teatro

da emergência dos possíveis

reflexões sobre experimentos artísticos teatrais no período de isolamento social

uma introdução

Pandemia. Uma única palavra que já carrega consigo uma vastidão. Todo o contexto atual parece confinado à estas oito letras. Cabe a todas, todos e todes nós agirmos e refletirmos sobre o tempo que vivemos. Tempos pandêmicos, nesse momento. É disso que esta reflexão buscará versar sobre. Mais especificamente, sobre propostas e experimentações de artistas de teatro. A afirmação de que o teatro é a arte do encontro pode ser encarada como ponto pacífico. Difícil dizer o mesmo da questão há teatro sem presença? ou, ainda, há presença na virtualidade?

Em 27 de março, dia mundial do teatro, Ivam Cabral estreia a temporada virtual de seu solo, Todos os Sonhos do Mundo. Na mesma época, Cléo de Páris e Fábio Penna faziam seus primeiros experimentos também no Instagram: Desamparos. Ações de artistas dos Satyros com pontos de partida e pesquisas de linguagens muito diferentes.

Cabral estava em cartaz com o espetáculo no momento que os teatros se fecharam; o caráter intimista da obra também favorecia a adequação para o formato de live. Já Páris e Penna resolveram inspirar-se em textos escritos pela atriz para desenvolver apresentações no ambiente bucólico onde passam a quarentena: um casarão em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul. De lá, trazem a cada semana novas cenas digitais; entre o sino da igreja, velas e o som da chuva, a dupla experimenta possibilidades dentro do suporte escolhido.

Em abril, o Teatro Caminho estreia o solo O Filho do Presidente, espetáculo previsto para ser apresentado em apartamentos do Rio de Janeiro e de São Paulo. A pesquisa, que já buscava se relacionar com espaços não-convencionais, acabou se deparando com um espaço ainda menos convencional para sua temporada: a plataforma Zoom, de videoconferências.

No mês de maio, mais obras em cartaz no aplicativo que, há pouco tempo atrás, era apenas conhecido no ambiente empresarial. O Grupo Arte Simples de Teatro adapta uma obra de seu repertório, Amores Difíceis, baseado no livro homônimo de Ítalo Calvino, transformando o espetáculo em três monólogos, apresentados em dias variados. O início da reunião no Zoom é, como brincaram as atrizes Isadora Petrin e Andrea Serrano, a entrada do teatro; um momento de conversas, brincadeiras e paqueras.

Em nosso contexto, Pandas, ou era uma vez em Frankfurt é, provavelmente, a primeira obra – experiência teatral online, como define a equipe de criação – com dois atores em cena. Bruno Kott adapta um texto de Matéi Visniec, aproveitando seus elementos do absurdo (e a temática do isolamento) para subverter as funções oferecidas pela plataforma Zoom.

Enquanto isso, no YouTube, o Sesc estreia seu Teatro #EmCasaComSesc, transmitido ao vivo de seu canal, trazendo nomes de peso logo de cara: Celso Frateschi apresentou Diana e Georgette Fadel interpretou trechos de Terror e Miséria no Terceiro Milênio, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Duas obras distintas, duas lives muito diferentes: Frateschi fez as adaptações necessárias para transportar o espetáculo para o formato, mas pôde contar com iluminação e espaço cênico, visto que o artista mora em casa anexa ao Ágora Teatro. Fadel, por outro lado, apresentou-se como uma atriz desesperada por comunicação, conversando com a câmera diretamente de um quartinho improvisado na casa de seus pais em Campinas, no interior do estado de São Paulo.

Já o grupo Magiluth, de Recife, implodiu radicalmente as fronteiras virtuais: seu experimento sensorial Tudo que coube numa VHS, com direção e dramaturgia de Giordano Castro, é multiplataforma. Entre as ligações que iniciam e encerram a obra, o espectador passeia, junto a um ator – a experiência é individual – por áudios previamente gravados e outros produzidos ao vivo no WhatsApp, visita o YouTube, acessa seu e-mail, ouve uma música no Spotify, segue um link de Instagram… enfim. Se Apenas o Fim do Mundo, último espetáculo do Magiluth, foi produzido como um site-specific para o Sesc Avenida Paulista, Tudo que coube é um momento-specific para esse agora imediato, construído dentro dos possíveis e virtualmente itinerante.

Março, abril, maio: em cerca de três meses de isolamento social, o que se verifica nessas iniciativas – dentre tantas outras em andamento – é uma efervescência de anseios, buscas e tentativas de lidar com a realidade que se apresenta. E tudo isso está apenas começando.

Tudo que coube numa VHS
divulgação do grupo Magiluth
da escrita

Como fica o pensamento crítico frente à emergência destas (novas?) linguagens? Ser ou não ser: há um acalorado debate em torno da questão da possibilidade de um teatro online de fato existir. As discussões e reflexões não podem ser vistas como – e nem tornadas – impedimentos para as experiências. Torna-se difícil debruçar um olhar analítico sobre obras cuja própria nomenclatura está em jogo. Neste sentido, aliado ao rigor deve estar a generosidade sobre aquelas e aqueles que vêm tateando os possíveis.

O debate conceitual deve servir para subsidiar o pensamento. Junto às tentativas de desenvolvimento de linguagem, emergem novas – e ressurgem antigas – terminologias. Formas outras de se olhar para uma obra. Aos poucos, caminhando lado a lado com as criações, na seara da crítica se estabelecerão parâmetros de análise. É necessário compreender as necessidades do momento e fomentar, com honestidade e cuidado, estas produções.

Este texto é uma tentativa de diálogo com a realidade do fenômeno teatral nesta contemporaneidade virtual – que não pretende, de forma alguma, apontar certezas; mas levantar dúvidas e movimentar-se no risco do não saber.

das obras: similaridades e singularidades

Dentro das tantas imensuráveis limitações deste contexto, surgem em pouco tempo obras extremamente diversas. Busca-se aqui organizar um olhar, talvez ainda incipiente, sobre o que vem sendo produzido – não se trata de uma crítica no sentido estrito do termo; é uma tentativa de apontar caminhos.

Iniciando pelo que mais foge à curva, Tudo que coube numa VHS é nomeado pelo Magiluth como um experimento sensorial em confinamento. A obra é apresentada individualmente em horário previamente marcado. Começa com uma ligação, onde se estabelecem acordos – ir para um ambiente tranquilo (onde a internet é boa!), sentar-se confortavelmente, concentrar sua atenção naquele encontro – e são sugeridas convenções.

Um dos méritos de Tudo que coube é transformar a ansiedade que tanto nos acompanha ao passearmos pelas redes sociais em expectativa. Aceitando a ficção, saltamos entre fragmentos de uma relação afetiva, transitando entre observador e participe. Nada impede que alguém responda as mensagens enviadas pelo performer, por exemplo. O sensorial surge principalmente no momento em que é sugerido ouvir um áudio de fones de ouvido e olhos fechados: a tecnologia binaural transporta o ouvinte para um lugar outro. Isolados, mas de alguma forma presenciando aqueles afetos.

A incerteza do que pode acontecer mantém o participante imerso na ação, contando os segundos para que o texto gravando áudio… se transforme na dramaturgia proposta pelo grupo. É uma história de amor, sem medo de visitar clichês e soar melodramático. No isolamento social, o Magiluth nos convida à uma aproximação afetiva. Soma-se a isso o talento e a criatividade deste coletivo – mais uma vez, a construção de personagens se dá de maneira orgânica, dialogando com a performatividade: os atores do grupo são meninos que brincam em situação.

Mesmo que em linguagem radicalmente outra, assim, verifica-se em Tudo que coube numa VHS a essência do Magiluth somada à percepção de seu núcleo criativo de que era necessário buscar formas outras de construir experiências durante o período de confinamento. O trabalho está impregnado de uma teatralidade virtual extremamente pertinente a este momento de pesquisas.

Dentre as demais obras acompanhadas, há um elemento em comum que não é nada novo no fazer teatral: a precariedade. Ora escolha estética, ora involuntária pelas limitações técnicas (seja do grupo, da plataforma ou mesmo dos espectadores), ela pode ser muito bem-vinda quando é percebida.

Georgette Fadel em "Terror e Miséria"
captura de tela da apresentação de Georgette Fadel no Teatro #EmCasaComSesc

Antes de começar, Georgette Fadel brinca sobre o cômodo onde irá apresentar e alerta sobre a chance de um cachorro latir. Abre o jogo com os espectadores sobre sua saudade de estar num palco lançando perdigotos naqueles que a assistem; desmonta-se assim qualquer tentativa de ilusão: o fenômeno teatral que se constrói ali, no tempo presente, está inevitavelmente mediado pela câmera. Plenamente consciente disso, a atriz utiliza o recurso de forma excelente. As adaptações à dramaturgia de Terror e Miséria no Terceiro Milênio (de Claudia Schapira, com colaboração de Lucienne Guedes) funcionaram para o formato; principalmente pois Fadel joga com a realidade da apresentação a todo momento.

Na ação que iniciou o Teatro #EmCasaComSesc, Celso Frateschi traz um dado de precariedade na necessária simplificação de cenário e iluminação de Diana. No entanto, o ator parece optar por fazer poucas concessões na adaptação de sua obra, adotando uma relação mais tradicional entre palco-plateia. De certa maneira, a live remeteu aos já conhecidos teleteatros.

A atuação de Frateschi garante a captura do espectador, mas é inevitável refletir acerca das limitações presentes na experiência – que se relacionam, também, com os suportes utilizados pelo público. Enquanto hoje em dia é comum que pessoas assistam à séries em seus smartphones, no caso de uma obra teatral filmada muito se perde ao não conseguir observar atentamente à expressividade do intérprete. Possivelmente aqueles que acompanharam em uma smart TV, por exemplo, puderam se engajar muito mais com o trabalho do ator.

No caso das lives de Instagram, acompanhar pelo smartphone torna-se uma imposição da plataforma. Ivam Cabral conversa diretamente com seus espectadores em Todos os Sonhos do Mundo. A proposta de encenação já possuía uma busca por um grau mínimo de teatralidade; constrói-se assim uma atmosfera íntima, de cumplicidade. Neste sentido, Cabral parece alinhar-se com a linguagem já presente nos stories da rede social – ou, ao menos, essa é a convenção que se estabelece.

É comum vermos fragmentos de diversas vidas sendo compartilhados nos curtos vídeos; assim como lives de conversas sobre temas pré-determinados. O golpe teatral da apresentação virtual reside precisamente em sua premissa autoficcional: Cabral começa o solo propondo que a verdade é irrelevante.

Se fosse necessário localizar em alguma linguagem a curadoria que cada um de nós exerce ao selecionar os conteúdos compartilhados diariamente em nossas redes sociais, parece adequado considerar a autoficção. O que não quer dizer que o que se publica não passam de mentiras – tampouco apontar para a fragilidade de tais construções. Pois ao alinhavar narrativas pessoais à poesia, Cabral traz à tona a delicadeza da vida, em todos os sentidos. As mensagens recebidas pelo ator – tanto durante a live quanto posteriormente, compartilhadas por ele em suas páginas – comprovam o quanto isso é poderoso.

Cléo de Paris em divulgação de Desamparos
divulgação de “Desamparos”

Atores da companhia fundada por Cabral (e Rodolfo García Vázquez), Cléo de Páris e Fábio Penna estão passando a quarentena juntos. Decidiram trabalhar sobre textos de Páris e experimentar, semana após semana, novas ações – sempre às 22h, iniciando ao badalar dos sinos da igreja vizinha ao casarão onde estão.

Penna assina direção e fotografia – uma função incomum no teatro, mas não inédita: diversas obras com recursos audiovisuais contavam com tais profissionais (como Paulo Camacho em Ítaca – Nossa Odisseia I, por exemplo) – enquanto Páris interpreta textos de sua autoria. Há em Desamparos uma processualidade necessária ao que se conforma como uma pesquisa emergente dentro dessa fricção entre o audiovisual e o teatral.

De certo modo, aos olhos de quem vê, a experimentação parece inclusive estar nas mãos de Penna, compreendendo as possibilidades dos enquadramentos frente à movimentação e entonações de Páris. Não há a tentativa de ocultar a presença da câmera – ou do responsável pela filmagem: em certos momentos, inclusive, vê-se sua sombra, ouve-se sua respiração e leves risadas. Reverberam, nesse sentido, filmes como A Bruxa de Blair ou mesmo séries cômicas como The Office; não por seus conteúdos – ainda que por vezes a atmosfera flerte com o gênero do terror – mas pela relação construída entre ator e câmera.

No caso de Amores Difíceis, do grupo Arte Simples de Teatro, cada uma das três cenas lida de modo diferente com esta mediação. Os monólogos com direção de Tatiana Rehder foram adaptados do espetáculo homônimo do grupo a fim de serem apresentados isoladamente – também há o projeto de fazê-los em sequência – na plataforma Zoom. Em Julieta, Isadora Petrin flerta com a estrutura de uma palestra performativa, muito presente nos palcos paulistanos dos últimos anos, para questionar padrões sexistas no teatro e na sociedade.

A atriz, compartilhando sua tela, revisita sua trajetória como atriz por meio de fotos e, vestindo uma peruca loira e utilizando uma foto de uma varanda em Verona como fundo virtual, interpreta a célebre cena do balcão de Romeu e Julieta – com um Romeu da plateia (!). A processualidade parece novamente uma necessidade, agora dentro de uma espécie de performatividade virtual – a representação de Julieta surge quase como uma brincadeira dentro da proposta de Petrin.

Já em A banhista, segunda cena de Amores Difíceis e também protagonizada por Petrin, a linguagem pesquisada é outra: aqui, Rehder e a atriz exploram possibilidades de movimentação e enquadramento em uma estrutura narrativa – que flerta com a contação de histórias – mais próxima do conto original de Calvino. Utilizando a ferramenta dos fundos virtuais do Zoom, um jogo interessante é criado: a limitação espacial possibilita a construção de recortes imagéticos de uma forma difícil de imaginar em um espetáculo presencial tradicional.

A lida com tais fundos remete a outro fenômeno dos nossos tempos: os vídeos curtos produzidos no aplicativo TikTok. Ali a precariedade tornou-se eminentemente potência criativa. A automação no recorte dos contornos da pessoa cria uma impressão de algo não-finalizado; no caso de A banhista, há o fato de detalhes da canga utilizada por Petrin misturarem-se ao fundo por conta de uma coloração esverdeada. De algum modo, esse inacabamento reafirma o risco do ao vivo, ainda que virtual; como se a imperfeição fosse um dado pulsante de vida – efetivada, ao final da cena, pela quebra da ilusão e o retorno à realidade (ao real?).

Andrea Serrano em "Amores Difíceis"
Andrea Serrano em “A Viajante”, de “Amores Difíceis”

Situada em um meio-termo entre adaptação dos textos de Calvino e biografia da intérprete está a cena que encerra Amores Difíceis. Em A Viajante, Andrea Serrano alimenta uma narrativa ficcional com suas vivências – além de costurar referências que versam sobre o amor, de poemas à letras de músicas. Se em Julieta Petrin convida um espectador para ser seu Romeu, aqui Serrano propõe interações com seu público, ainda que ele permaneça em silêncio.

Novamente se verifica uma centralidade na palavra; o tom de contação de histórias surge na manipulação de adereços e dos fundos virtuais e Serrano torna-se personagem de si mesma em diversos momentos. Considerando o formato, talvez fosse importante refletir acerca de uma possibilidade de costurar de forma mais sintética a dramaturgia da cena.

Pandas, ou era uma vez em Frankfurt, adaptação de A História dos Ursos Pandas Contada por um Saxofonista que tem uma Namorada em Frankfurt, do romeno Matéi Visniec, alinha o discurso da forma ao do conteúdo: na narrativa, um casal acorda sem saber exatamente como ficaram juntos ali. Ao passo que a mulher está para ir embora, o homem insiste que ela fique e lhe pede nove noites.

O dramaturgismo e a direção de Bruno Kott diluem essa temporalidade, mas mantêm uma certa suspensão do tempo-espaço – ainda que toda a ação teoricamente aconteça dentro do apartamento do homem. No elenco, Nicole Cordery – em ótimo trabalho – e Mauro Schames são Ela e Ele. A ótica do isolamento social, que de certo modo já estava presente no texto de Visniec, é amplificada pela utilização dos fundos virtuais, aqui cenários que servem ora como informação espacial, ora como metáfora da atmosfera da cena.

Ele e Ela estão apartados do mundo exterior e, literalmente, um do outro; mas isso não impede que floresça uma estranha relação afetiva. Constrói-se assim uma fábula do isolamento. No cenário, micro-apartamentos japoneses e uma miríade de janelas: cada uma habitada por todo um mundo.

Pandas opera uma série de deslocamentos de sentidos – desde as relações sincrônicas dos atores à distância até uma mudança de chave do absurdo para uma dramaturgia que beira o lirismo (um bonito momento de Cordery). Quando há mais de um ator na cena, o compartilhamento da experiência artística parece redimensionar-se; do impossível do contato à virtual proximidade afetiva.

Como uma das personagens diz em determinado momento, estou e não estou: é na fricção entre presença e virtualidade que muitas dessas ações tem se desenvolvido, cada uma à sua maneira, suscitando questões e reverberações várias. Há buscas em comum, mas também emergem as singularidades de cada artista na transposição de sua poética para as ferramentas digitais.

Pandas ou era uma vez em Frankfurt
Nicole Cordery e Mauro Schames em “Pandas”
convenções, ferramentas, recepção: pesquisas (de) possíveis

Apresentado este (sintético) recorte, gostaria de propor algumas reflexões, apontamentos, provocações, caminhos e descaminhos sobre certos elementos que podem ser considerados basilares para as pesquisas em andamento e vindouras. Reitera-se que este texto ambiciona não mais do que colaborar para o desenvolvimento destas (novas?) formas artísticas e ser parte de um diálogo já iniciado e longe de qualquer conclusão.

Antes de mais nada, parece ser fundamental pensar sobre como se estabelecem as convenções necessárias à cada experiência no ambiente virtual; quais os anseios dos criadores em relação a isso e quais as possibilidades do público dentro da especificidade de cada plataforma. Durante as lives de Instagram, há a opção de desativar os comentários, mas por padrão o bate-papo permanece aberto – é o que acontece em Todos os Sonhos do Mundo e Desamparos.

Assim, a fruição do acontecimento virtual é compartilhada em tempo real por aqueles que desejam, de algum modo, interagir com o que está vendo. Nestes casos, a interação se dá entre o público, e não com os artistas – o que pode incomodar certos espectadores. Ainda, na rede social é possível entrar a qualquer momento, o que traz consigo um dado importante a se considerar em uma eventual construção de dramaturgias pensadas para o formato.

Quanto ao início, verifica-se nas duas obras possibilidades diferentes: enquanto Desamparos começa a transmitir sua live alguns minutos antes das 22h e Páris entra em cena no soar dos sinos da igreja, Ivam Cabral começa seu Todos os Sonhos do Mundo com uma música de entrada de público e recebe seus espectadores com uma conversa informal, sendo sutil a transição para o início da dramaturgia de fato.

No caso da plataforma Zoom, o que acontece é uma necessidade estrutural de se explicar certas questões técnicas e é dessa forma que podem se estabelecer novas convenções. Em Amores Difíceis, as atrizes são as anfitriãs de suas respectivas cenas – no caso de Pandas, é o diretor Bruno Kott: a decisão de ter alguém externo à cena (ainda que Kott compartilhe sua tela e opere o som durante o experimento) parece uma escolha mais acertada, aliviando o elenco de um acúmulo de funções, visto que cabe ao anfitrião as prerrogativas de abrir e fechar a sala, silenciar microfones, etc.

Na proposta do Arte Simples, a entrada na sala é um momento de confraternização, como se fosse o foyer de um teatro. As atrizes também conversam com o público e são elas que explicam os detalhes necessários à cada cena. Em Pandas, na pré-estreia das 19h do dia 15 de maio, houve uma (compreensível) confusão do grupo: o link de acesso, disponibilizado na plataforma Sympla, parece ter sido liberado antes do previsto por direção e elenco, que seguiam nos necessários preparativos.

Quando a situação foi compreendida, Kott assumiu então a fala para conduzir o público nas configurações necessárias do aplicativo para a melhor fruição da obra. Por haver contracena, existem mais demandas neste sentido; é um breve tutorial, com direito à compartilhamento da tela do diretor para melhor explanação. A pactuação entre palco-plateia é também uma questão técnica, neste caso.

Também em Pandas há uma interessante proposta de manter os microfones dos espectadores abertos durante toda a ação. Na apresentação vista, talvez o efeito prático da ideia seja exatamente a manutenção do silêncio ao longo do experimento teatral online. No caso de Amores Difíceis, a anfitriã silencia a todos.

O que parece central neste sentido é a percepção de que tais convenções precisam ser estabelecidas pois são, em grande parte, inéditas e dependem não apenas das plataformas mas da experiência do público com elas. No caso do Teatro #EmCasaComSesc, o vídeo no YouTube começa com o aviso de que a transmissão ao vivo iniciará em breve, e então surge um tradicional terceiro sinal. Ainda assim, há a escolha do artista acerca de seu início: enquanto Celso Frateschi optou por já estar em cena, Georgette Fadel preferiu uma conversa com o público (o que reverbera também com a linguagem do espetáculo em questão).

Tudo que coube numa VHS
Giordano Castro, do Magiluth, em “Tudo que coube numa VHS”

No singular Tudo que coube numa VHS, a ligação telefônica de um dos performers do Magiluth estabelece os acordos necessários, pactua a convenção e inicia o experimento. É curioso que esta obra, dentre as analisadas, é a única que não opera dentro de um  compartilhamento temporal contínuo, mas, com sua costura dramatúrgica multiplataforma, constrói com o participante o tempo-espaço da ficção.

Ao passear livremente por diversos suportes virtuais, o Magiluth consegue ampliar seu leque de ferramentas para a construção de linguagem. É importante estudar as especificidades de cada plataforma a fim de conhecer suas limitações e suas possibilidades de subversão.

Há de se considerar também qual o uso normal de cada uma delas a fim de tornar tal dado parte integrante do discurso estético sendo desenvolvido: conforme Kott lembrou, o Zoom é um aplicativo de videoconferências de uso basicamente empresarial que hoje recebe desde aulas, ensaios, debates até obras artísticas. Tais propostas não deixam de ser pequenas rupturas dentro de um sistema que não foi pensado para suportar tais manifestações.

Ou, ainda, compreender a temporalidade de cada plataforma. O Instagram é um caso curioso: no início, era uma rede social apenas de imagens. Então, atualizações permitiram vídeos curtos, boomerang, stories, IGTV, lives. O que começou com imagens estáticas agora comporta transmissões de uma hora. Qual a velocidade de fruição de um usuário do Instagram? É ele o público-alvo ou a plataforma é só… plataforma?

Já o Zoom em sua versão gratuita traz consigo a limitação de 40 minutos por reunião. É possível assinar e então realizar encontros ilimitados. Mas qual o limite que a própria forma artística vai propor? Quanto tempo até o delay passar a incomodar muito, até a troca de fundos virtuais saturar-se?

Que outras plataformas são possíveis? Que outros meios? Se o YouTube parece mais versátil e com um alcance maior, ao mesmo tempo ele não permite que o artista veja o rosto de seu público – ao contrário do Zoom.

Existem diversos suportes sendo explorados; cada um traz consigo ferramentas específicas que podem fazer sentido para determinadas propostas e para outras não. Importante considerar que tais escolhas não dizem respeito apenas às necessidades de cada ação, mas também dialogam com questões relacionadas à recepção. É diferente acompanhar uma live no celular, com comentários ativados e pululando na tela, e ver uma transmissão do YouTube na smart TV em um quarto escuro e silencioso. É diferente saber que o artista pode ver meu rosto enquanto diz aquelas palavras e saber que isso é impossível.

Por fim, há outra questão essencial a ser observada que diz respeito às lógicas de produção. Ao mesmo tempo que emergem funções novas – ou intensifica-se a presença de outras mais raras – é primordial considerar a cadeia produtiva da arte teatral e como ela se transpõe para este fazer digital. É uma questão que carrega problemáticas no campo da estética – o fundo virtual como única opção de cenário ou a precariedade de desenhos de luz, para ficar em poucos exemplos – mas fundamentalmente no campo ético.

Por mais tecnológico e multimídia que seja, o teatro é analógico e artesanal. Um ator pode reinventar-se (para usar um termo em evidência) diante de uma câmera e seguir produzindo. E quanto às técnicas de palco? O digital abre um campo imenso de possibilidades de criação, mas se não refletirmos acerca da seara dos trabalhadores do teatro como um todo, haverá uma inevitável precarização de uma série de funções. Como reagir a isso?

Não se trata de encontrar imediatamente respostas e soluções definitivas, mas sim de lembrar que ética e estética caminham lado a lado na criação artística. Cabe ressaltar que os chapéus virtuais de Amores Difíceis e Pandas estão colaborando com o Fundo Marlene Colé de apoio a técnicos e artistas das artes cênicas.

O que se verifica em um momento de fundamentais medidas emergenciais é simultaneamente a emergência de outros possíveis na construção de linguagens. Que os artistas que assim quiserem sigam criando e povoando os imaginários. Os que podem, estão confinados em suas casas. Mas nossos mundos seguem se cruzando.

Celso Frateschi em "Diana"
captura de tela da apresentação de Celso Frateschi no Teatro #EmCasaComSesc