testemunhos, narrativas e acontecimentos
reflexão a partir dos solos “Aquele Trem” e “Selvageria: o nascimento do outro”, da Cia. DesaFRONTe (apresentados na Mostra Solo Mulheres do Teatro de Contêiner Mungunzá), do filme “O acontecimento”, de Audrey Diwan (baseado no livro homônimo de Annie Ernaux) e do debate promovido pela revista CLAUDIA, editora Fósforo, Reserva Cultural e Livraria no Reserva no dia 12 de julho de 2022.
Segunda-feira estive no Teatro de Contêiner Mungunzá. Na programação da Mostra Solo Mulheres, com curadoria de Tati Caltabiano, dois solos foram apresentados em sequência: era o “Trem Selvagem”, da Cia. DesaFRONTe. Pensá-los enquanto díptico foi observar um retrato-grito-manifesto em torno do tornar-se mulher e do fazer-se mãe; questões de gênero atravessadas por geografias, raça e classe.
No início de “Aquele Trem”, Denise Dietrich convoca o público a tornar-se cúmplice da narrativa que irá apresentar. Pensei nas dimensões disso: movem-se mundos. É muito. Nas memórias (e também fabulações, como ela mesmo aponta) de infância, Dietrich compõe uma teia entre os tantos acontecimentos na vida de uma menina em um ambiente rural. Lá estão violências diversas; e na formalização em si se percebe a busca constante por referenciais, ainda que instáveis, de mulheres e vidas e linguagens que vieram antes. Me ecoa “Se deus me chamar não vou”, de Mariana Salomão Carrara, na voz narradora-protagonista de uma criança, que vê o cotidiano do mundo com certa ingenuidade, mas nenhum verniz de tolice.
Após os aplausos, a diretora Erica Montanheiro falou ao público sobre estes tempos. A cada dia é uma nova notícia; mais uma violência direcionada ao corpo de uma mulher. Montanheiro falou sobre estarmos ali: sobre ver e ouvir aquela narrativa; sobre ver e ouvir narrativas pouco comuns na história hegemônica do teatro ocidental. Narrativas de mulheres, contadas em primeira pessoa. Sobre como estar ciente de tais narrativas carrega em si a faísca para uma transformação que começa pelo imaginário.
“Selvageria: o nascimento do outro”, de Bruna da Matta, começa com um registro em vídeo da artista com seu filho. O som do impacto de sua queda da cama permanece na memória do espectador por muito tempo. O solo sobre maternidade aos poucos se revela mais e mais complexo. Sob a direção de Maria Giulia Pinheiro, “Selvageria” sobrepõe mitos, memórias e histórias numa composição perturbadora em torno dos medos do mundo e de si, materializados num caos de brinquedos e nos espasmos do corpo de Matta. O tema se abre como num rasgo (da violência obstétrica, também) e atravessa-se na racialização da pessoa branca; alteridade, medo, selvageria e a violência do “natural” se apresentam ali, sem concessões.
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Volto para casa movido pelas duas obras. Reflito sobre seus temas, sobre suas pesquisas de linguagem. Sobre a autobiografia, sobre a autoficção. Sobre representar a si mesmo, sobre não representar. Sobre pactos, convenções, a verdade, ser enganado. Sobre a fala de Montanheiro e as narrativas que precisam ganhar mundos. O contar como necessidade íntima e o desejo de tornar público o trauma como possibilidade de combate.
Terça-feira, vou a uma sessão de “O acontecimento”, filme de Audrey Diwan que adapta para as telas o livro homônimo de Annie Ernaux. A câmera sempre tão próxima da protagonista Annie (Anamaria Vartolomei) me lembra da perspectiva de “mãe!”. Diwan faz com que o público acompanhe demoradamente o que se passa com a jovem garota. Lembro do desconforto que senti em “A Vida Invisível”. Enquanto escrevo, penso também, por algum motivo, em “Azul é a cor mais quente”. Me dou conta que todos os filmes que citei foram dirigidos por homens.
“O acontecimento” é sobre aborto. É sobre um episódio da vida de Ernaux. É autobiográfico. O livro (que não li) resulta enquanto uma ode à escrita – no filme, isso está ali. Quem apontou para isso foi Maria Carolina Casati, professora e escritora, idealizadora do @encruzilinhas, uma das convidadas do debate que sucedeu a exibição.
A sessão foi promovida numa parceria entre a revista CLAUDIA, a editora Fósforo, o Reserva Cultural e a Livraria no Reserva e contou com uma conversa, mediada por Paula Jacob, editora-chefe da CLAUDIA e jornalista especializada em cinema e literatura pelo viés da psicanálise, entre Casati, Stela Barboza (gestora e psicóloga na operação Milhas pela Vida das Mulheres) e Carolina Jabor (diretora, produtora e roteirista).
Foi Jabor quem disse uma palavra que me motivou a escrever essa reflexão. Ela chamou “O acontecimento” de um testemunho de Annie Ernaux. Um testemunho. Foi a escolha da palavra que deslocou meu pensamento. Fui ao google para pesquisar sua etimologia, seus sentidos, seus usos. Cheguei na Wikipedia, que não foi exatamente o que eu esperava. Porém, a partir dela fui parar no artigo de um professor chamado Castor Bartolomé Ruiz chamado A testemunha, um acontecimento. As duas palavras, ali. No texto, partindo do pensamento de Giorgio Agamben, Ruiz versa sobre o lugar da testemunha (e do testemunho) diante da barbárie – notadamente, fala sobre estados de exceção; mas é possível pensar no recorte deste breve ensaio. Cito três trechos, com grifos meus:
No anverso do esquecimento da barbárie resiste a testemunha. A testemunha tem um estatuto epistemológico próprio a respeito da verdade histórica. Sua relação com o acontecimento da violência lhe confere uma potencialidade política singular. A testemunha retém a memória direta da barbárie; ela contém a possibilidade de desarmar o pretenso naturalismo da biopolítica.
Poder narrar o fato é ter o poder de criar o sentido do fato. O poder de criar as narrativas sobre a violência e a barbárie se torna uma outra luta política em que o simbolismo da narrativa se constrói como acontecimento.
A narrativa da vítima se funde com a sua experiência como testemunha do acontecimento originando um novo acontecimento: o testemunho.
Narrativa e experiência fundem-se na origem de um acontecimento: o testemunho. Trata-se de uma perspectiva poderosa; uma ferramenta valiosa no lançar-o-olhar na direção de obras formalizadas a partir destas concepções – seja da busca pelo (ou resgate do) legítimo autobiográfico, seja no enquadramento ficcional de memórias de traumas e vivências. É comum nos depararmos com obras em primeira pessoa nestes tempos. Também é comum pensarmos nos binários privado/público e análise/arte.
Considerar o caráter político inerente ao testemunho em si pode fornecer caminhos mais complexos e genuínos para construir reflexões críticas a partir de tais trabalhos. Evidentemente que é difícil abrir mão de pressupostos estéticos – ainda mais quando eles se veem entrecortados por questões éticas e políticas. Mas neste movimento (avassalador) de se levar à cena opressões, abusos e/ou agressões sofridos pelas pessoas envolvidas diretamente na criação, principalmente as que ali interpretam e ressignificam suas experiências, há de se considerar a potência do ato público de desnaturalizar algo muito além do vivido pelo indivíduo: o que se verifica são violências estruturais inerentes à roda dentada do capital, patriarcal, racista, sexista, homofóbico, misógino, transfóbico, capacitista e tragicamente tanto tanto mais.
“O acontecimento”, de Ernaux, no filme de Diwan, não é um momento específico exibido ao longo da busca da protagonista pelos meios de concretizar sua decisão. O acontecimento é a obra: é Ernaux ter escrito sobre o que viveu. É Diwan ter adaptado o que Ernaux escreveu sobre o que viveu para o cinema. É estarmos ali, acompanhando aquela narrativa tornada testemunho tantos anos depois da experiência. Acompanhando o ocorrido nos anos 60 e pensando sobre os nossos tempos. Reverberando o testemunho como ferramenta poderosa do não-esquecimento; do movimento.
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