da invisível presença
crítica de Verdade, do Tablado SP (antes, Tablado de Arruar).
A verdade (pravda) do evento não é, em seu conteúdo, uma verdade (istina), identicamente igual a si mesma; é, ao contrário, a única posição justa de cada participante, a verdade (pravda) do seu real dever concreto. (Mikhail Bakhtin, em Para uma filosofia do ato responsável)
No relato parcial sobre a escrita da Trilogia Abnegação que Alexandre Dal Farra publicou na revista Questão de Crítica em 2015, o artista, olhando em perspectiva as criações do Tablado SP (à época, Tablado de Arruar), identifica que o que importa não é a coisa em si, o acontecimento, mas sim, a maneira como ela é olhada, o fato de que ela é dissecada na nossa frente e, no caso, a dissecação carrega a mesma marca do horror daquilo mesmo que é destrinchado. A afirmação é importante para lançar o olhar sobre Verdade, trabalho mais recente do grupo, com dramaturgia e direção de Dal Farra.
Antes de mais nada, pelo próprio título da obra. De qual Verdade fala o Tablado SP? Na encenação, a relação dos personagens militares com a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a proposição, escrita em um cartaz, de que ali se desdobra a Nossa Comissão da Verdade (ou seja, a das Forças Armadas), dão indicações óbvias da referência ao termo. É possível, ainda, seguir refletindo a partir da ideia de Dal Farra de que o que importa não é a coisa em si, e pensar nas observações de Slavoj Žižek e Mikhail Bakhtin sobre pravda e istina: grosso modo, duas formas de falar verdade em russo. Diz o filósofo esloveno que
(…) geralmente, em russo, existem duas palavras para representar (o que parece a nós, ocidentais) o mesmo termo – um que designa seu significado comum, outro para um uso ‘absoluto’ mais eticamente carregado. Existe a palavra istina, a noção comum de verdade como ajustamento aos fatos; e (geralmente com inicial maiúscula) Pravda, a Verdade absoluta, que também designa o ideal eticamente comprometido da Ordem do Bem. (…) não existe garantia ontológica de que Pravda poderá se afirmar no plano dos fatos (coberto pela istina). (Slavoj Žižek, em Bem vindo ao deserto do Real!)
Bakhtin distingue, em Para uma filosofia do ato responsável, o que seria uma verdade universal, feita de momentos gerais (a istina) da verdade do evento (a pravda), localizando como um triste equívoco acreditar que o que é universal e idêntico (logicamente idêntico) é verdadeiro por princípio, enquanto a verdade individual é artística e irresponsável. Neste sentido, a Verdade do Tablado SP se interessa em organizar-se enquanto pravda: uma verdade eticamente comprometida (segundo Žižek); a única posição justa de cada participante, a verdade do seu real dever concreto (segundo Bakhtin).
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A reflexão em torno do que significa a Verdade colocada em cena pelo grupo é importante ponto de partida. A obra tem como personagens toda uma sorte de generais da ativa e da reserva do exército brasileiro – como Hamilton Mourão, Eduardo Villas-Boas e Sérgio Etchegoyen – além do atual presidente Jair Messias Bolsonaro e a ex-presidenta Dilma Rousseff, entre outros. Uma voz em off localiza cada situação em datas e locais de acontecimentos concretos na história recente da política – e do militarismo – nacional, desde 2004 até os primeiros meses de 2019.
O recorte temporal e os acontecimentos-chaves selecionados acompanham, de certo modo, a proposição de Piero Leirner em O Brasil no espectro de uma Guerra Híbrida (2020, Alameda Editorial), obra pesquisada por Dal Farra durante o processo de criação de Verdade.
Segundo Ciméa Bevilaqua, em resenha publicada na Campos – Revista de Antropologia, o antropólogo aponta para os muitos ingredientes da receita desta produção de uma teoria da guerra híbrida desenvolvida por núcleos militares; destacam-se, neste século, a atuação do exército brasileiro na Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH), o acirramento de tensões entre governo e Forças Armadas provocado pela instauração da CNV e até mesmo a atuação do governo Dilma Rousseff.
É importante notar que o Partido dos Trabalhadores (PT) foi provavelmente o maior alvo da grande inversão notada por Leirner: Trata-se de um método dialético: uma constante projeção que certos agentes realizam nos seus inimigos invertendo suas posições. (…) Essas inversões sempre ocorreram, mas agora há algo de distinto nisso. Vemos o tempo todo militares e simpatizantes usando ela. E a palavra ideologia está encoberta numa cortina de fumaça; ela assumiu um tom de “conspiração”, e pertence aos “outros”.
Curiosamente, em uma chave oposta, o próprio Tablado SP já foi acusado de estar à serviço da direita quando olhou criticamente para o processo de ascensão e desgaste do projeto de poder do PT durante sua Trilogia Abnegação. Dilma Rousseff foi reeleita no ano de estreia de Abnegação I (2014); viu as ruas se encherem de protestos contra ela quando Abnegação II – O começo do fim (2015) ganhou os palcos; e foi derrubada a partir de um golpe jurídico-parlamentar enquanto a trilogia se encerrava com Abnegação III – Restos (2016).
No olhar lançado pela dramaturgia de Dal Farra (que dirigiu a trilogia ao lado de Clayton Mariano), o próprio autor identifica, em seu relato na Questão de Crítica, a operação de um bisturi do mal (conforme nomeado por Tales Ab’Saber no texto para a orelha de Manual da Destruição), plasmado naquelas personagens, situações e ações, de modo a trazer à tona uma coisa, que seria efetivamente o centro do discurso das obras – a violência profunda brasileira, propõe Dal Farra – enquanto o PT não é o assunto da peça, mas sim, a sua forma.
É recorrente nas críticas do ruína acesa aos trabalhos de Dal Farra a menção à uma violência que insiste em não se envergonhar de si; à noção de uma poética do desconcerto e à presença constante da incomunicabilidade como questão central. Sua assinatura e o desenvolvimento de sua pesquisa é visível na produção dos últimos anos – seja junto ao Tablado SP, em Pornoteobrasil (2019) ou de forma independente (mas com a colaboração de artistas do grupo), como em Branco: o cheiro do lírio e do formol (2017), Refúgio (2018) e Floresta (2020).
Verdade acompanha as linhas de força estéticas destes trabalhos: há na encenação algo de instável, algo de desagradável; ações e falas que podem simultaneamente gerar repulsa e riso na plateia. Entre os arroubos de militares tornados públicos e as tantas lacunas de segredos preenchidas por Dal Farra, o Tablado compartilha a sua leitura de uma sucessão de fatos dos últimos vinte anos que resulta assustadora. Distante das terríveis provocações à identificação do público presente nos trabalhos anteriores, com apenas momentos pontuais de convite a essa autoimplicação no discurso da obra, paira uma sensação de absoluta fragilidade diante deste teatro de operações militar, cuja posta em marcha há décadas pode ter nos trazido até onde estamos – e quem sabe aonde ainda nos levará?
No vídeo exibido em certo momento de Verdade, o então deputado federal Jair Bolsonaro comparece à Formatura dos Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras em novembro de 2014 – 11 dias antes da publicação do relatório da Comissão da Verdade, e um mês depois da reeleição da presidente Dilma Rousseff, afirma o texto da obra. Lá, recebido com gritos de líder!, acaba por realizar o que seria seu primeiro anúncio público da candidatura em 2018. Segundo a encenação, a presença do político no evento só poderia ocorrer com a permissão do Alto Comando do Exército.
Depois de eleito, Bolsonaro cercou-se de militares em seu governo. Logo nos primeiros meses, a nomeação de diversos oficiais do exército chamou atenção – e a chamada turma do Haiti (generais que atuaram na MINUSTAH) ganhou espaço em cargos estratégicos. A experiência de guerra como pano de fundo para a ação política dissolve as fronteiras entre intervenção militar, produção do Estado e exercício de governo (conforme Bevilaqua a partir de Leirner). Também entre quartel e Planalto.
Em 23 de maio de 2021, o general de divisão Eduardo Pazuello, ex-Ministro da Saúde do Brasil, participou de uma manifestação política em apoio ao (e ao lado do) presidente. O item 57 do Anexo I do Regulamento Disciplinar do Exército, estabelecido pelo decreto nº 4.346/02, classifica como transgressão o ato de “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. No início de junho do mesmo ano, o Exército decidiu não puni-lo.
A deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB/AC), autora de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que veda aos militares da ativa a ocupação de cargos de natureza civil na administração pública, tuitou na época que a sensação de que não se sabe mais onde termina o governo e começa o Exército, é o que pode acontecer de pior para esta Instituição e as demais Forças Armadas.
No mesmo tuíte, Almeida cita uma fala do general de exército Eduardo Villas Bôas, Comandante do Exército Brasileiro entre 2015 e 2019: quando a política entra por uma porta do quartel, a disciplina e a hierarquia saem pelas outras. A frase já foi dita pelo vice-presidente (e general da reserva) Hamilton Mourão e é comumente repetida por comandantes militares.
É curioso pensar nesta afirmação em um período histórico onde a participação de militares em cargos civis da administração pública disparou em relação aos governos anteriores. Ainda mais curioso é notar que o aumento é mais intenso em funções superiores, de Direção e Assessoramento Superior (DAS) e nas Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPEs), com a gestão Bolsonaro levando o ativismo militar para o núcleo duro do poder.
Não que antes disso eles já não estivessem ditando os rumos de setores estratégicos do país. Mas agora estão deixando pegadas. Talvez o marco inaugural desta hipervisibilidade do engajamento político das Forças Armadas possa ser considerado o tuíte do mesmo Villas Bôas nas vésperas do julgamento do ex-presidente Lula. A fala do então Comandante do Exército era direta e continha tons de ameaça – anos mais tarde, o general comentaria que ao menos três homens que viriam a se tornar ministros do governo Bolsonaro discutiram em torno da mensagem e o então Ministro da Defesa do governo de Michel Temer, general da reserva Joaquim Silva e Luna, agiu na direção de atenuar o tuíte.
Verdade é um esforço criativo e ético na direção de desvelar o que jamais foi nem será comentado a partir de reuniões, encontros e iniciativas colocadas em movimento por generais da ativa e da reserva das Forças Armadas com o intuito de, a partir de sua própria ideia de guerra híbrida, imiscuir-se no poder e no comando do país.
Ao Tablado SP interessa investigar (e preencher) as frestas da história. As cenas navegam entre o documento e os abismos entre intenção, palavra e ação. Enquanto generais conversam em diálogos que simultaneamente beiram o absurdo e são totalmente críveis, facilmente enxergados na boca de suas contrapartes reais, uma linha de tensão evidencia-se em Verdade: o contraste entre a autoridade investida nestes velhos homens brancos, o potencial destrutivo em suas mãos, e suas completas incompetência e inaptidão na apreensão da realidade e na elaboração de futuros é materializado através da interpretação do elenco e nas composições cênicas.
Repetições e hesitações da dramaturgia de Dal Farra são prato cheio para o elenco (André Capuano, Alexandra Tavares, Clayton Mariano, Gabriela Elias e Nilcéia Vicente) que, com anteriores experiências sob sua direção, deita e rola nas construções destas figuras quase abjetas – e com os dois pés fincados na realidade – cuja autoconsciência ficcional permite que narrem a si próprios em momentos preciosos. Seja na comicidade de Mariano como Aloízio Mercadante – eu falo esse tipo de platitude – ou na percepção do quanto a doença de Villas Bôas o afeta enquanto face do militarismo em sua condição de comandante geral; o general de fato cita sua condição e a lida com ela no seu discurso de despedida, mas em Verdade ela torna-se fagulha de uma reflexão profunda no epílogo.
Nas palavras reais do então comandante geral do exército brasileiro, há ainda a citação às bandas militares: No universo militar há ainda um componente fundamental, indutor de algumas características importantes de nosso ethos: as bandas de música. Napoleão dizia: “Ponha uma banda na rua e o povo a seguirá para a festa ou para a guerra”. Eu próprio talvez não soubesse ser militar e nem tampouco comandar sem a emulação de nossas canções e dobrados.
A trilha de Verdade constitui-se basicamente por marchas militares, aparentemente brasileiras. No que se configura enquanto espécie de ápice da encenação, a música surge extremamente alta, compondo a atmosfera que acompanhará a transformação do cenário (de Dal Farra, Stephanie Frentin e Camila Refinetti). Até então, a sóbria disposição das mesas sugeria gabinetes; o grande tecido azul cobrindo parede e chão parece remeter ao espaço do Senado Federal, onde geralmente desenham-se bandeiras nacionais. Na intensa e assertiva movimentação, o azul-congresso é tornado verde-caserna.
Um elemento central na encenação do Tablado SP são as máscaras utilizadas pelo elenco. São ao mesmo tempo realistas e artificiais. Uma fantasmagoria militar, masculina, branca, velha. Enquanto as utilizam, atores e atrizes nada dizem; ali está a pura presença daquilo que fica. Uma insistência anacrônica, uma expressão vazia mas que muito diz.
Verdade não se atém meramente aos fatos, mas parte deles para compreender seus subtextos como dramaturgia possível para rascunhar uma paisagem destes tempos. Dal Farra ora sugere, ora aponta e ora afirma nesta proposição de uma verdade do evento ampla, permitindo-se também aos próprios arroubos e lacunas. Há ainda espaço para a problematização deste nós que se opõe ao eles representado.
Enquanto Capuano mergulha em parafuso numa reflexão vertiginosa em torno de quem somos diante dos absurdos do cotidiano e da história; diante das imagens na internet e da velocidade das redes, Vicente aborda a violência que é ser lançada em uma coletividade sem ter efetivamente escolha. E ao mesmo tempo que a atriz diz EU ESTOU TENDO QUE ESTAR AQUI UNICAMENTE POR CONTA DESSA ESPÉCIE DE FORÇA PERFORMATIVA DA PALAVRA DELES, há também uma performatividade indesviável no fato dela ser a única pessoa negra em cena.
Quando Dal Farra escolhe Vicente para fazer essa cena, Verdade efetivamente racializa-se na dupla operação entre o NÓS-civis, ou NÓS-progressistas, ou NÓS-esquerda e o nós-elenco, ou nós-grupo-de-teatro, ou nós-artistas. De certo modo, é aí que a branquitude das máscaras ganha concretude em sua fantasmagoria; e é fundamentalmente nestas duas cenas (de Capuano e Vicente) que o público pode implicar-se enquanto agente do discurso.
Pois se na Trilogia Abnegação era do fim do sonho e da violência do nós que se partia enquanto formalização de linguagem, agora a ficção do Tablado SP parte do exercício de colocar-se brutalmente no ponto de vista deles para seguir desvelando como opera o bisturi do mal na realidade brasileira. Em sua Verdade, traçam-se os passos desde antes de haverem tantas e tão profundas pegadas militares em tuítes, vídeos e cargos públicos a fim de mapear essa invisível presença verde-oliva onde o fardo jamais deveria ser da farda.
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E só depois disso, só depois de todo esse tempo, longo, é que talvez sejamos capazes de imaginar algo de inteiramente novo, uma utopia de outro tipo, talvez muito mais desagradável e triste do que gostaríamos de imaginar. Uma utopia que nascerá do contato com a finitude, com o erro, com o que existe de ruim: com os fatos concretos.
E os fatos concretos quase sempre carregam um pouco de dor.
(do epílogo de Abnegação II – o começo do fim, do Tablado SP)
ficha técnica Verdade Tablado SP Texto e direção: Alexandre Dal Farra Atores: André Capuano, Alexandra Tavares, Clayton Mariano, Gabriela Elias e Nilcéia Vicente Cenário: Alexandre Dal Farra, Stephanie Frentin e Camila Refinetti Luz: Wagner Antonio Figurinos: Victor Paula Produção: Corpo Rastreado - Leo Devitto Idealização: Tablado SP Este projeto foi realizado com o apoio do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo - Secretaria Municipal de Cultura. serviço Verdade De Alexandre Dal Farra, com Tablado SP Temporada: de 14 a 31 de julho de 2022, quinta a sábado às 21h, e domingo, às 19h. Local: Centro Cultural São Paulo - Sala Ademar Guerra - Porão (Rua Vergueiro, 1000 - Paraíso - São Paulo) Ingressos: Gratuitos - Retirada de ingressos na bilheteria, 1h antes da sessão Duração: 90 minutos Recomendação: 14 anos Lotação: 80 lugares