heróis gregos não sabem dançar
crítica de POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA, do Grupo MEXA. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
“O poder insuspeitado das ficções é o de ser cimento do mundo, (…) tudo o que está construído precisou, antes, ser imaginado.” (Jota Mombaça, Ñ vão nos matar agora)
“É preciso andar mais solta pela escavação e se preocupar menos com os fósseis. Não somos arqueólogas, somos filhas da puta com pressa de mudar o nosso meio. Não se pode voltar atrás. A origem está adiante, é o futuro, está nos esperando.” (Paco Vidarte, Ética Bixa)
No início dos anos 2000, havia um quadro do programa Topa Tudo Por Dinheiro, comandado por Sílvio Santos, onde uma pessoa participante deveria descrever um objeto colocado diante de si para outra pessoa, que deveria desenhá-lo e assim adivinhar do que se tratava. POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA, do Grupo MEXA, parece utilizar um dispositivo semelhante: uma ópera baseada na Odisseia cuja maioria da equipe criativa nunca viu uma ópera e muitas não leram nenhum canto do texto de Homero.
Essa síntese pode soar absurda, e essa POPERÓPERA bebe de uma ingenuidade radical – que não é, em absoluto, ingênua – para fazer de suas versões do épico grego possibilidades de criar arquivos em torno daquelas existências. O MEXA é criado no contexto de episódios de violência ocorridos em abrigos e casas de acolhida, tendo em sua equipe uma diversidade de origens, dissidências e vulnerabilidades; conforme o release, “é composto por mães, pessoas negras, trans e LGBTQIA+, artistas da cena e ativistas”.
A estrutura da encenação remete à de festas noturnas, com seus telões espalhados pelo palco que avança na direção da plateia com runways; nada mais propício para esta POPERÓPERA onde a maestro é a DJ Podeserdesligado e as anti-árias que contam dessa travessia TRANSATLÂNTICA se apresentarão como que em um ball flamboyant, onde a mestra de cerimônias Aivan vai de narradora épico-trágica à chanter.
Dividida em dois atos, a obra com dramaturgia e direção de João Turchi insiste em um constante dizer o que foi e o que viria a ser; e isso se torna o que ela é, o como se desvela diante do público a cada apresentação, numa temporalidade que sobrepõe processo, viagem e estreia na Europa, volta ao Brasil e o momento presente. A Odisseia está de fato dada neste movimento do MEXA, nessas idas e vindas sobre o Atlântico que não se deram por uma guerra, mas por uma obra. Não há Penélopes à espera e o final da tortuosa travessia põe em xeque a própria ideia de lar. O que é falar de um mito de retorno quando não há Ítaca para voltar?
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Um letreiro anuncia que POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA habita algum espaço-tempo entre a tragédia grega e a guerra das ficções e então talvez a obra seja também um campo de batalha. Aivan, Alê Tradução, Anita Silvia, Daniela Pinheiro, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz e Tatiane Arcanjo são protagonistas de suas tantas pistas de dança, cada uma marco de uma trajetória singular. Nos quadros, quase sempre solos que fazem balançar o olhar entre individualidade e comunidade; em especial no primeiro ato, onde as MEXAeias – jogando com a personalização feita do termo Odisseia ao longo da encenação – fazem de cada performer algo de um herói grego.
É como se nesse movimento, entre identificação, admiração e invenção na relação entre as biografias tornadas cena e figuras míticas da Odisseia (mas não só), o MEXA operasse criações de si, fazendo do teatro um território propício para o tornar-se sujeito através dos enquadramentos de ficção e do jogo com o real. Os registros em vídeo que surgem ao longo da obra, em especial aquele que inicia o segundo ato, fazem com que POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA jogue com o que Vivi Tellas chamou de Umbral Mínimo de Ficção, “esse limiar em que a realidade em si parece estar fazendo teatro” (“ese umbral en el que la realidad misma parece ponerse a hacer teatro”, dito em entrevista a Alan Pauls, presente na publicação Biodrama).
A encenação não se enquadra exatamente na linguagem do biodrama desenvolvido por Tellas em Buenos Aires no início dos anos 2000, mas há um jogo entre vida e cena que faz interessar pensar na teatralidade daquelas realidades compartilhadas no palco e na performatividade que norteia a linguagem da encenação. Citando Paco Vidarte, “é preciso andar mais solta pela escavação e se preocupar menos com os fósseis”: as narrativas são quase cosmogônicas, profecias autorrealizáveis, pois “a origem está adiante”.
Das Odisseias cotidianas, uma formalização em manifesta: POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA é uma celebração de travessias, um dançar em mares de tormenta, uma construção de registros inventados de vidas atravessadas por ficções desejadas. Há na estética do trabalho como um todo – nos usos do vídeo assinado por Laysa Elias, na cenografia e no light design de Luzco, e nos figurinos de Anuro Anuro e Cacau Francisco – algo que um futurismo difícil de nomear. Transfuturismo? Fluxofuturismo? MEXAfuturismo? No embaralhar de tempos míticos e realidades urgentes, é sobretudo um futurismo do agora, dando-se a ver e fazendo-se existir em sua duração.
Como no quadro de Topa Tudo Por Dinheiro, mais interessante do que a descrição de uma raquete de tênis para que ela seja desenhada nos conformes é o insuspeito pedido para que se “desenha o arcoíro“. A subversão do MEXA caminha por uma poética da ingenuidade – que, mais uma vez, não é nada ingênua – onde as irrupções do real caminham lado a lado com o deboche; uma despretensiosa pretensão que permite à POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA rir de si mesma, de sua trajetória, das situações vivenciadas, das dificuldades enfrentadas, da delicadeza e da densidade da matéria tornada obra.
Nessa caótica coletividade nada-grega, Hermes é capoerista, Penélope tece para si própria um corpo que dança, Odisseu canta em línguas que não fala, Ninguém (não) é DJ, Tirésias some mas não morre. E também há uma Medusa que quer ter seus longos cabelos vistos por todes, um Moisés que abrirá o mar do público para profetizar, uma narradora homérica que não pôde narrar a estreia e, por quê não, uma tentativa de stand-up comedy.
As odisseias das personagens desta POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA são histórias que Paco Vidarte, em sua Ética Bixa, aponta que “gostaria de ter escutado quando pequeno, histórias de antinormalização, antiintegração: faça o que souber, utilize suas armas, o que tiver, tire o maior proveito e rendimento, não esconda suas plumas, invente coisas para fazer com elas além de arrastá-las pela lama e torrá-las na pedra. Que não lhe vendam a ideia de ter que ser como aqueles que são, de que com esforço, vontade e resignação você vai ser igual à maioria, igual a todo mundo”.
POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA é então esse mar primordial de gêneses dançantes que, ao confrontar uma fábula e um gênero artístico tão tradicionais da cultura Ocidental, faz emergir algo de pulsante, uma coisa-outra na cena. No meio dessa ópera balada, Daniela Pinheiro compartilha o comentário feito por Anita Silvia sobre uma crítica publicada durante as apresentações na Europa: talvez, enviando ela para a Defensoria Pública, Anita consiga a vaga com cuidador que solicitou em uma casa de acolhida. Odisseu cruzando mares, o MEXA cruzando oceanos; muito se enfrenta e difícil mensurar o quanto se pode transformar com um espetáculo teatral. Heróis gregos não sabem dançar, e as vidas continuam dentro e fora das pistas. Que elas sejam contadas, imaginadas, cantadas, dançadas, celebradas e lembradas.
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serviço POPERÓPERA TRANSATLÂNTICA De 9 a 26 de novembro, quinta-feira a sábado às 20h e domingo às 19h. Casa do Povo – Rua Três Rios, 252 – Bom Retiro, São Paulo. (11) 3227-4015 | casadopovo.org.br | 120 lugares. 90 minutos | 18 anos | Gratuito (ingressos distribuídos uma hora antes de cada sessão). ficha técnica Criação – MEXA. Dramaturgia e Direção – João Turchi. Concepção Original – Daniela Pinheiro. Performers e Cocriadores – Aivan, Alê Tradução, Anita Silvia, Daniela Pinheiro, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz, Tatiane Arcanjo. Video Performer, Criação de Vídeo e Direção Técnica – Laysa Elias. Produção de Elenco e Concepção Visual – Lu Mugayar. Light Design – Luzco. Trilha Sonora e Sound Design – Podeserdesligado. Figurino – Anuro Anuro e Cacau Francisco. Assistência de Direção e Produção Local – Lucas Heymanns. Preparação Vocal – Mário Sevílio. Coreografia e Preparação Corporal – Daniela Pinheiro. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Agradecimentos Especiais – Amy Letman, Carol Mendonça, Duda Devassa, Dudu Quintanilha, Esponja, Francesca Tedeschi, Gabi Gonçalves, Guilherme Giufrida, Mamba Negra, Olivia Ardui, Ricardo Frayha. Realização – Casa do Povo, Transform (Leeds), Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas e Ministério da Cultura do Governo Federal.
Alé tradução tá ok
Vamos lá para aproxima cena,poetisas .mais uma luta,e nela levar alegria e emoção,