teatro

dos termos e condições aceitados por nós (ou uma imersão compulsória)

crítica de “Distopia Brasil”, com direção e dramaturgia de Pedro Granato.

O Brasil pós junho de 2013 tornou-se um campo minado difícil de mapear. Uma sucessão tremenda de acontecimentos, entre consequências óbvias e imprevisíveis, parece seguir nos surpreendendo a cada dia. Nesses últimos anos, a juventude esteve nas ruas. Da oposição ao aumento da tarifa à primavera feminista contra Cunha; contra o golpe — e também pelo impeachment. “Distopia Brasil”: no que resulta agora como o encerramento de uma trilogia involuntária, o diretor Pedro Granato cercou-se de jovens para, de algum modo, levar ao palco o zeitgeist.

Observada em perspectiva, a premissa até revela-se simples — Granato propôs oficinas (a primeira, no Centro Cultural São Paulo — CCSP; as demais, no seu Pequeno Ato) para conceber obras que dialogassem com temas caros não apenas a ele, mas em diálogo com nosso período histórico. Para além da ideia de fazer teatro com jovens para jovens, uma linguagem foi proposta: o espetáculo seria imersivo. E foi assim nas três peças.

Temporadas lotadas, recepção extremamente positiva do público em geral e a compreensão de um nicho pouco ocupado: o teatro jovem. Independente de ressalvas e apontamentos críticos a serem feitos, é inegável o sucesso da empreitada de Granato — e ao que tudo indica, a recém-estreada “Distopia Brasil” deve enveredar pelo mesmo caminho. A plateia — ou pista de dança — passou a ser ocupada por jovens (mas não só!) que pouco frequentavam o teatro. Nesse sentido, o objetivo das propostas foi sem dúvidas atingido.

Cabe ressaltar, também, a jovem equipe criativa das obras. Presentes nas três fichas técnicas estão Jéssica Rodrigues e Victória Martinez, fundadoras da eficiente Contorno Produções, Inês Bushatsky, nas pulsantes coreografias dos espetáculos, além da atual assistência de direção, e o iluminador Gabriel Tavares — cujos desenhos de luz costumam merecer destaque.

Fortes Batidas“Fortes Batidas” / foto: Ding Musa

Elaborada dentro de projeto do CCSP, o processo de “Fortes Batidas” contou com concorrido processo de seleção — foram mais de 130 inscritos para quinze vagas. Era 2014. As grandes manifestações haviam passado; para uma juventude que aflorava no teatro e na política, havia um horizonte que, se por um lado era um tanto incerto, por outro parecia positivo. Para o dado imersivo, uma escolha extremamente convidativa: as ações tomavam lugar em uma balada; tratava-se de uma peça-festa.

Os temas tratados eram, basicamente, questões ligadas à liberdade sexual e afetiva. A comunicabilidade de “Fortes Batidas” e o engajamento do público eram enormes — ainda que por vezes em detrimento de uma maior verticalidade no desenvolvimento da temática. Entre momentos dançantes, flertes e beijos — reais e ficcionais — as situações iam acontecendo. O casal entendendo seu relacionamento aberto, o heterossexual de comportamento abusivo, o garoto tímido a fim de outro rapaz…

Fortes Batidas“Fortes Batidas” / foto: Ding Musa

Entre a militância e a celebração, o resultado era leve, mesmo com a dinâmica dos conflitos, e o clima festivo — ao ser visto com o distanciamento dos anos que se passaram desde a estreia em 2015 — era quase ingênuo. A primeira experiência de Granato com os jovens era um grito alegre de liberdade, de poder ser — e ter — quem se deseja.

Foi enquanto a peça fazia suas primeiras apresentações — que seguem acontecendo! — que o clima político no Brasil passou a se endurecer. As manifestações contra a recém reeleita presidenta Dilma Rousseff ganharam as ruas — assim como o coro “não vai ter golpe!”. Verde-e-amarelo ou vermelho. Coxinha ou mortadela. A polarização política, de ares um tanto caricatos — e muitas vezes, efetivamente pouco política — passou a ser a grande questão em debate.

11 SELVAGENS“11 SELVAGENS” / foto: Victor Otsuka

E em 2016, com o clima cada vez mais acirrado entre opositores, a presidenta é deposta. É durante esse ano — e este contexto — que Granato abre vagas para interessados para seu novo projeto, agora no Pequeno Ato. “11 SELVAGENS” se aprofunda na pesquisa jovem-imersiva do diretor e dramaturgo ao mesmo tempo em que reflete visões sobre os efeitos da polarização em nossas relações como um todo.

Se em “Fortes Batidas” o espectador se sentia à vontade para curtir junto dos atores, aqui ele é quase como impelido a tomar um lado. Como se a violência das situações apresentadas forçasse o público a intervir, se manifestar, enfim, agir. Quase como um convite à ação; uma convocação ao enfrentamento das matérias em disputa. Levando ao palco discussões tolas e acontecimentos de extrema violência, o espetáculo sempre levava as situações até o seu limite. Estreando no início de 2017, “11 SELVAGENS” inseria a plateia na tensão do momento.

Também apresentada até hoje, a obra segue se redimensionando frente ao noticiário político brasileiro. Ainda que Granato e sua trupe não dessem soluções — pelo contrário; restava no chão nossa bandeira sangrando — é difícil imaginar que na concepção da obra eles pudessem prever o que a violência da polarização causaria em nosso país.

11 SELVAGENS“11 SELVAGENS” / foto: Victor Otsuka

Então, estabelecendo os projetos enquanto trilogia, surge o terceiro espetáculo jovem e imersivo de Granato. Agora, a tradução crua da realidade dá lugar a uma construção distópica de um futuro não muito distante. O realismo das interpretações também ganha ares mais representativos do que performáticos, por assim dizer, enquanto o desenvolvimento das situações segue sendo dramático.

Com esta terceira estreia no início de anos ímpares, Granato desloca sua reflexão junto aos jovens do agora para o amanhã em “Distopia Brasil”. Se em “11 SELVAGENS” era possível verificar certa inspiração no filme argentino “Relatos Selvagens”, aqui são várias as referências. São muitos os universos distópicos em alta na cultura pop. Nesse sentido, foi sábia a escolha do espetáculo em não ignorá-las, mas sim, compreender como, a partir de tantas possibilidades, construir uma distopia tupiniquim.

Além das escolhas do diretor e dramaturgo, é inevitável que o público faça suas próprias conexões também. Ainda assim, “Distopia Brasil” parece conscientemente beber sem medo em diversas fontes para conceber sua narrativa. O futuro de Granato e seu elenco reverbera “1984”, de George Orwell. O fato do local da encenação ser o “Ministério da Família Social” — e a percepção do que efetivamente se trata esse conceito — lembra dos órgãos de governo do “Socialismo Inglês” da ficcional Oceania.

Distopia BrasilFelipe Aidar, Isabela Tortato e Bruno Lourenço dos Santos em “Distopia Brasil” / foto: José de Holanda

Também, por momentos, parecemos estar na fictícia Gilead, do “Conto da Aia” de Margaret Atwood — seja na hierarquização de gênero presente, seja no teor religioso do regime totalitário. Porém, ainda que essas — e muitas outras — relações sejam possíveis, é impossível não notar que a grande inspiração para esse cenário é o nosso país.

Se nos últimos anos o rumo parecia incerto e o caminho ainda por se descobrir, neste 2019 as coisas parecem estar mais nítidas. O que evidentemente não implica que essa percepção seja positiva. O crescimento de valores conservadores nos diversos âmbitos da vida política em sociedade evidencia que já não há mais clima para “Fortes Batidas”. O absurdo que vem tomando conta do dia a dia parece arrefecer o ímpeto dos “11 SELVAGENS”. Resta, em grande parte, uma consternação.

E essa é a grande questão enfrentada por “Distopia Brasil”. Qual é a imersão possível frente à essa realidade? Granato e seu elenco fazem uma escolha corajosa e arriscada. A alegria voluntariosa de estar junto e a provocação à ação dão lugar aqui ao autoritarismo dos cidadãos de bem. Nesta teocracia chamada de Quarentena — nada mais próximo de nós do que um discurso que se vende como “a cura de todos os males” da sociedade — a constituição parece ter dado lugar ao “livro iluminado”. Tal qual nos julgamentos em Gilead, aqui é a letra sagrada que comanda.

A referenciação a cultos evangélicos é pouco — ou nada — disfarçada. Considerando nosso contexto, não poderia ser de outro modo. A “Bancada da Bíblia” segue a todo vapor buscando legislar em causa própria, contra a laicidade do Estado. Na Quarentena, “terroristas laicos” devem ser denunciados. Termos concebidos pelo espetáculo não parecem tão distante de teorias da conspiração e factóides inventados por uma extrema-direita reacionária cada vez mais em evidência no país.

Distopia BrasilHelena Fraga e Beatriz Silveira em “Distopia Brasil” / foto: José de Holanda

No tocante às liberdades de ser, o “sexualismo laicista” ressoa a “traição de gênero” da distopia de Atwood; e a luta pelo direito de amar presente em“Fortes Batidas”, ali em registro alegre, é revisitada de maneira bem mais belicosa. “Distopia Brasil” se dá o tempo de construir sua atmosfera. Com pouco mais de uma hora e meia, dilata-se sem pressa de introduzir conflitos.

O início, com a entrada gradual do público, ao mesmo tempo que busca introduzi-lo na ficção, o deixa desconfortável. Uma solicitação que parece ser simples, friccionada pela pressão constante para que ela seja realizada se torna quase desesperadora. Nessa lida autoritária com os espectadores, parece haver ainda um grande campo a ser compreendido e explorado pelo jovem elenco, entre a simpatia na voz mansa e a opressiva vigilância.

Pois a proposta parece ser manter a plateia no limiar entre voluntariamente ceder e tornar-se cúmplice ou desobedecer e enfrentar reprimendas. Considerando a inspiração em cultos neopentecostais, há de se levar em conta a voluntariedade dos frequentadores de tais ritos. Ainda assim, o efeito gerado no público parece ser o intencionado pela obra.

Há uma aparente crescente na trilogia no que se refere ao deslocamento da ação para mais longe da realidade dos intérpretes — em “Fortes Batidas”, com a criação partindo do elenco, o que se via eram quase interpretações deles mesmos. Já em “11 SELVAGENS” é difícil conceber que houvesse uma cisão de valores tão grande no grupo para que todos os personagens tivessem características dos atores e atrizes, mas ainda havia um diálogo direto com suas realidades. “Distopia Brasil” caminha para a construção de personagens mais distantes; por vezes, quase estereotipados.

Dentro desta chave de representação, há certa monotonia no desenrolar de algumas situações dramáticas. Toda a caretice proposta pelos integrantes do “Ministério da Familia Social” mantém o desconforto do público, mas pode incorrer pontualmente em momentos um pouco desinteressantes. No estabelecimento da situação como um todo, o discurso — que já é pouco sutil — fica ainda mais evidente na cena do casamento. Ali a assepsia da encenação dá lugar à crítica direta, tanto na dramaturgia quanto na construção imagética do acontecimento.

Distopia BrasilRenan Ramiro e Jade Pereira em “Distopia Brasil” / foto: José de Holanda

Outro destaque neste sentido é a participação de Danilo Grangheia, como o Patriarca. Tal qual os cartazes do Grande Irmão espalhados pela Oceania, sua aparição em vídeo mantém uma aura de mistério acerca do que está por trás daquilo que vemos. Pois não se revela como o país chegou naquela situação; apenas se desenha mais nitidamente o quadro. A proposta clean da encenação, presente no cenário de Diego Dac e nos figurinos — e adereços — futuristas assinados pelos jovens Fernando Vilela e Thais Sakuma, é contrastada pela figura de um carrasco mascarado. Com uma arma rudimentar de ferro, parece gritar o dado medieval por trás de tudo aquilo.

As escolhas de “Distopia Brasil” são, no geral, interessantes — ainda que arriscadas. Dentre tantas as motivações possíveis para se chegar em uma distopia, optar por uma teocracia abre um grande campo de possibilidades para a dramaturgia de Granato transitar por argumentos clássicos utilizados por obscurantistas reacionários.

Não se trata de uma experiência exatamente prazerosa para o público. Desde o início posto em conflito com si mesmo e depois mantido sob a ótica autoritária proposta pela imersão compulsória, a ação da plateia de cada dia tem o potencial de tensionar o arco dramático do espetáculo. Considerando o desenrolar da narrativa, tal relação se mostra delicada e demanda uma grande escuta do elenco.

O que somos enquanto espectadores — de teatro e do mundo — também é evidenciado por “Distopia Brasil”. Enfileirados, somos registrados um a um e aceitamos os termos e condições. Fazemos isso cotidianamente em nossos computadores e smartphones, sem saber direito o que isso significa. E o quanto seguimos apenas aceitando o que acontece ao nosso redor? Não é nada agradável ser forçado a obedecer.

Distopia BrasilBeatriz Silveira em “Distopia Brasil” / foto: José de Holanda