual a relação entre o desejo de falar e a necessidade de construir espelhamentos?

Por um lado, os paralelismos podem ser percebidos positivamente. Em texto publicado no Ecoa, Trudruá Dorrico escreve que essa presença indígena, quilombola, e branca dissidente que resiste pela floresta é um manifesto contemporâneo que convida a plateia a refletir sobre o próprio bioma em que vive, resistindo às mesmas corjas extrativistas. Observando as amazonias neste sentido, há uma rica e fortuita possibilidade de identificação. Maria Thaís, em entrevista ao Farofafá, também diz algo neste sentido, ao falar sobre o olhar que move o trabalho – um olhar para os modos de vida, para a diversidade que as amazonias, as diferentes formas de existir, de cultivar a floresta, de manter a relação com o mundo, estão expressas nos povos que ali habitam. A diretora artístico-pedagógica aponta que com certeza essa diversidade, essa multiplicidade, a mata, a floresta como lugar que expressa pra gente essa diversidade, ela está absolutamente associada aos modos periféricos de existência e que a gente com certeza vai identificar também nos jovens da periferia paulista.

A tensão proporcionada pelas proximidades e distâncias resulta em momentos marcantes de amazonias, como a cena da mata-cidade-mata, onde urbanidades transbordam pelas tantas margens do país. Por outro lado, a associação entre a cidade de São Paulo e os modos de vida da floresta é por vezes frágil, gritando as inatingíveis dimensões de lançar olhares para tanto, de modo que a própria encenação parece abandonar as fricções possíveis para então debruçar-se na mata que é – e menos na que te vê.

Há, assim, algo de desencaixe entre conceito, contexto e realização. Se nas coralidades e movimentos se pode perceber aos poucos as tantas singularidades que compõem o coletivo artístico, uma espécie de opulência nas construções cênicas parece depor, por vezes, contra a própria matéria prima que constitui não apenas a encenação, mas o projeto como um todo. São muitas as parcerias e é evidente que a troca foi intensa e extensa entre as muitas pessoas envolvidas na criação; a sobreposição entre camadas de processo e de cena não é sempre harmônica, ainda que por muitas vezes sim – e o efeito na plateia, de deslumbramentos e reconhecimentos, é indiscutível.

Este texto poderia ser dividido em dois, tecendo uma crítica a partir de Solo de Marajó e outra a partir de amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético]. Porém, pareceu fortuito abordar as duas obras em uma mesma reflexão, inclusive para contar às pessoas que vivem ou estão de passagem por São Paulo que há, em um mesmo edifício, na região do centro expandido, acessível por diversos modais do transporte público, duas possibilidades de fruir experiências teatrais pautadas pelo Norte brasileiro – seja como intenção, seja como origem.

A iniciativa do Sesc São Paulo, nesse sentido, é louvável, ao simultaneamente pautar uma obra paraense e outra que se lança a construir aproximações entre as amazônias e a existência sudestina. Ao mesmo tempo, faz pensar, para além do custo amazônico, em torno dos circuitos de (in)visibilidade produzidos e reproduzidos neste país de dimensões continentais, onde os fluxos de capital simbólico muitas vezes seguem reproduzindo os de capital financeiro.

Por fim, há de se lembrar também de que projetar expectativas sobre quais teatros e quais temas devem ser abordados por artistas e trabalhadores da cultura de distintas regiões do país é uma prática colonialista que deve ser abolida. Viabilizar produções de localidades diversas é compreender a diversidade possível dos impulsos criativos de seus realizadores. 

Dessa forma, como o presente texto fala, entre outras coisas, de um espetáculo concebido no Pará, parece fazer sentido encerrá-lo citando e celebrando três nomes: o primeiro, já citado, é Kil Abreu, que dispensa apresentações pela relevância de sua trajetória como curador e crítico, figura nevrálgica para o desenvolvimento das teatralidades contemporâneas paulistanas e atual editor do Cena Aberta. O ruína acesa lembra também de Rudinei Borges dos Santos, em cuja escrita poesia e dramaturgia conversam como velhos pescadores à ver o sol se pôr na beira de um rio que corre, e de Paloma Franca Amorim, que, além de já ter colaborado com este site, é autora de 7PISOS, ao lado do Grupo Folias, dentre tantas outras realizações de grande impacto e relevância em várias linguagens artísticas.

Olhar o tanto é fazer ver o que já nos circunda.

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