teatro

redivivo na encruzilhada

reflexão crítica de amilton de azevedo sobre “violento.”, de Preto Amparo, Alexandre de Sena, Grazi Medrado e Pablo Bernardo, apresentado na MITbr — Plataforma Brasil, dentro da 7ª MiTsp.
(foto: Pablo Bernardo)

Em setembro de 2017, o jovem rapper soteropolitano Baco Exu do Blues lançou seu álbum de estreia, Esú. É sua faixa-título que encerra violento., apresentado na MITbr — Plataforma Brasil, dentro da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp). O trabalho, gestado a partir de uma cena curta de Preto Amparo — que, em cena, compartilha a assinatura da dramaturgia com Alexandre de Sena, também diretor (Grazi Medrado assina a produção; Pablo Bernardo, o registro em foto e vídeo) — foi apresentado com legendas em inglês.

A voz que emerge ao final — uma frase que aponta para a necessidade da responsabilização da branquitude no processo histórico que resulta na estruturalidade da violência racista de nossos tempos — é a última traduzida para a língua estrangeira. Os versos de Esú surgem como que apenas da canção que acompanha os aplausos, mas deveriam aparecer como legenda para espectadores que não entendem português: trechos da letra de Baco são potente síntese de violento.

Sinto que o mundo tem medo de mim, medo de mim. Metade homem, metade deus e os dois sentem medo de mim. (Baco Exu do Blues — Esú)

No início, Preto Amparo surge, vindo da rua. Caminha lentamente. Um pequeno carro de brinquedo o segue de perto. É um carro de polícia. O fio que os conecta está enrolado em seus dedos; há o efeito da perseguição, mas também pode-se ler que é ele quem o carrega. Por baixo do moletom, sonoridades o acompanham (Barulhista assiste na trilha sonora); sobre sua cabeça, um capuz o disfarça. Amparo sustenta um olhar incômodo frente a diversos espectadores em seu caminho. Se demora em cada um. Compartilha não apenas uma situação, mas a imagem composta.

Seu lento andar conduz o público. Tanto espacialmente quanto na direção de uma insistência que gera desconforto. violento. não faz concessões porque assim acontece na realidade. Nossa sociedade também é violenta e ponto. Amparo compõe em suas ações uma tessitura simultaneamente urgente e tranquila; não há pressa, nem rodeios. Cada um de seus movimentos parece inteiramente calculado, inclusive o despejar do café que cobre o espaço cênico.

Há em tudo a proposição de um olhar outro; um tempo que se expande para que se perceba tanto as representações já consolidadas como as possibilidades diversas do que pode um corpo negro na cena. O ponto final do título da obra contamina toda a encenação: Amparo compõe cartograficamente seu discurso — que prescinde de muitas palavras. violento. é uma encruzilhada cênica construída pelo intérprete, redivivo na água onde inicialmente se banhavam flores.

No fundo do palco, um altar: vela vermelha, ervas em defumação, as guias de Amparo. De um lado, pipoca. Do outro, o pequeno carro de polícia. No proscênio, as rosas retiradas do balde que habita o centro da cena. Alguns dos signos carregam uma bem-vinda dualidade. O lavar-se na água traz algo de renascimento, mas também a sugestão de um corpo ímpio; a pipoca que pode sugerir uma oferenda para Obaluaê, considerando a ritualística que se desenha em violento., é depois comida pelo intérprete enquanto assiste, por alguns instantes passivo, a um vídeo.

Na ação de desnudar-se, Amparo desmonta e remonta provocações: do encapuzado marginal ao corpo preto nu, sexual. Dentre as poucas palavras que diz ao longo da obra, ecoa a ideia de que começar algo é fazer com que tal coisa tenha fim. Neste sentido, talvez evoque tais representações para, pacientemente, esgotá-las. Há algo de exaustão em seu olhar, sempre compartilhado com o público; um silencioso questionamento: ainda?

Ainda, sim… Não haveria de ser diferente. Em dado momento, violento. projeta um texto que aponta diretamente para uma reação que se evidenciará em no ato de destruição contundente de Amparo. Nem sempre foi assim; talvez ainda não seja. No entanto, para além de um olhar que se volta para o passado e para o agora, é possível projetar: mais perseverante do que qualquer perseguição são os passos que meticulosamente constroem uma encruzilhada.