teatro

sim, vamos falar de violetas

crítica de “SENTA {sobre ser um ser humano}”, com direção de Nelson Baskerville

foto de Gabo Morales

“SENTA {sobre ser um ser humano}”, é o espetáculo resultante do Estúdio da Cena, projeto de pós formatura do Célia Helena Centro de Artes e Educação. Atores formados pela escola, há mais ou menos tempo, dirigidos por Nelson Baskerville. O espetáculo “antropofagiza” o cineasta sueco Roy Andersson, além de trazer diversas outras referências – de poetas à fotógrafos, passando por bandas de rock e pintores expressionistas – culminando numa criação única, caleidoscópica e complexa; como uma colcha de retalhos, porém magistralmente alinhavada.

Baskerville assina a adaptação da dramaturgia, assumidamente uma tentativa de condensar três filmes de Andersson em uma encenação. Não conheço as obras cinematográficas; tomei a decisão de escrever este texto sem assistir aos filmes do sueco, para me ater às realizações da peça enquanto experiência teatral em si mesma, e não para analisar se “fez jus” ao original. Talvez, após ver a trilogia cinematográfica, resultem outras interpretações do espetáculo.

A sinopse apresenta como trajetória central a história de Kalle, o capitalista que incendeia o próprio negócio a fim de resgatar a apólice de seguro. Seu filho, Tomás, aparentemente enlouqueceu – a primeira cena do espetáculo, uma encenação do clipe de “Just”, do Radiohead, mostra ele tomando a decisão (que remete também ao Bartleby de Melville) de não mais seguir: ele se deita no chão e nada nem ninguém o faz mover-se; depois, carregado por outros atores, passará o resto do espetáculo sentado, internado em um manicômio ou instituição semelhante, paralisado por não se sabe bem o que. Kalle acredita que ele enlouqueceu por estar escrevendo poesias, visão que não é compartilhada por seu outro filho, Stefan, que tenta comunicar-se com Tomás a partir de uma de suas poesias – na verdade, trata-se da linda e confusa “Traspié entre dos estrellas”, do peruano César Vallejo.

Este poema será repetido ao longo do espetáculo – o próprio título, “SENTA”, é referência à um de seus versos: “(…) amadas las personas que se sientan, (…)” – e traz consigo uma mensagem no mínimo interessante. Apesar de conter mais trechos do que os apresentados em cena, grande parte de “Tropecei em duas estrelas” é constituído pelos versos de amor declamadas em cena: que “amadas sejam” pessoas das mais distintas categorias que se observadas individualmente parecem não constituir um grupo bem definido, em uma vista mais ampla, representam a todos.

Em uma leitura simples e talvez até óbvia, coloca-se em questão portanto a paralisia do artista frente ao concreto do mundo, onde o sensível cada vez menos tem vez. E de fato, esse concreto da realidade torna-se o grande alvo do espetáculo. Articulado em diversos quadros, onde outras trajetórias também se desenvolvem – um tema que será tratado mais a frente – somos transportados entre o absoluto pessimismo e epifanias esperançosas de outros possíveis.

O primeiro advém do tratamento dado à existência do ser humano, muito apresentada reduzida a desejos de consumo, sendo puramente baseada em relações mercadológicas. É como se fossemos reduzidos ao sistema que nos circunda e, em muitos casos, nos oprime. As duas cenas intituladas “reflexões sobre a morte” tratam dessas relações quando alguém deixa de viver: o que fica de nosso no mundo e o que levamos conosco? Como o material e o imaterial dialogam? Tal reflexão também acompanhará a trajetória de Kalle, perseguido por um fantasma de um amigo, Sven, a quem devia dinheiro. Com a morte, a dívida se foi; o espírito, no entanto, o assombra.

Já as epifanias surgem as vezes como gritos: são os momentos de ruptura com a visão estruturada a partir das vozes hegemônicas de nossa sociedade. Em um deles, em meio à uma coreografia hipnotizante, ambientada em uma balada qualquer, um homem conta a outro sobre violetas. Violetas que nascem nos pés das montanhas e rompem com as rochas para nascer em seus topos. A metáfora talvez até possa passar batido frente às imagens em movimento compostas pelos atores dançando, a música alta – a trilha sonora tem diferente serventia; se em momentos conduz, em outros confunde – mas é exemplar. O outro homem, que ouve o primeiro, menospreza a história. Ao longo do espetáculo, o simbólico será sempre rechaçado pelo concreto.

Isso, que fique claro, enquanto discurso. Pois a grande potência de “SENTA” está em suas imagens e sensações provocadas no público. Tais imagens se sustentam em alguns pilares: a encenação de Baskerville e a direção de arte de Thais Junqueira, as coreografias de Joana Mattei, a luz de Lui Seixas e o encontro de tais elementos com o corpo dos intérpretes. Há, por exemplo, na trajetória de Inaê, indígena em processo de catequização-colonização, imagens fortíssimas que nos lembram da barbárie que contém o processo civilizatório. Única figura à fugir dos tons pastéis do figurino (assinado pelo coletivo, com supervisão de Marichilene Artisevskis), é seguidamente tolhida de suas liberdades e unicidades para ser integrada à nossa sociedade.

Ah, a nossa sociedade. Pois fazemos, sim, parte dela. E somos lembrados disso a todo momento, de nossas incapacidades, nossos anseios, nossas paralisias. Na construção do espetáculo, o numeroso elenco se reveza em diversos personagens. No entanto, algumas escolhas parecem possibilitar a leitura de trajetórias de figuras as vezes nem nomeadas. O membro da fanfarra que recebe péssimas notícias de seu banco e as narra enquanto faz amor é representado pelo mesmo ator que nos apresenta o pesadelo de um trabalhador do comércio informal; nos dois casos, tão terrível quanto os acontecimentos são a reação destas pessoas – na realidade, a ausência dela; uma inação frente aos horrores da variação da poupança e da invenção da cadeira elétrica. A atriz que representa a garçonete do bar também limpa os vidros, varre o chão, afasta as folhas, arruma cadeiras… Em alguns momentos, sua presença em cena pode até passar despercebida – e aí somos remetidos imediatamente a ideia da invisibilidade social inerente a algumas profissões.

Estas trajetórias outras, que trazem leituras possíveis, talvez não tenham sido planejadas a priori, mas sim, surgido ao longo do processo criativo do Estúdio da Cena. Vale observar, no entanto, como o espetáculo traz consigo uma enorme teia de referências que cada vez mais parece se expandir para um número maior de camadas de compreensão – e a construção do todo, depois de um necessário tempo de digestão desta já chamada colcha de retalhos, acaba por fazer muito mais sentido do que pareceria inicialmente.

Grande mérito da encenação de Baskerville é, ao mesmo tempo em que escolhe muito precisamente seus alvos, não deixa de se manter dialética em sua construção, seja na relação entre texto e imagem, seja nas provocações lançadas sem resposta, seja nos deixando sem saber exatamente o que pensar de tudo isso. E, principalmente, mesmo em sua estrutura absolutamente épica, nos aproximar daquele retrato pessimista e esperançoso que afirma, nos lembrando que somos parte disso tudo, que “ninguém pediu desculpas”. Nenhum de nós é isento, nenhum de nós está alheio, nenhum de nós é uma ilha. Outra mensagem que finaliza o espetáculo é “não servirei”. Se a referência é bíblica (a frase é atribuída a Lúcifer, rejeitando a obediência divina), dentro do espetáculo ela se redimensiona e nos dá apenas uma certeza: a este inimigo, não servirei; se eles não potencializam o simbólico, que nós fiquemos com a poesia. Amado seja todo aquele.