cinema

o banquete, a revolução e os moinhos de vento

crítica de “O Poço”, de Galder Gaztelu-Urrutia, disponível na Netflix.

[texto com spoilers]

Sobre uma plataforma, um farto banquete. Diariamente, ela descerá centenas de níveis dentro do poço. A estrutura que nomeia o longa de estreia do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, lançado recentemente no catálogo da Netflix brasileira (março/2020), parece uma versão vertical do Cubo (1997). Em comum nas duas ficções científicas que tem um quê de suspense e mergulham no terror — até mesmo um pouco gore — o mistério acerca do que, concretamente, aquilo se trata.

No caso do filme canadense, sua sequência e uma prequel (de muito menos sucesso de público e crítica) acabaram com grande parte das incertezas. Em O Poço, o roteiro de David Desola e Pedro Rivero opta por manter-se alegórico — ainda que, como um dos personagens gosta de repetir, seja muitas vezes óbvio.

O centro da dinâmica do poço é a comida. Por grande parte do filme, não se sabe ao certo o número de andares daquela prisão vertical. Mas, com certeza, a plataforma não terá mais do que copos e pratos vazios — além de um cadáver ocasional — nos níveis mais baixos.

A cada mês, a dupla que divide um nível será levada, durante o sono, para outro — mais alto ou mais baixo. Ao que o filme indica, o procedimento é aleatório; quem tem a chance de passar um tempo em um andar alto esbalda-se, pois sabe que no período seguinte pode estar lá embaixo. Assim, o sistema segue sendo cruel: quem está em cima, literalmente caga em quem está embaixo.

Neste sentido estabelece-se uma das críticas do filme, reforçada na fala de Goreng (Iván Massagué) para seu até pouco tempo amigo Trimagasi (Zorion Eguileor): seria ele o responsável por matá-lo, não “as circunstâncias”. Ou seja, sendo estas boas ou ruins, se tratariam de escolhas individuais. Mesmo já tendo estado no lugar mais baixo, as pessoas escolhessem agir de forma egoísta quando mais acima.

Quando Goreng encontra Imoguiri (Antonia San Juan), esta explica para ele a razão de ser daquele experimento. A partir disso, a crítica social proposta por O Poço é ainda mais evidenciada; é a ideia de uma “solidariedade espontânea” — e a pronta recusa de Goreng a isso — que partiria de cima para baixo no sentido da redução da desigualdade na oferta de comida. Se por um lado pode-se considerar essa premissa como uma conscientização de classe, um olhar progressista para os próprios privilégios, por outro há algo fundamental a ser considerado: a mudança efetivada nessa ação não seria estrutural.

O sistema seguiria funcionando da mesma maneira; afinal, acima do nível mais alto do poço há o nível zero — onde, aparentemente, funciona a refinada cozinha que nutre toda a engrenagem. Mais adiante, na descida de Goreng e Baharat (Emilio Buale Coka), surge a figura do Sr. Brambang (Eric L. Goode) — curiosamente, o nome dos três personagens se relaciona com alimentos e formas de preparo — como um deus ex-machina que lhes aponta para a necessidade do envio de uma mensagem; da construção de um símbolo. Algo que seja mais do que a ração de um dia para aqueles que já há muito não comem, algo que vá além daqueles níveis, daquela estrutura fechada.

Para além desta camada de leitura política do filme — cujas alegorias são bem pouco sutis — há ainda dois aspectos a se observar. O primeiro é o religioso; quando Goreng internaliza seus parceiros ao comê-los, em dado momento as vozes na sua cabeça o chamam de Messias. E é um ato messiânico, acompanhado de uma figura que se mostrou religiosa (Baharat afirma estar em êxtase e faz promessas divinas aos que poderiam ajudá-lo), a sua descida aos infernos como um herói voluntarioso — ao contrário da sequência de Parasita (2019) onde a família Kim desce para a miséria de sua própria realidade.

Vale lembrar que Goreng, assim como Imoguiri, escolheu entrar no poço — ele por motivos particulares e de certo modo fúteis (ler mais e parar de fumar); ela, por compreender seu papel na manutenção daquele experimento. Como se fosse ele o iluminado, o escolhido para a libertação. O nível final da estrutura — seja real ou dentro de um delírio do protagonista — é o de número 333. O três; ternários, a Santíssima Trindade, a ressurreição de Jesus no terceiro dia: são diversas as leituras decorrentes daí, ainda que possa ser um detalhe que passe batido no filme.

Por fim, há a interessante escolha de Goreng acerca do único objeto que ele poderia levar para o poço. Trazer consigo qualquer livro já parece uma decisão pouco prática: faria mais sentido levar armas ou ferramentas. Goreng escolhe o Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes. Será então que toda sua aventura ao lado de Bahamat (além da companhia de Trimagasi e Imoguiri em sua mente) não passou do enfrentamento de moinhos de vento? Seria seu ato revolucionário — desenhado em cenas que colocam o fim acima dos meios — inócuo frente à toda a situação?

Dentro do poço estão os 99%. Alguns com mais comida — e que poderiam, sim, compartilhar. Mas é acima do nível um que estão os 1%; o maior abismo da sociedade não está entre os primeiros e os últimos níveis, mas entre o um e o zero — do milhão para o bilhão. Pois é de fora da estrutura perversa que o sistema se sustenta — e decide como prover para todos ali dentro.

O final de O Poço não deixa apenas aberto o desenrolar do ato final de Goreng, mas também possibilita questionar-se qual foi essa ação. É possível que a mensagem tenha sido mesmo a panacota, e tudo após o nível onde ele e Baharat são duramente feridos fariam parte de seus delírios.

Neste caso, seria a mesma panacota analisada pelo chef durante o filme, cuja conclusão aparente é de que seus convidados não a comeram pela presença de um fio de cabelo? Se não, havendo mesmo uma garota, a reação daquela figura seria diferente? Independente do que acontece nos tantos níveis do poço, a impressão é de que o banquete seguirá sendo servido do mesmo modo.