mostra urgia #1: escrita(s) em processo
texto a partir da programação do primeiro dia da MOSTRA URGIA no Desterro (RJ). amilton de azevedo está na programação do evento. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Nos primeiros dias de dezembro de 2023, o Desterro ateliê, espaço cultural localizado na Glória, Rio de Janeiro, recebe a MOSTRA URGIA. O movimento da URGIA é capitaneado por João Ricardo e Lane Lopes, dramaturgos interessados em construir espaços de fala e escuta em torno de escritas em processo. Para a produção da mostra, ganham a companhia de Filipe Félix e Juliana Thiré, do Desterro, e de Gabriela Perigo, e ela “não acontece sem toda a galera que vem e volta nos encontros da URGIA”, como dizem na divulgação.
Faço parte da programação do segundo dia, sábado (no caso, pra mim, escrevendo, hoje), com um compartilhamento performativo chamado palavra crítica palavra. Para além desta ação, também estou me propondo exercícios de escrita (e de participação) e este texto é também escrita em processo. É sobre a programação de (ontem) sexta-feira. Primeiro, uma experimentação com a Crítica Dentro, formato proposto por Ruy Filho na Antropositivo e já desenvolvido aqui na elaboração do texto sobre AGAMENON 12H. Durante a abertura da MOSTRA URGIA e a leitura de Miriam, texto de João Ricardo, escrevi as palavras abaixo do modo exato como as publico, passando apenas por uma pequena revisão textual.
Depois, alguns esboços de palavras em torno da performance-banquete De onde vem a língua, de Gabriela Perigo, cuja dinâmica literalmente impossibilita uma escrita que acompanha a fruição-alimentação; e também outras sobre a leitura em coro de Os soldados-músicos, de Juliana Thiré, que de algum modo participei. A ideia é que sejam publicados três textos, um para cada dia da MOSTRA URGIA, com as dimensões, formatos e conteúdos que fizerem sentido e forem possíveis.
algo sobre a abertura da MOSTRA URGIA, o Desterro e Miriam, de João Ricardo
algo próximo das 21h
atraso é também espaço de convívio
piquete de sexta [e não de quinta]; e a possibilidade da continuidade do movimento como potência pra que de fato algo se consolide. é só na repetição, na insistência, no seguir fazendo.
e o espaço físico. a importância de um endereço, de um lugar, de um território de fato onde se pode pousar para então aprender o voo. leituras, processos, debates, uma ideia de construir coletivamente obras, em confronto, em conflito, em contradição.
a força da palavra e o presente do tempo, da escuta, do olhar. leitura e compartilhamento; Lane fala em generosidade e é o que se vê na relação entre as pessoas, entre essa comunidade que se forma e reforma nessas ações.
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“somos chatos e lentos; em compensação, construímos laços fortes”
juliana thiré
é importante nomear, destrinchar, falar e ouvir sobre onde se pisa, quem está aqui, quem faz, o que se espera, o que pretende e o que se consegue e atinge.
e uma festa/uma noite
de muitos motivos
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uma peça escrita para os amigos e o lamento pela ausência de um deles.
o início como um pedido: alguém que possa representar aquele que não pode se autorepresentar nessa noite.
Miriam
João Ricardo; 2021-2023
Mas nós – morrendo em Teatro –
Teatro – que nunca morre –
um gato passa diante do telão enquanto Emily Dickinson é lida e é ele uma própria fantasmagoria
como Deus, Povo é também maiúsculo e o é o País e o Encanto. a materialidade da escrita e o que significaria caso não a víssemos projetada diante de nós. e Música também. e Poder.
e a reinauguração da monarquia imperial na linhagem de Bolsonaro como movimento inicial
TODOS em maiúscula e o tanto que reforçar a palavra em si já significa.
e o beat do funk que ressoa no fundo e estamos no Rio de Janeiro e é sexta-feira a noite então o lugar descrito sobrepõe-se ao que existe e nada se impõe mas ficção e realidade podem coexistir enquanto ouço a moto que passa.
uma violinista. que toca o hino. que quebra o violino. e é descrição, narrativa, não rubrica de ação e o efeito da descrição e o efeito da ação o desenho o contorno que se pode dar no dizer que é distinto daquele construído no ver fazer.
e então coralidade que se faz na coletividade aleatória e as vozes galopam como o galopar na descoberta de tônus e tempos de quem fala e como fala.
a palavra cupim.
os que veem aquela praça os que vão àquela praça e o osso, o osso, o osso, e o silêncio.
o piquete, essa possibilidade, é também recomposição do texto enquanto materialidade instável,
ler os silêncios; e o que fica de ideia de quem são essas personagens que são essas pessoas que estão lendo e eu não conheço e não é biodrama nem autoficção é uma dramaturgia para eles elas elus escrita para amigos amigas amigues e o grau mínimo da ficção mas ao mesmo tempo absolutamente ficção e então o hino é matéria e o País em desfaçatez e disputa.
carregar ossos enquanto se quer superar símbolos e o texto uma despedida “vamos enfrentar esses ossos” e volta e volta o hino
a dureza dos ossos ossos ossos e um chão que não é firme e resiliência e todas essas palavras que são qualidades de sólidos materiais e que viram outra coisa
subitamente outro tempo se instaura e grilos e até o clima parece mudar um gato mia e a dúvida desse grupo diante de ossos e um churrasco sem carvão e o que vai vir e o que fazer “tanta coisa para queimar nesse mundo”
uma metaperformatividade ficcional – eu posso falar isso ou na verdade não faz nenhum sentido localizar esse cruzo assim?
honrar com carne as relações da carne não do carnaval mas dessas vidas que convivem. “um museu gritante”
esse museu gritante de amigos que aqui estão e lá também se desenha como dispositivo pra falar da nação, do país, do que quer que seja isso que vivemos e de onde se erigiu esse monumento [à barbárie talvez mas cá esotu eu sendo clichê]. pois não é sobre esses amigos ainda que sim seja mas independe quem eles são é o contorno e o preenchimento de uma situação micropolítica e macropolítica simultânea neste impossível churrasco a ser feito. idiossincrasias como dados de verdade e organicidade.
1865 MDCCCLXV letras palavras datas
não só idiossincrasias mas desejos e anseios da vida dessa aqui não a de personagens mas aqui
“plantar com fúria”
essa imagem como possibilidade de terrível síntese de são Paulo
as interferências da História e a história de despedidas idas vindas.
“o pé firme na garganta do mundo”
“Deus no controle
Dominatrix do próprio destino”
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a construção desse espaço de atenção é de uma riqueza tremenda e estranha. dezenas de pessoas ouvindo um texto pela primeira vez e que talvez esteja sendo lido pela primeira vez e muitos se conhecem mas provavelmente todos não e eu que conheço pouquíssimas pessoas acho isso de uma beleza tamanha e ao meu lado me oferecem uma cachaça e um gato passa entre as cadeiras e um dos leitores cantarola “nosso sonho” e enquanto eu escrevo ele diz “esse é o sonho”
sempre essas possibilidades comunitárias as mais diversas me atravessam de súbito pela mais pura materialidade desse encontro em uma sexta-feira a noite ou em qualquer dia em qualquer horário em qualquer lugar e o calor do Rio faz de hoje um dia especial por muitos motivos e me permito pensar solto enquanto escuto as palavras do texto penso nessas pessoas que leem e nesses personagens que sonham em vida morte churrasco república ossos e monarquia e as árvores da dramaturgia e as árvores do desterro e uma leitura dramática emerge como possibilidade performativa; como processualidade daquilo que ganha cores a cada sílaba dita
“aqui até as pedras estão gritando”
porra
e então um violino em cima da mesa. e a mesa de pedra diante de nós e uma orquídea e folhas verde-escuro natureza e música pessoal e política cheiro podre bons aromas
“eu quero ir embora pra cá”
despedir-se para vir. “partir para o lugar onde se está”.
despedir-se para vir. sair para onde se chegou
“quem sonha a gente?” uma personagem pergunta e é quem escreveu que sonhou e ele é também personagem e uma espiral de invenções é o círculo desta urgia.
“o sonho de fera de cada mosca”.
a fera a fúria o sonho o plantio uma cidade um inseto e as dimensões das imagens e suas inortodoxas oposições.
“somos o sonho das estátuas” o que há de terrível em projetos de fracasso que sucedem em progressos e memórias e honras e o que fomos sonhados como enfrentar pesadelos desses. “a gente tem que resolver o que fazer com os ossos” e o que foi enterrado mas jamais sepultado nessa cidade nesse país nesse ocidente ossos insepultos e as estátuas celebradas
“o osso é o avesso da estátua”
isso
isso
talvez curiosamente o osso seja sonho de futuro, ainda que sonho de horror mas sonho que decompõe porque já vivo. uma estátua é marco passado, legado morto de concreto. um osso carrega material genético
vivo de algum jeito
mesmo que morto
pulsante
a república e a República
todo osso é uma res publica
não?
“Miriam, a que brinca de estátua”
tornar-se passado presente projeção de algum futuro de algo que se fez que permanece e permanecerá ainda que uma estátua possa e constantemente tem sido derrubadas
filha morta
filha morta
filha morta
filha morta
“E a aldeia precisava entregar a menina pros deuses” e então me lembro de aquele que diz sim e aquele que diz não de Brecht e o xamã e os deuses e o que fazer com a filha morta a quem entregar uma filha morte por que entregar uma filha morta
a quentinha, oferenda na cova; a menina morta e o tempo da caça. e a quentinha jogada longe e a filha morte tornada deusa também;
uma grande árvore celeste e a boca que tudo devora e as estátuas de concreto dos ossos insepultos
um brado um choro
sons
o erro como desvio e recriação; a ‘bandeira’ acabou, não, a ‘brincadeira’, ‘a bandeira também’ e assim se segue jogando com dimensões e discussões
as linhas de força da encenação e como correm juntas e se atravessam entre cotidiano místico e absurdo. o debate do que é e do que é símbolo do que é do que significa do que é do que se evoca
os discursos as referências e então quando Garcia Márquez ganhou o Nobel e o nó de nossa solidão o que se levanta no que se debruça
a espada de Miriam essa justiça-outra, essa originária que evoca algo que é vingança que é grito brado choro [retumbante]; sacrifício autoexigido
“Não é possível interromper
o teatro”
o que há de poesia há de apavorante nessa frase. o teatro.
“É preciso morrer no teatro” e lagartijas tiradas al sol naquele vídeo de aviões decolando voando pousando ecoando aqui que cada morte é importante no teatro, diferente talvez de outras formas da ficção.
o teatro pega fogo o teatro é essa casa em ruínas permanente mas há sempre uma violinista a recomeçar e talvez terminar /para que então também algo possa começar depois do fim
e a matança. a matança. há outro caminho? os da coisa pública, as estátuas, os fantasmas monarquistas e lá a violinista ainda canta. até que não mais
o fim do sonho, sangue e chamas. crianças, moscas, fogo.
De onde vem a língua, de Gabriela Perigo
banquete em vermelho. um cortejo traz bandejas de vísceras cérebro tripas mas que na verdade é um macarrão. Gabriela Perigo finaliza com tomate-cereja e salsinha e alguém desejava que fosse coentro mas não era. algumas palavras antecedem o que vem antes da palavra: “primeiro a gente come, depois a gente fala” e na verdade De onde vem a língua é lambuzar-se de linguagem. penso em Exu, que come primeiro. o mensageiro come primeiro e depois as palavras se espalham. “alguém faz a dama e o vagabundo” e se prontificam e comer é celebrar é convívio é festejo tomamos todes do mesmo sangue comemos todos da mesma carne; o vinho em taças copos de chope copos de plástico no gargalo. o macarrão primeiro nos garfos compartilhados depois nas mãos e olhamos ao redor e estamos rindo em deleite, uma mulher tem um macarrão grudado no corpo, os rostos estão todos vermelhos e fotografamos e rimos e os pratos ficam limpos alguém passa os dedos e lambe. já era madrugada e de repente descobrimos que estávamos todes famintos, desejosos de alimentos e fundamentalmente de partilha um coro cercava a mesa até que tudo tudo tudo se acabasse e aí chegamos ao outro lado da língua e a vida segue mais feliz do que antes foi.
Os soldados-músicos, de Juliana Thiré
só maiúsculas no grito que profetiza
o tempo o ritmo que marcha nessa porra de Deus
igreja porra militar soldados de Cristo
denominações denominações aberrações e fala e fala e vocifera e foda-se o que é real e o ficcional inventado é tudo muito inventado muito gritado muito histrionico,
nossa o quanto que esse texto atravessa
no sentido de travessia pra onde ele vai o arco é tremendamente estendido e só se grita e grita e então ela pede pra tentar o final mais baixo mas ainda assim a disciplina e o quanto ela desenha
comecei ouvindo a marcha vociferada enquanto lia no telão. passei a olhar apenas para esse coro em processo constante de exaustão e já eram mais de duas horas da manhã e Juliana Thiré exige a força o tônus a métrica a insistência como aqueles caras que batiam tambores em navios para garantir o ritmo da remada de prováveis escravizados em algum momento da história eu vi isso em algum filme não sei.
então me senti quase que impelido a integrar esse grito-mantra e lá estava eu também em grito também em raiva também em expurgo e então o texto passa a ganhar outras cores quando passa pela nossa própria garganta e eu já não sei de onde vim de onde ele veio e até onde ele chega mas definitivamente estávamos em um lugar e fomos para outro neste terror divino-militar.
[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]
NOSSA!