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Farofa do Processo #2: tentativas de olhar

tentativa panorâmica de lançar o olhar sobre todos os processos e espetáculos assistidos por amilton de azevedo durante a Farofa do Processo. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Entre os dias dois e dez de março de 2024, a Corpo Rastreado realizou a mostra Farofa do Processo. Inicialmente, a FarOFFa, então com dois “f” e assim estilizada, surge em 2019 como a cena off da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), prática relativamente comum em festivais mundo afora – de algum modo semelhante ao Fringe de Edimburgo ou de Curitiba. Ganhando tração ao longo de suas realizações, com uma imensa equipe de produtoras e produtores capitaneados por Gabi Gonçalves (“É festival de produtoras, queride!”), passa a ser um festival autônomo nesta edição, entregue ao risco e ao não-saber de curar uma programação quase que inteiramente formada por obras em processo.

Na programação, trinta deles, acompanhados por dois ensaios abertos de uma mesma obra e oito espetáculos, alguns apresentados duas vezes. Também, dois almoços coletivos – Farofadas: um churrasco e uma feijoada. a Farofa do Processo é então precisamente o que o nome traz; uma base sólida, como a farinha, e os tantos ingredientes e condimentos que se misturam até que se chegue no prato final. Público em geral, artistas interessados na cena contemporânea, familiares, amizades e parcerias das pessoas e coletividades participantes misturavam-se à programadores e programadoras de instituições e festivais nacionais e internacionais no átrio e nas tantas salas da Oficina Cultural Oswald de Andrade.

Aliás, a concentração da maior parte da Farofa do Processo neste espaço é uma iniciativa fundamental para que a ação, mais do que apenas uma mostra de processos criativos, seja uma plataforma para encontros, diálogos, trocas, networking, pitchings informais e o tanto que há de beleza em estarmos juntes em torno das artes da cena. Os dois outros espaços que receberam trabalhos estão nos arredores da Oswald: a Casa do Povo, literalmente no quarteirão ao lado, e o Teatro de Contêiner, na região da Luz.

Durante a Farofa do Processo, o Arquipélago propõe uma ação enquanto coletivo crítico. O projeto, que engloba oito casas críticas do país (Guia OFF, Tudo Menos Uma Crítica, este ruína acesa, Satisfeita, Yolanda?, Horizonte da Cena, Farofa Crítica, Cena Aberta e Agora Crítica), esteve presente tanto como público de uma série de obras – Ivana Moura (PE) escreveu texto dividido em duas partes sobre o Farofa no Satisfeita, Yolanda? e Kil Abreu (SP) subiu no Cena Aberta uma entrevista com Gabi Gonçalves e um texto sobre a experiência dos processos [é possível que mais textos sejam publicados no contexto do arquipélago; este será atualizado conforme isso acontecer]. Eu, amilton de azevedo, junto de Guilherme Diniz (MG), Heloísa Sousa (RN) e Fernando Pivotto (SP) propusemos o Boteco Crítico, espécie de dispositivo onde a mesa do bar era o centro de um debate sem hierarquias entre pessoas críticas e público. Foram três botecos armados, com papos descontraídos e experienciando o risco da tentativa de produzir pensamento crítico a partir desta dinâmica – uma lógica comum e recorrente na cena teatral paulistana: a cervejinha pós-peça.

Agora, este texto é uma tentativa de olhar para a Farofa do Processo como um todo. A primeira parte, com quantas perguntas se faz uma mostra?, é inteiro interrogação. Aqui, o esforço é por debruçar um olhar analítico e panorâmico sobre dezessete processos (todos os assistidos por mim) e um espetáculo, assumindo o risco de nem-saber exatamente o que é um processo, quais as trajetórias de todas as obras vistas, quais as intenções e os caminhos e descaminhos a serem experienciados (estive nos bate-papos de alguns dos processos, onde certas perspectivas passadas e expectativas futuras se desvelam um pouco, mas não foi uma constante). 

Assim, aqui também há lugar para o erro. Se for grosseiro, peço que me informem e será incluída uma errata – o erro não será apagado, ficará como marca destas tentativas de olhar numa escrita crítica que pretende assumir os riscos de se publicar também enquanto processo. Depois de quase dez dias, leituras se embaralham e à minha voz sem dúvida somam-se as tantas outras com quem pude trocar ao longo dos dias. Escrevo de memória, evitando certezas e buscando proposições que possam gerar movimentos para quem lê.

É um exercício. Escrevo de memória, é importante dizer. 

As obras foram assistidas na sequência que estão aqui publicadas.

Serra Pelada, de Alexandre Dal Farra

Um ator, uma atriz, o Google Maps. O imaginário do garimpo, o que foi fixado em nós pelas lentes de Sebastião Salgado. A máquina fotográfica e a máquina humana. Tecnologias e ferramentas. Dados, proximidades, datas, distâncias. E então, Boca de Ouro. Nelson Rodrigues e o filme de Nelson Pereira. Jece Valadão na cadeira do dentista. Flow Kountouriotis e Monalisa Silva refazem a cena diante de nós. O tempo que nos separa dos Nelsons, o tempo que nos separa de Serra Pelada. Há uma espécie de virada no trabalho de Alexandre Dal Farra, percebida desde Verdade, quase que um retorno de algum modo à Trilogia Abnegação, ou talvez não. 

Mas é essa proximidade assombrosa com o que corre por trás dos panos, pelo Real camuflado pela realidade, pelo que não sabemos. Um vídeo final mostra um pequeno bote num rio e aqueles homens ali sorriem e festejam de fuzis na mão – poderiam ser eles os assassinos de Bruno Pereira e Dom Phillips ou dos tantos outros ativistas, militantes e profissionais das mais diversas áreas que atuam no que se convencionou chamar de “Brasil Profundo” (onde é que fica o “Brasil Raso”?). Espécie de investigação cênica entre o olhar para confrontos de técnicas e de dramaturgias e de tempos e um dispositivo conectado ao documental, Dal Farra apresenta na Farofa do Processo uma organização sintética de um material que se percebe já há muito levantado e pesquisado por ele. Resta saber quais os caminhos deste percurso teatral; o trabalho deve estrear em 2025. 

Lugar estranho para um encontro, da Cia. Sacana

A presença da autodescrição das pessoas performers da Cia. Sacana, proposta vista ao longo de toda a Farofa do Processo em sua pesquisa de acessibilidade, torna-se quase um prólogo para Lugar estranho para um encontro. A direção de Ymoirá Micall, assim como a provocação corporal de Ph Veríssima, está presente na abertura deste processo. Há algo de uma demonstração de procedimento na condução de Micall e Veríssima. É quase como observar um momento germinal da criação, onde as provocações em torno de memórias de dança vão surgindo e se contaminando entre performers, também alimentadas pelo público presente. Além das lembranças que talvez se esperem mais comuns – coreografias de canções famosas nas infâncias, por exemplo – algumas pérolas surgem: a primeira memória de dança de Jota Guerreiro é “nadar e boiar”.

Foi esse deslocamento entre o que se espera ser dança e o que pode ser dança que me levou à minha primeira memória de dança, na verdade a mim narrada por minha mãe. Ela conta de um dia que eu tinha cerca de um ano, estava começando a andar, caminhava pelo corredor e ela me chamou. Minha mãe diz que dei um giro de bailarino. Não lembro, mas acho que foi ali que dancei pela primeira vez. Girando para mudar minha trajetória do andar. Essa potência de ativar lugares outros é uma riqueza do trabalho, que ainda parece ter uma bela caminhada diante de si até uma formalização mais precisa de seus propósitos e percursos.

Oz, do Aquilombamento Ficha Preta 

A sinopse fala de “um espetáculo sobre o amor” e lá está a atriz (ou seria performer?) fazendo de um quebra-cabeça espelhado um coração. E uma história familiar repleta de afetos, carinhos, humor; surpresas também. Lá está uma cerveja e um amendoim para o público. Ela conta de uma parente surda (curiosamente, foi um dos poucos processos onde não havia intérprete de Libras na sessão assistida por mim; imagino que por alguma questão logística) e de repente redimensionamos o que pensamos que pode vir a ser a escuta.

Sou ave que carrega coisas que tem brilho para o seu ninho, do Karma Coletivo

Único espetáculo assistido por mim dentro da Farofa do Processo, Sou ave que carrega coisas que tem brilho para o seu ninho se redimensionou com a informação compartilhada ao final da apresentação por Mauro Filho: os elementos cênicos da obra são parte do acervo de Mauro Caelum, pai, já falecido, do ator. Há algo da trajetória entre imagem inicial e final da encenação que parece se completar aí; uma corporeidade que então se ressignifica nesse enfrentamento entre filho e pai, artista e artista, obra e obra. Talvez não seja o centro de Sou ave… mas ao saber tudo parece se reorientar por essa relação, as inversões, as repetições, as tentativas.

Do soterrado ao brilho e a instabilidade do ninho, há algo de permanência nas pedras e algo etéreo no jogo entre corpo e projeção. Uma fantasmagoria que visita e revisita um antes neste ato de construção e reconstrução do efêmero – imagem que me ocorre pela própria dinâmica de observar pássaros em seus processos de montagens e abandonos de ninhos – e se presentifica nesta dualidade presença-ausência, filho e pai, pedra e voo.

Monga, de Jéssica Teixeira

Jéssica Teixeira recebe o público nua, vestindo apenas uma máscara de gorila. Monga tem sido fonte de uma série de trabalhos que discutem, entre outras questões, o feminino e o terror. Aqui, o “corpo estranho” autoenunciado de Teixeira faz da narrativa de Julia Pastrana, mexicana nascida com hipertricose (um distúrbio que gera o crescimento excessivo de pêlos por todo o corpo) conhecida como “A Mulher-Macaco”, cuja condição foi explorada ao longo de sua vida e até depois de sua morte, ponto de partida para lançar luz sobre pautas geralmente observadas sob prismas genéricos e reducionistas – a perspectiva da inclusão é questionada a partir da própria ideia de uma normalidade, seja ela de corpos, de comportamentos, de existências. 

Teixeira apresenta um processo cujo percurso se mostra como algo de sonho, entre canções, um globo de discoteca, um piso reflexivo e um contra-luz que se faz de sol. Estabelecendo pontes constantes com a plateia, transita entre uma performatividade crua e a construção de atuações que se aproximam à ideia de personagem – como no momento em que interpreta o que seria a própria embriaguez. A nudez de seu corpo estranho traz uma performatividade indesviável ao trabalho, cuja organização parece carregar algo de um cabaré com seus números musicais, brindes de cachaça e lances de humor. Monga já traz consigo uma espécie de estrutura quase-fechada, mas parece haver ali algumas pontas a serem melhor alinhavadas para que se estabeleça um fio condutor para o tanto abarcado pelos desejos da dramaturgia da encenação.

Atacante, do Núcleo Tumulto

É surpreendente que o futebol esteja tão pouco presente na cena teatral de um país como o Brasil. Recentemente, algumas obras tematizam o esporte, outras esboçam fazer dele estrutura para a encenação. Na história, talvez tenhamos como exemplo maior Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, além de Corinthians, Meu Amor, de César Vieira, encenada pelo Teatro União e Olho Vivo e depois revisitado, como homenagem, pela Brava Companhia. 

Surpreendente no sentido de se tratar de uma paixão eminentemente popular, colocando-se como um campo de disputa de discursos e imaginários – não é preciso ir longe; basta pensar em ações recentes de torcidas uniformizadas, como quando a Galoucura desfez bloqueios de estrada durante protestos bolsonaristas, ou quando a Gaviões da Fiel lançou nota assinada por seu presidente dizendo aos associados que “​se forem seguir apoiando esse cara, repense sobre sua caminhada dentro da Torcida​”.

Ao mesmo tempo, ainda é impactante escutar os gritos misóginos direcionados à então presidenta Dilma Rousseff durante jogo de abertura da Copa do Mundo de 2014, assim como assombra ver Bolsonaro dentro do campo durante comemoração do título do Campeonato Brasileiro de 2018. Não se pode ignorar a dimensão do futebol no nosso país e nas subjetividades de nossa população.

Assim, Atacante parece alinhado ao pensamento de Eduardo Galeano, autor uruguaio fanático pelo esporte, autor de Futebol ao Sol e à Sombra e Fechado por Motivos de Futebol, onde contra-conta a história do futebol e das Copas do Mundo pela ótica de um cronista de esquerda. 

Confesso que o fato de ter sido chamado para jogar uma partida de Winning Eleven durante a abertura de processo me fez perder um pouco da dramaturgia presente em offs e também a movimentação de Gustavo Braunstein. De todo modo, o que emerge como cerne do trabalho do Núcleo Tumulto é associação do atacante sulamericano a mais uma mercadoria tipo exportação, espécie de subproduto da colonização. Também, a substituição do Canarinho Pistola pelo Carcará é um achado deste processo. Atacante trouxe ao Farofa uma grande quantidade de materiais; falta a aplicação de um sistema tático para organizar tudo que está sendo movimentado pela pesquisa.

Éden, de Tarina Quelho

O paraíso é o apocalipse climático. Cli-fi. Ao que tudo indica, a cena teatral passa a cada vez mais acompanhar o cinema em sua lida com a realidade global e a eminente hecatombe que parece estar diante de nós. Éden faz do degelo de calotas polares também o derretimento das subjetividades. Afetividades e termômetros em ebulição. Das mãos dadas do elenco até sugestões de orgias e declarações de amor, sacos plásticos são pouso movediço de alguma espécie de nós que tenta insistentemente se consolidar. O calor da sala no segundo andar da Oficina Cultural Oswald de Andrade fez da abertura de processo uma obra praticamente imersiva – quando intérpretes saltaram, a impressão é de que tudo estava mesmo prestes a desabar. E não está?

É assim que você olha?, do Coletivo Impermanente

Anunciado como processo, o novo trabalho do Coletivo Impermanente apresentou-se quase como obra fechada. É assim que você olha? é uma proposta do Impermanente, dirigido por Marcelo Várzea, de revisitar Medida por Medida, de Shakespeare, lançando um olhar crítico sobre a obra. O que se vê, depois do prólogo que contextualiza a proposta e levanta questões interessantes em torno do que é e do que pode ser o teatro, é uma remontagem estilizada, com trejeitos “característicos” de uma forma de interpretação que seria “clássica”, acompanhada de adaptações no texto e a inserção de comentários – de forma direta ou dentro da fala das personagens – que problematizam temas e acontecimentos que permeiam a obra.

É de se pensar o que faz uma obra ganhar a alcunha de “universal”, como se algo que é produto – e simultaneamente produtora – de seu tempo pudesse ser observada com os olhos de hoje sem o distanciamento necessário; sem que ela seja ancorada e circunstanciada por seu contexto. Se há em É assim que você olha? a informação e o contragolpe no fato de que só atores homens interpretavam os papeis na época elisabetana, a utilização de atrizes em personagens masculinos não chega a desmobilizar a estrutura da dramaturgia: elas parecem relegadas a papeis menos complexos, homens marginais à narrativa central, como um carcereiro, por exemplo.

Ao mesmo tempo, a perspectiva da desmontagem, enunciada no início, gera certa expectativa. Após a primeira cena de Medida por Medida ser representada com os trejeitos já citados, o público parece ansiar pela desconstrução não apenas do conteúdo e seus anacronismos, mas especialmente da forma. No entanto, o Impermanente insiste na estilização, tornando o espetáculo maçante ao não investir em uma radicalidade no enfrentamento com o material.

O que resulta é uma obra sobretudo simplista, beirando o maniqueísmo na tentativa de estabelecer-se didática, com um tom professoral que não chega a mobilizar a plateia nem no humor nem na crítica. Quando, próximo ao final, um depoimento pessoal irrompe a cena, independente de sua força ele parece fora do tom, descompassado com o todo da obra. O que havia de talvez mais interessante no trabalho anterior do Coletivo, o bem-sucedido O que meu corpo nu te conta?, uma imbricada lógica de jogo estruturante da encenação, aqui se fragiliza numa tentativa esquemática e pouco dinâmica de concretizar a ideia do grupo.

Magnólia, de Marina Esteves

Uma astronauta todinha de branco, no figurino de Claudia Schapira, esperando ela chegar. Porque ela já se encontra a caminho, voando numa nave maternal dourada. Marina Esteves faz de Jorge Ben e sua Tábua de Esmeralda cosmogonia e fundamento para uma mulher-tanto. Como os alquimistas, escolhe com carinho a hora e o tempo do seu precioso trabalho. Dividindo a dramaturgia com Lucas Moura, Esteves homenageia Jorge Ben tomando-o como inspiração para criar mundos, cruzar galáxias e parir futuros: e por essas coisas fazem-se os milagres de uma coisa só.

No solo, acompanhada pelos músicos na carinhosamente chamada Banda da Zé Pretinha (sob a direção musical de Dani Nega), Esteves é Magnólia e é muitas outras, como que fazendo das mulheres de Jorge Ben inspiração para cantar-contar belezas de meninas-mulheres da pele preta. Das que ascendem, das que caem; pois o que está embaixo é como o que está no alto, o que está no alto é como o que está embaixo. A dramaturgia sugere uma espiralidade com começo, meio e começo, como disse Nêgo Bispo. 

Na abertura desta Farofa em Processo, o videografismo de Gabriela Miranda põe estrelas em seus olhos neste jogo entre caos e cosmos, criação e travessia, enquanto a luz de Matheus Brant já indica alguns inícios. Esteves, que disse no bate-papo estar ensaiando em um estúdio de dimensões reduzidas, sabe que tem muito a pesquisar nas maneiras de ocupar-dançar pelo espaço da cena; na sala da Oficina Cultural de Oswald de Andrade, experimentando nichos e textos, já navegava pelos espaços desenhados por Miranda. Herdando uma herança cósmica, aterra e flutua nas modulações vocais e nos olhares que viajam com a narrativa de Magnólia.

Considerando os trabalhos anteriores de Esteves junto d’O Bonde (Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus, Desfazenda – me enterrem fora desse lugar e Bom Dia, Eternidade!), além das parcerias com outros coletivos (A Divina Farsa e A Máquina do Mundo) e sua atuação como diretora e preparadora corporal de Zebra Sem Nome, vale a pena observar de perto o que esta artista-mensageira e sua equipe estão escrevendo em palavra, corpo e poesia com uma ponta de diamante nesta encenação-lâmina-de-esmeralda.

Debaixo dos véus de minhas senhoras, do Coletivo Entardecer

Formado majoritariamente por jovens mulheres negras no último ano, o Coletivo Entardecer dá seus primeiros passos nesta Farofa do Processo. Na abertura de Debaixo dos véus de minhas senhoras, a juventude se volta para aquelas que já são jovens há mais tempo. Um olhar voltado para a ancestralidade, um tributo às que vieram antes. Evocam-se avós como Iabás, mestras em seus conhecimentos e tecnologias.

No compartilhamento, chama a atenção a trilha de DJ Akinn – presente em algumas fichas técnicas desta mostra e de forma consistentemente marcante nos trabalhos. Entre corpos que buscam formalizar em dança toda uma subjetividade e as falas que surgem de personagens-avós-Iabás, Debaixo dos véus de minhas senhoras é semente germinando; desejo que para se decantar em encenação carece de muito cuidado e atenção.

Jukebox – Resistência y F(r)esta, de Cris Meirelles e Poderosa Ísis

Uma trava madrinha e a memorabilia de uma vida que cabe numa mala e transborda em canções. Jukebox é um relicário de oferendas, onde cada objeto é caixinha de música e ao ouvir, para além da música, se escutam histórias. Cris Meirelles faz de sua biografia ponto de partida para compartilhar com o público canções e momentos, passando por amores e afetos, religiosidades e tudo o que pode caber no caminhar de uma vida que se faz em relações – com nós mesmos, com outras pessoas, com o sagrado, com o profano.

Meirelles, ator, músico e cantor de muitos recursos, encontra na parceria com Poderosa Ísis um duo que se complementa nas brincadeiras com a plateia, entretendo e encantando. Na apresentação assistida nesta Farofa do Processo, uma mulher no público ansiava por cada instante possível de interação. Ísis e, em especial, Meirelles, foram capazes de compor um bonito diálogo com aquela mandala do dia que se instaurava em ação. Cantar mais uma história, adiar o fim do mundo, esperançar.

Festa y Guerra, residência da/com a coletivA ocupação

Depois de algumas horas de encontro na Casa do Povo, espécie de continuidade de residências anteriores mas com a presença maciça de jovens artistas chegando juntes pela primeira vez, a coletivA ocupação levou ao átrio da Oficina Cultural Oswald de Andrade sua multidão, corpos pulsantes entre Festa y Guerra. Se o pouco tempo de troca entre coletivA, jovens artistas e músicos da AfroJam já resultou em uma obra que não deixou ninguém incólume em meio aos beats e coreografias é porque o grupo, criado no contexto das ocupações de escolas em reação à reforma do ensino médio em 2015, já riscou nos chãos de todos os espaços onde pisam uma linguagem particular.

Sob a direção de Martha Kiss Perrone, as vivências de um momento histórico se traduzem em gesto, afeto e suor. Em certos momentos, este coro quase-espontâneo lembrava as movimentações e as mobilizações de Quando Quebra Queima, ainda que as pessoas, os corpos, fossem outros, de diversas origens e trajetórias. Festa y Guerra é como um jogo entre infinitos imãs: lá estão polaridades que se atraem na mesma força que podem se repelir. Se agrupam, se isolam, correm, se lançam no ar. Das coralidades surgem indivíduos que logo produzem novas multidões.

De Onde, de PH Veríssima

Uma grande mandala de cabelos e apliques capilares é cuidadosamente organizada. PH Veríssima vai ao microfone, como que introduzindo sua performance ao público. O equipamento, conectado a um pedal de loop, faz com que sua fala sobreponha a si própria, tornando as palavras incompreensíveis. Em um primeiro momento, é engraçado; depois, o eco vai se tornando em si espécie de trilha – na apresentação de De Onde assistida por mim, o loop não funcionou exatamente como Veríssima pretendia, e então a faixa de áudio não foi se tornando uma grande massa de vozes. A artista contou com a ajuda de Ymoirá Micall e Lilith Cristina no microfone, repetindo palavras e frases indicadas por Veríssima conforme eram coletadas por ela, dançando em meio ao público. De onde vem a sua dança? era a questão e a partir das respostas o seu corpo também respondia, entre a mimese e explorações coreográficas. Algumas se mantinham quase como segredo entre a performer e a pessoa questionada, mas era como se em seu corpo se pudesse ler o que havia sido dito.

Veríssima chamava suas tentativas de mapas nessa busca de localizar de onde vêm as danças; na conversa posterior, falou-se em cartografias: sua performance como esse campo de estudo onde se pode elaborar esboços de caminhos passados no presente e seus tantos cabelos espalhados pelo chão quase como as migalhas de pão deixadas pelos irmãos dos contos de fada para se lembrar de onde vieram. Na convocação que se realiza para a construção da imagem final, a planta baixa ganha verticalidade e uma multidão faz dos cabelos de Veríssima antenas-bússolas lançando para ondes.

A bicicleta que tinha bigodes, da Cia. Graxa

Depois de rabiscar na cena toda uma vida da juventude periférica em Cabo Enrolado, a Cia. Graxa volta seu olhar para o teatro infantil, tomando como ponto de partida uma infância que se vive em comunidade. Júlio Lorosh dirige A bicicleta que tinha bigodes, obra que entende o caos e a comunhão que emana da pulsação da rua para contar a história de crianças que querem inventar uma história.

Na abertura desta Farofa do Processo, chama a atenção o foco dado às materialidades possíveis da cena, entre animais-dobraduras-de-papel, bonecões e personagens-objetos-de-arame. Lá está também o teatro de sombras, plantas que se espalham pelo cenário e toda a vida que se pode incutir a tudo que se deseja na cena quando ela é compreendida como espaço de invenção, lugar de brincar.

Do inacabamento de alguns elementos cênicos e também da encenação como um todo, A bicicleta que tinha bigodes carrega sugestões e potências de caminho, cabendo a Lorosh e seu elenco a organização, a vivacidade e a atenção necessárias para construir esse mundo-rua diante dos olhos do público – em particular, das crianças e seus olhos especialistas em criar sentidos onde muitas vezes nos escapa.

Fuga, da Frente

No que se desenha como prólogo, Fuga traz três corpos buscando conquistar cada centímetro de movimento. Cada respiração. Cada sílaba. Lá está a trilha de DJ Akinn, e uma fumaça cobre a sala, e as atrizes estão molhadas e parece tudo úmido e a água pode ser também suor. 

Fuga parece ser sobre o fim do mundo e lá está uma testemunha de tempos para falar sobre o que passa: o meteorito Bendegó se constitui de dois corpos e então o apocalipse é museológico e dá a pensar sobre memória, sobre a materialidade da memória, sobre a destruição da memória, sobre o que se preserva, sobre o que se descarta. Em 1888, Bendegó já havia sido personagem em crônica de Machado de Assis. Duzentos e quase quarenta anos depois, aqui está ele, ainda com tanto a dizer sobre este país, sobre este mundo.

Depois, o processo apresentado pela Frente parece tomar outros rumos; a situação dramática proposta parece dissonante do que se via em Fuga. Um tipo de realismo-absurdo que penetra naquele espaço-tempo outro, gerando uma espécie de ruído na divergência entre qualidades de movimento-palavra, trazendo um quê cotidiano para algo quase etéreo, dando contorno à personagens antes indissociáveis. Há muitos caminhos dentro do trabalho e talvez decisões a serem tomadas a partir destas possibilidades.

Favela de Barro, da Esquadrilha Marginália de Teatro de Rua

Na frente da Oficina Cultural Oswald de Andrade, um tapete onde se lê CUBATÃO é a entrada da arena da Esquadrilha Marginália. No aquecimento, parte do elenco joga bola. Alguém toma um rolinho. Gritos. Passam as músicas, falam com as pessoas para ocuparem os espaços. Começa uma leve chuva. No celular conectado à caixa de som, começa a tocar se pingos de chuva fossem pingos de piroca, que chuva gostosa seria. Todos riem; a Esquadrilha pede para não a abandonarmos.

A chuva aperta. Num esforço imediato e coletivo, a produção do Farofa do Processo ajuda o grupo a transportar tudo para dentro. Favela de Barro irá acontecer no átrio. Enquanto tudo é remontado – elementos cênicos, equipamentos de som, contrarregragem – um dos atores puxa um beat no atabaque e outro começa um freestyle, onde emenda trechos do hino de Cubatão. Aqui, paz, amor e tradição se torna paz, amor e revolução. Tudo isso aconteceu antes do trabalho em processo apresentado pela Esquadrilha. Mas já deu o tom do que viria.

Favela de Barro é um ato cênico-musical onde a realidade das periferias de Cubatão é a fonte da narrativa, que encontra reverberação absolutamente harmônica nas escolhas da encenação. Pode ser de madeirite ou pode ser de barro / Pode ser de madeirite ou pode ser de barro / Ê favela / Ê favela, canta o elenco enquanto faz de uma bola murcha tambor, de marmitas tamborim e assim por diante. Então, uma rodada de salves, depois inclusive aberta ao público, onde por entre relatos cotidianos emerge a matéria poética que sustenta a obra. 

Pipas cortadas e um céu sem pipas. Uma mulher de uniforme no ponto de ônibus. Há uma riqueza nesse trânsito entre o compartilhamento quase como denúncia e a invenção exigida pela formalização cênica. A Esquadrilha Marginália faz do espaço cênico mangue e palafitas e a água que alaga é só o que há na geladeira enquanto uma voz de rezadeira canta como quem ora, compreendendo as tantas teatralidades que existem fora do teatro e que cabem e transformam essa linguagem.

Terra é espalhada por todo o espaço e a Esquadrilha dança. Dança. Dança. Canta. Brinca, também. Há espaço para a alegria, para a dor, para o funk, para muito. Numa transição, brincam abertamente sobre uma cena “de teatrinho”, anunciada mesmo como recurso para o elenco ter tempo de arrumar o espaço para a próxima cena. Há alguns nós para serem desatados, mas esta Favela de Barro já sabe se construir sobre solos instáveis.

Um jaguar por noite, das 28 patas furiosas

Quando estive na instalação Parabólica dos Sonhos, das 28 patas furiosas, escrevi um relato da experiência aqui no ruína acesa que chamei de notas sobre o que transborda. Nele, disse mais de uma vez que gostaria de ter dormido ali dentro. Fui tomado pela mesma sensação em Um jaguar por noite. Algo do sonho está ali, mas parece mais voltado para um entre, para esse momento da vigília, para quando já não sabemos exatamente se pegamos no sono ou continuamos acordados.

A materialidade de Parabólica dos Sonhos segue presente neste jaguar, agora mais sintética, mais organizada; mais dramaturgia da encenação do que elementos em uma instalação. As 28 patas furiosas vão conduzindo seu público por uma narrativa que se dá em palavras, luzes e colchões de ar que se inflam e desinflam. Sentado em uma pequena almofada, eu queria deitar. Quase dormi sentado. Acho isso bom. Nas atuações, uma monocórdia que conduz a esse tédio convocado pelo momento-de-dormir. Não é cansativo, exaustivo. Só é algo que se propõe a estar nesse lugar que traz um quê de criticidade nesta contemplação.

Um exercício de atenção e desatenção. Havia uma pequena tela, longe de onde estavam elenco e técnicos de luz e som. Não vi aquele vídeo. Olhei fixamente para painéis que pareciam de led e desenhavam padrões e eram também pouso expositivo para um machado, algo que parecia um osso, um fósforo que se torcia em si mesmo. Não lembro se o fósforo era mesmo colocado ali, talvez eu tenha sonhado, ou visto, ou imaginado. Descrições e representações de sons e sonhos. Uma pilha de corpos-que-dormem. Estão vivos; sonhar é também viver. A vigília, esse espaço entre, é matéria-prima curiosa para as 28 patas furiosas. Dois terços da obra está ali, as patas compartilham. No último terço, quero dormir. Anseio por isso. Será que o público de teatro que cochila na plateia sonha uma peça?

Macário do Brazil, de Carlos Canhameiro e Quarteto à Deriva

No caos de já estar há oito dias imerso no Farofa do Processo, entrei atrasado na última apresentação deste trabalho e pude ver Macário do Brazil do canto, perdendo um pouco do que estava na cena; também, confesso, exausto e um pouco disperso. 

De todo modo, lá estava o coro dos 20 anos proposto por Carlos Canhameiro: vinte jovens, entre 19 e 20 anos, entrando individualmente, que faziam da ágora, inicialmente, um espaço de lamento por sacos-corpos sendo manufaturados na hora – como a mulher que embala seu seu filho morto no segundo episódio de Macário, de Álvares de Azevedo. Depois, todos de costas, entram Danielli Mendes, Fabia Mirassos e Nilcéia Vicente e começam a ler o texto teatral de Azevedo em tom apressado, quase “neutro”. 

Aos poucos, o coro passa a enfrentar a organização da narrativa. Em certos momentos, nem se pode ouvir as atrizes. Na relação com o Quarteto à Deriva, musicalidades variadas ganham a cena, muitas vezes acompanhadas da voz de Yantó. Canhameiro, que começou a ensaiar o trabalho recentemente, pretende mesmo insistir no hibridismo como possibilidade de encenar o complexo texto teatral do escritor, morto aos 21 anos.

Dezoito tentativas de olhar

Dezessete processos e um espetáculo em oito dias de uma programação intensa, povoada de conversas sobre teatro e encontros que só festivais com essa concentração espaço-temporal podem proporcionar. Em Os Horácios e Os Curiácios, a respeito dos tantos usos de uma lança, Bertolt Brecht escreve que “em uma coisa, existem muitas coisas”. Penso que é isso com a palavra-conceito-ação TEATRO. No Farofa do Processo, ainda que também contando com obras de dança, mas sempre no escopo das artes da cena, muitos teatros se apresentam em organizações e tentativas de descoberta. Diante da urgência de temas e presenças na cena, teatralidades da vida são incorporadas enquanto força motriz, materialidades e formas. Da música ao futebol, invariavelmente também atravessadas pelas buscas de lidar com o Real e a realidade dentro do teatro, a Farofa do Processo dá muito a pensar sobre performatividade e narratividade: o que é contar uma história? Quem conta e quais histórias são contadas pelo teatro contemporâneo? Como se pode contar uma história? O que é uma história? Em uma mostra, existem muitas mostras.

logo do projeto arquipélago

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

FAROFA DO PROCESSO
equipe

Adilson Corrado, Ágatha Louise, Alba Roque, Alexandre Simão de Paula, Aline Borges, Anderson Vieira, Anderson Nepomuceno, Angelo Fabio, Ariane Cuminale, Carmen Mawu Lima, Casarini Produções, Daniele Valério, Danusa Carvalho, Dara Duarte, Duarte Mariano, Felipe Feldman, Fernando Pivotto, Gabi Gonçalves, Gabs Ambròzia, Gisely Alves, Graciane Diniz, Jack dos Santos, Jacob Alves, Jéssica Barbosa, Jéssica Rodrigues, Jessica Silva, Jimmy Wong, José Mauro Fagundes, Juliana Augusta Vieira, Karina Gallo, Katia de Souza Jacinto, Juliana Lorensseto, Keila Maschio, Leo Devitto, Leonardo Gatinho, Letícia Alves, Lucas Cardoso, Lud Picosque, Marcia Marques, Marcus Moreno, Marilia Adamy, Marina Franco, Nátali Siscati, Nathalia Christine, Pedro Emanuel Freitas, Rodrigo Fidelis, Tamara Andrade, Tatah Cardozo, Thais Venitt, Valdir Rivaben, Vanessa Bruna, Vinicius Inacio, Wanderson de Jesus, Wiltenberg de Oliveira.