teatro

a mãe ainda estará lá após uma noite sem sonhos

crítica de “Stabat Mater”, de Janaina Leite.

Em Stabat Mater, inspirada pelo texto homônimo da filósofa Julia Kristeva, Janaina Leite segue com fôlego louvável o desenvolvimento de suas pesquisas éticas e estéticas. Tal qual o ensaio de Kristeva, a encenação concebida, dirigida, escrita e protagonizada por Leite estrutura-se em duas colunas de ordens bem distintas. A obra intercala uma densa e imbricada narrativa a momentos de uma perturbadora performatividade. Deste modo, a artista mostra uma notável habilidade de costurar uma profunda pesquisa conceitual e histórica à radicalidade de experimentações cênicas.

O espetáculo foi contemplado pelo importante edital do Centro Cultural São Paulo que chega à sua quinta Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos. Ao lado de Leite, está em cena sua mãe, Amália Fontes Leite. A operação de trazer esta não-atriz para a cena é disparadora de diversas camadas do espetáculo. Completa o elenco um ator pornô, sempre mascarado. Será a partir deste triângulo que se desenvolverá a palestra performativa que organiza a encenação. À pesquisa da artista soma-se a importante colaboração do dramaturgismo e assistência de direção de Lara Duarte e Ramilla Souza, a assistência geral de Luiza Moreira Salles e as provocações cênicas de Kênia Dias e Maria Amélia Farah.

A direção de arte e o cenário de Melina Schleder — que também assina o figurino — fazem bom uso do porão do Centro Cultural São Paulo; destaca-se o pole dance e o luminoso com o nome do espetáculo. A iluminação e a videoinstalação das ultraVioleta_s, Paula Hemsi e Laíza Dantas, também aproveitam bem as características do espaço. As imagens construídas com os recortes de luz de Hemsi desenham os espaços oníricos e sóbrios conforme as demandas da encenação.

Stabat Mater, literalmente “Estava a mãe” em tradução para o português. Na tradição católica, são hinos do século XIII em honra à Maria. É um constante lembrete da presença de Maria durante todo o calvário de seu filho Jesus. Ela estava lá; a mãe sempre está. Como diz o início deste canto gregoriano, Stabat Mater Dolorosa / juxta Crucem lacrimosa / dum pendebat Filius (“Estava a mãe dolorosa / junto da cruz, lacrimosa / vendo o Filho que pendia”). Depois de todas as dores, Maria não morre; ascende.

Também chega a nós a representação recuperada pela encenação de Stabat Mater Speciosa — estava a mãe bela, abundante, luxuosa. Leite não apenas convida sua mãe para perceber que ela sempre esteve lá — “o que uma mãe não faz para uma filha?” parece uma organização em outras palavras de stabat mater — mas opera a ascese de sua Maria, de dolorosa à speciosa.

Amália Fontes Leite em “Stabat Mater” / foto: André Cherri

Compreendendo-a não como a virgem mãe imaculada, mas corporificando as pulsões que friccionam o feminino ao maternal sem deixar de lado a complexidade e a problemática deste vínculo. Assim, a presença de Amália em cena por vezes é eco de uma suposta ausência anterior; como se padecesse de uma presença que não se configurou na memória.

Completa a trindade posta em cena uma figura masculina que abarca múltiplas representações. Ele é referenciado como Príapo — deus grego da fertilidade — e também como “Michael Myers”, o vilão da série de filmes slasher Halloween. Ao pênis ereto das imagens da divindade grega soma-se o facão do assassino mascarado. Ao inserir na construção fabular a presença de uma divindade da fecundidade, pode parecer a princípio ruidoso que se escolha Príapo — entre tantas possibilidades do feminino, é o masculino que representa a fecundação. Pois aqui a mulher é receptáculo, e sua concepção se dá de forma imaculada em uma noite sem sonhos.

Como a arte, o sexo está cheio de símbolos. Romance familiar significa que o sexo adulto é sempre uma representação, uma atuação ritualística derivada de realidades passadas. Um erotismo inteiramente humanitário talvez seja impossível. Em algum ponto de todo romance familiar há hostilidade e agressão, os desejos homicidas do inconsciente. As crianças são monstros de desenfreado egoísmo e vontade porque vêm diretamente da natureza, hostis sugestões de imoralidade. Carregamos essa vontade daimônica conosco para sempre. A maioria das pessoas a esconde com preceitos éticos adquiridos, e só a enfrenta nos sonhos, que logo esquece ao acordar. (Camille Paglia em “Personas Sexuais”)

Também na lida com o pornô, só vemos e ouvimos atores homens. Aos poucos tudo se conecta e passa a fazer sentido: na interessante conexão com as personagens femininas de slasher movies, Leite subverte a trajetória da chamada “Final Girl”: é como se ela a tornasse esta figura não ao manter-se pura e moralmente superior em relação ao seu entorno, mas ao escolher agir na direção oposta e assim retomar para si todas as decisões — mesmo as talvez extremas — sobre seu corpo.

Janaina Leite em “Stabat Mater” / foto: André Cherri

O trauma é inatingível e é difícil conceber sua ressignificação por inteiro. É como se exista a tentativa da artista de que toda e cada noite se estabeleça como mais um tempo do trauma na impossível busca de tocar o real que o habita. Na troca de mensagens por WhatsApp que surge em uma projeção, ao tentar entender como se daria a cena de sexo, o ator pornô pergunta se será de verdade: Leite diz que será importante para ele entender o que é verdade para ela.

Dentre as tantas questões e provocações suscitadas por Stabat Mater, se apresenta este jogo entre o real e a verdade, experiência e representação, risco e efeito. Leite manipula tais elementos com extrema habilidade: em diversos momentos da encenação, revela seus procedimentos, explicitando o que há por trás de certas escolhas no deslocamento e rearranjo das peças que está movendo neste palco-tabuleiro. Não se trata de legendar a própria obra; muito pelo contrário. No diálogo franco acerca de suas escolhas, Leite potencializa a eficácia estética delas.

O que emerge é a refinada e radical elaboração formal que vincula memórias, dados biográficos e pulsões individuais vivenciadas e percebidas pela artista ao questionamento acerca da representação do feminino maternal na sociedade ocidental. Leite enfrenta suas sombras, mas o faz compreendendo sua pesquisa enquanto potência artística e não terapêutica.

Janaina Leite em “Stabat Mater” / foto: André Cherri

Talvez esteja aí está o grande mérito já percebido nos trabalhos anteriores da artista — além do referenciado (e espécie de espelho torto da obra atual) Conversas com meu pai, pode-se considerar também o trabalho de Leite com os núcleos formados pelos projetos Feminino Abjeto 1 e Feminino Abjeto 2, que também serviam-se de provocações de Kristeva.

A ideia de partir da abjeção para falar do feminino — e, agora, lidar com o obsceno — traz consigo uma coragem de Leite. Seus trabalhos enfrentam sem pudores a tensão que há entre construções sociais e pulsões muitas vezes vistas como imorais, antiéticas; polêmicas para dizer o mínimo. Na presença de citações à Camille Paglia e Angélica Liddell na dramaturgia, reflexões acerca do feminino se desdobram de maneiras pouco óbvias e que ampliam inquietudes ao invés de encerrá-las em afirmações fáceis.

Stabat Mater estabelece-se como um acontecimento cênico de extrema relevância pelo modo que articula forma e conteúdo. Ao partir de uma mitologia que instaura uma concepção imaculada como espécie de modelo impossível de ser seguido, que atrela feminilidade e maternidade à ausência de desejos do inconsciente, Leite escolhe acordar-se — e talvez acorde junto sua mãe — desta noite onde não se sonha. Assim, sua palestra performativa ganha os tons perturbadores do pesadelo como pulsões legítimas de vida, ainda que terríveis.

No confronto proposto por Stabat Mater entre a indústria cultural — do sexo e do terror — e a cultura do estupro, uma frase ecoa contundente potencializada por estas escolhas de recorte: “Você tá preparada para ser outra pessoa depois disso?”. O ator pornô, homem, se refere às consequências de seu trabalho em sua vida. Quando Amália narra — dolorosa, em uma cena de triste e crua beleza — o que o médico disse à sua filha enquanto exibia os dedos sangrando, é novamente disso que se trata: “Você tá preparada para ser outra pessoa depois disso?”.

Amália Fontes Leite e Janaina Leite em “Stabat Mater” / foto: André Cherri

Ao lançar luz à sua narrativa pessoal, ainda que ocorrida há mais de vinte anos, o faz de forma brilhante e honesta. O facão torna-se elemento central das representações presentes na narrativa. Abre-se um grande campo de leituras a partir da ressignificação deste objeto. A informação de sua presença invisível no “cenário-totem” de Conversas com meu pai o torna, de algum modo, símbolo da violência do pai de Leite. É também o falo que fecunda e a arma do assassino dos filmes slasher.

No entanto, o que torna o facão um símbolo tão poderoso é o relato do estupro sofrido pela artista em sua adolescência. A partir desta complexa teia de significações, desenvolve-se simultaneamente uma narrativa que está lidando de algum modo com pulsões incestuosas — soma-se a isso a degolação simbólica de sua mãe — e com a apropriação quase catártica do acontecimento e de suas consequências. “Você tá preparada para ser outra pessoa depois disso?”.

Em meio às tantas significações presentes no uso deste objeto, dentro das narrativas que se sobrepõem torna-se possível inferir uma espécie de insinuação latente com uma fantasia de estupro. Esta impressão é superada frente à compreensão do que se apresenta na ação pornográfica de Leite. Como que um ato de assenhoramento, redimensiona-se a relação entre sexo e poder. Explorada em amplitudes diversas, não perde de vista o caráter perturbador de atos profundamente violentos e reprováveis, mas abre possibilidades no campo das tomadas de decisão.

No vídeo exibido ao final, a curiosa escolha pela utilização de máscaras. Por um lado pode-se considerar que a “verdade” acerca dos participantes está sendo escondida. Por outro, talvez isso não importe; há uma leitura interessante ao considerar-se o fato de que as máscaras são, por excelência, os símbolos primeiros da representação e, assim, como que intencionalmente se sugira uma fuga da performance na direção desta. Porém, o sujeito da obra — Leite, sem dúvidas — segue absolutamente implicada na ação. Ao mostrar para o público que a construção das máscaras teve a participação de Amália, experiência e efeito parecem sobrepor-se de maneira harmônica, ainda que misteriosa: talvez aí efetive-se a Parresía da artista. A mãe sempre esteve lá.

Amália Fontes Leite e Janaina Leite em “Stabat Mater” / foto: André Cherri