teatro

tantos os tempos na meia-noite

reflexão crítica de amilton de azevedo sobre “Meia Noite”, de Orun Santana, apresentado na MITbr — Plataforma Brasil da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp)
(foto: Livia Neves)

No centro do palco escuro, a silhueta de um corpo. À meia-luz, Orun Santana constrói, na espiral que desenha com uma farinha branca, os tantos tempos que dançará. Meia Noite é a homenagem do intérprete às suas origens e formações que entrecruza ancestralidades e devires no seu corpo em movimento.

Filho do Mestre Meia Noite e de Vilma Carijós, fundadores do Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo da comunidade do Chão de Estrelas (Recife/PE), Santana traz na corporeidade uma inevitável capoeira. Parte dela enquanto matriz de criação — o que ecoa no movimento, nas sonoridades e na materialidade da cena.

Ao terminar de compor a espiral no espaço cênico, Santana volta ao centro. A iluminação de Natalie Revorêdo entrecorta-o. As partes de seu corpo iluminadas também sombreiam o chão, marcado por aquele redemoinho estático. Ali, recortes espaço-temporais a serem habitados pela encenação.

Santana começa então a dançar — assim como faz a luz de Revorêdo. Seus movimentos espalham a poeira branca; os tempos se agitam. Meia Noite desenha-se como um ciclo não-linear entre passado, presente e futuro. Vida, morte, nascimento. Além dos tantos tempos deste nome — que é também uma sugestiva hora — Santana também traz em seu corpo muitos corpos.

Na cenografia de Victor Lima (que também assina o figurino), é como se altares estivessem organizados em diferentes locais do palco. Quando Santana adentra estes espaços, narrativas outras se estabelecem: sua relação com a materialidade de cada nicho articula códigos diversos. Entre questões simbólicas e concretas, é nestes movimentos que o intérprete transporta o público pelas tantas ancestralidades que se estão sendo evocadas.

A sonoridade do berimbau é recorrente na trilha de Vitor Maia, assim como na cena. São três deles, de diferentes afinações, suspensos e mais um, microfonado — todos tocados por Santana. O reverb adicionado ao som de um deles traz sensações afrofuturistas à encenação.

Em mais um momento onde a dramaturgia da luz de Revorêdo se apresenta central para a encenação, somem os recortes: o palco, inteiro às claras, parece ter fechado as janelas dos tantos tempos e lançado a ação ao presente. É aqui e agora onde Santana traz a capoeira como luta e carrega no seu corpo representações da violência genocida cometida contra a jovem população negra e periférica no país.

O tema surge primeiro de forma sugerida; depois, talvez para que não reste nenhuma dúvida, som e luz atiram em seu corpo, que cai. O ciclo de Meia Noite segue. Vida, morte, nascimento. Santana levanta-se como animal selvagem. Seu corpo pulsa enquanto fera e, na ação, torna-se também domesticador — nunca o domesticado.

Depois, brinca. Passeia por códigos de reconhecíveis manifestações culturais pernambucanas — do frevo ao passinho — e pelo público. Um corpo negro vivo. Honrando ancestralidades passadas, projetando devires futuros. Após tudo dançado, uma luz trêmula se esvai e resta, no escuro, uma voz que ecoa o lamento negro — depois dela, ainda virá um canto. São muitos os tempos da meia-noite.