cinema

as cores à margem

crítica de “Projeto Flórida”, de Sean Baker, disponível no Amazon Prime Video.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

[texto com spoilers]

Em 1965, Walt Disney anunciou seu The Florida Project; o empreendimento viria a se tornar, alguns anos após sua morte, o Walt Disney World Resort, próximo às cidades de Orlando e Kissimmee. É nesta segunda, talvez menos conhecida dos brasileiros, que a história de Projeto Flórida (2017), de Sean Baker se passa.

Há um duplo sentido fundamental no título. Em inglês, project é também uma gíria que se refere à conjuntos habitacionais, geralmente de baixo padrão. A narrativa da obra localiza-se em hotéis de beira de estrada, com certas peculiaridades ligadas a isso; no entanto, as dinâmicas inter-relacionais e o que se desenha da vida daquelas pessoas faz com que o termo caiba para o contexto.

No contraste entre o motel Magic Castle e o complexo do Magic Kingdom, Projeto Flórida constrói um vívido retrato de uma infância leve em uma realidade difícil. A fotografia de Alexis Zabe compõe quadros sempre quentes: mesmo às margens de pântanos e rodovias, as cores das construções, da grama e do céu contrastam com a dureza da vida dos moradores da região.

A saturação realça a centralidade do olhar infantil na narrativa de Baker (que divide o roteiro com Chris Bergoch). É um verão ensolarado na Flórida e as crianças encaram o mundo como um território de aventuras. Longe da magia da Disney World, mas inventando seus dias. Nas paisagens, a marca da periferia do capitalismo: lojas e mais lojas de lembranças e de tours no parque — a todo momento, um helicóptero decola ou pousa para os passeios aéreos.

Moonee (Brooklynn Prince), de seis anos, e seu grupo de amigos brincam pelos corredores do Magic Castle, cospem em carros, desligam a chave-geral da eletricidade, pedem esmolas para comprar sorvetes, enfim; vivem ao largo do cinzento cotidiano de suas famílias.

Todas as crianças de Projeto Flórida são criadas por núcleos familiares não-convencionais. Nos quartos onde vivem, Jancey (Valeria Cotto) está acompanhada por sua irmã e uma avó; Dicky (Aiden Malik) mora com o pai; Moonee e Scooty (Christopher Rivera), com suas mães. Halley (Bria Vinaite) é a jovem mãe de Moonee. Ela cria a garota sozinha e, no início do filme, está desempregada.

O roteiro de Baker talvez se exceda na composição desta personagem: é visível o amor que ela tem pela filha, assim como é o desespero de se ver como mãe e desempregada.. Por outro lado, o fato dela fumar maconha na presença da filha, o total desinteresse em discipliná-la e o desrespeito recorrente à toda figura de autoridade desenha um traço notável de irresponsabilidade.

É o contrário do que ocorre com Bobby (Willem Dafoe): o gerente do motel, sempre tendo que lidar com as crianças e suas ações, é apresentado como uma figura paternal, protetiva e até mesmo carinhosa nas escolhas de como agir — além de estar sempre disposto à ajudar Halley. Em duas cenas, porém, surge o jovem adulto Jack (Caleb Landry Jones) para auxiliá-lo em trabalhos manuais. O roteiro de Baker deixa subentendido que se trata de seu filho — e que Bobby não se dá nem um pouco bem com sua ex-mulher, mãe de Jack.

Neste sentido, suas ações com Moonee e as demais crianças parecem operar como uma espécie de jornada de redenção; mostrando a si mesmo que poderia criar filhos de uma maneira melhor. O efeito desta oposição, somado ao exagero da concepção da personagem de Halley, acaba ressaltando uma faceta perigosa do filme: corre-se o risco de uma certa exploração generificada da miséria. Não abarcando de forma mais contundente a complexidade desta mãe, ela permanece enquanto mero retrato da própria situação.

Cabe apontar, aqui, que isso não impede que Vinaite, em seu primeiro papel no cinema, faça um ótimo trabalho. Assim como Dafoe, cativante. O grande destaque fica por conta de Prince: carismática, a interpretação da protagonista beira o inacreditável e captura o olhar do espectador desde o início até a cena final.

Há uma pureza mesmo na malandragem das crianças; a violência do contexto acaba reverberando em algumas de suas atitudes, mas há sempre uma candente doçura naquilo que fazem — e elas percebem quando extrapolam, como suas reações após o incêndio das antigas casas demonstram. A alegria constante por vezes resvala em uma romantização da miséria, mas também parece levar em consideração o momento: o início das férias de verão.

Projeto Flórida escancara a distância entre dois mundos muito distintos — e o quão próximo eles estão. Uma recém-casada brasileira acaba por chegar no Magic Castle querendo estar no Magic Kingdom. Tão perto e tão longe. Depois de tanto inventar sua própria magia, a realidade acaba por vencer Moonee: dos projects da Flórida ao Florida Project, ela corre, mãos dadas com Jancey, para onde ainda se é permitido sonhar — sem se importar que isto seja um privilégio dos que podem pagar.