teatro

nós, sublimes

crítica de “Pessoas Sublimes”, da Cia. Os Satyros

foto de André Stefano

“Pessoas Sublimes”, dos Satyros (texto de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, com direção de Vázquez), nos lembra desde o início que o teatro ainda pode ser o espaço do faz-de-conta. E que isso não deve ser visto como algo menor. Em tempos de experiências cênicas e narrativas pós-dramáticas, o desenvolvimento dramático de uma intrincada fábula entre habitantes, mortos e vivos, de um condomínio suburbano da cidade de São Paulo já é potente o suficiente para sustentar a encenação; apesar desta ainda fazer uso de diversos recursos épicos, talvez apresentando um excesso de explicações sobre pensamentos e atitudes de personagens em comunicação direta para o público, reduzindo o tamanho do poema a ser completado pelo espectador – além de momentos performativos, esses sim típicos de nossa contemporaneidade.

Na sólida proposta de linguagem do espetáculo, cabe aos momentos de apresentação das personagens a captura do espectador para aceita-la e seguir de mãos dadas com tais criaturas, míticas na aparência e na construção precisa – as vezes estridente – da interpretação, mas essencialmente humanas quando trata-se de identificação. Suas narrativas são muitas, e quase sempre apresentadas de forma dialética: o excessivo apego às lembrança de Imaculada contrapõe-se a “desmemoriação” de Sonata; a violência executada por Arcanjo em jogos virtuais, por Melodia em seu discurso e as sofridas por Desatino em seu passado; o amor transcendente de Tulipa e o possessivo de Uilso; a realidade tão exata e numérica para Tresvario se mostra muito mais poética para Delírio… Todas, no entanto, são igualmente humanas.

O fio condutor escolhido para abrir e encerrar o espetáculo é o assassinato de Dorisdei, que nos remete à infindáveis casos similares e ainda, na voz de Doris Day, nos lembra que “o que será, será” – a humanidade seria, então, uma sequência de inevitáveis? Os dois representantes da juventude, Arcanjo e Dorisdei, são retratos tristes e desesperançosos das novas gerações – um absorto em realidades virtuais, outra em expectativas irreais.

Ao localizar estas figuras num espaço absolutamente real – um condomínio fechado no extremo sul de São Paulo, que acaba por servir de microcosmo para a representação não apenas da sociedade (algo apontado na relação exposta por Uilso entre moradores do condomínio e seus funcionários) mas da humanidade enquanto existência maior, transcendente, como somos lembrados a todo instante nas aparições e reflexões espirituosas (mas nem por isso menos reais) de Delírio – somos lembrados de que são histórias, em sua maioria, de pessoas comuns. Está na elaboração de tais histórias sua sublimação, na compreensão psicológica da palavra; torna a existência delas, ao mesmo tempo que as nossas, elevadas.

Por que, então, se tão humano e particular, o fantástico como mote, como ambientação cênica e caracterização das personagens? Talvez seja assim que queiram que seja construída a lembrança da pequena fração de tempo em que habitaram esse planeta, da mesma forma que Insanio buscava a melhor foto para registrar a existência daqueles que já não o habitam. Ou talvez seja para nos lembrar que o que nos cabe neste instante em que estamos vivos transcende o humano e todas as suas misérias. Mesmo que não possamos evita-las. O filtro do fantástico nos lembra, pois, das tragédias, do patético, do onírico do real.