a angústia do mundo e as músicas na garagem
crítica de “Coisas que você pode dizer em voz alta”, da DeSúbito Cia.
Uma adolescente de uma cidade pequena cresce em meio a tentativas de amizades e interesses no cotidiano muitas vezes tedioso de seu entorno. Entre as inquietações diversas escritas na internet — além das fotos postadas e logo depois apagadas — ela cresce buscando entender quem é e qual é o seu lugar no mundo. A história de Coisas que você pode dizer em voz alta inspira-se na trajetória de Charlotte, da HQ O Enterro das minhas ex, escrita com tintas autobiográficas pela artista francesa Anne-Charlotte Gauthier.
Gauthier conta histórias desta protagonista ao longo de doze anos (1987–1999). E as diferentes inquietações e ações dela por este período. Em comum, a busca pela identidade, principalmente vinculada à descoberta precoce de sua homossexualidade e os enfrentamentos decorrentes disso. Não apenas em relação às suas amigas e amigos, mas também internos — o que se revela sutilmente na narrativa.
A dramaturgia de Ricardo Inhan parte da narrativa de Gauthier: a temática é a mesma, assim como a organização das cenas parece fazer uso da estrutura proposta pela HQ. No entanto, há uma bonita reinvenção na construção da protagonista. Se Gauthier volta seu olhar para trás, para a adolescente francesa dos anos 1990, Inhan e a encenação da DeSúbito Companhia miram o presente.
A atualização é incrivelmente bem-vinda a fim de dialogar de maneira eficaz com o jovem de hoje. As dinâmicas trazidas pelas possibilidades de interação on-line, por exemplo, tornaram-se partes centrais do desenvolvimento das últimas gerações. Ao mesmo tempo, a encenação de Ricardo Henrique também parece buscar falar sobre algo que perpassa os tempos e os inventos: a angústia presente nos processos de busca e descoberta de si.
Certas escolhas de Coisas que você pode dizer em voz alta remetem a esta multitemporalidade; pelas composições dos figurinos de Rangeu percebe-se algo das últimas décadas do século passado. Na interessante direção musical de Mini Lamers — que toca guitarra e canta em cena, acompanhada pela baterista Didi Cunha — as canções dos anos 70, 80 e 90 dialogam com os figurinos, que tem pequenas mas notáveis mudanças em transições.
No cenário de Marisa Bentivegna, a porta de garagem pode por um lado sugerir o cerceamento das personagens naquele espaço pequeno, mas por outro implica a revelação e invenção de mundos — de dentro e de fora — que pode se dar ali. Também assinada por Bentivegna, a iluminação constrói desenhos sutis entre luz e sombra.
Os instrumentos em cena, mesmo quando Lamers e Cunha estão fora do palco, potencializam o jogo proposto na dramaturgia de Inhan: na adolescência, este barulhento show de rock, certas coisas talvez sejam melhor ditas dentro de canções. Além das músicas cantadas, ressaltam-se também as atmosferas sonoras construídas por Lamers, estas evocando estilos musicais mais contemporâneos.
São elas que sustentarão muitas das cenas onde Tamirys O’Hanna, que interpreta Charlotte, fala diretamente ao público no microfone. O’Hanna, extremamente carismática, revela-se uma intérprete versátil — é possível lembrar de seu denso trabalho em cenas de A Vida, além das cenas coreografadas de Os 3 Mundos — lidando com a difícil construção de uma personagem adolescente.
Neste sentido, talvez haja certa fragilidade no primeiro ato, quando a protagonista é mais jovem. O’Hanna recorre a uma interpretação mais representativa, pouco orgânica. No diálogo que estabelece com a amiga — interpretada por Carla Zanini — por um segundo é possível ter a impressão de estar assistindo a um filme adolescente hollywoodiano. Porém, isto não impede da cena ainda assim trazer reflexões interessantes e acabar com uma bonita e singela imagem.
Marô Zamaro completa o trio que interpreta as jovens da narrativa. No segundo ato, Zamaro constrói uma divertida personagem, um novo passo nas descobertas de Charlotte. Além disso, Zanini e Zamaro também operam como espécie de backing vocal nas canções, não apenas dando o suporte na voz mas também criando imagens animadas nas composições cênicas de Henrique. Completa o elenco, como narradora e tia de Charlotte, Mônica Augusto.
Coisas que você pode dizer em voz alta captura o espectador já em seu curioso prólogo. Desde o instante que O’Hanna entra em cena até o último momento da encenação será difícil tirar o olho dela. Sua presença cênica reverbera na bonita voz que canta e no corpo pulsante que conta, narra e vivencia as situações da jovem Charlotte.
Não é fácil fazer teatro jovem. Dentro do Centro Cultural São Paulo, há um espaço de programação interessante para este nicho: obras diversas como Teseu — uma rapsódia de momentos que não serão lembrados, da Cia. Babuínos de Teatro, Cavalos, da Cia. Zero8, e Favor beber o leite, senão estraga, do Coletivo Cronópio, já ocuparam a mesma sala Adoniran Barbosa. Em comum, o desejo de dialogar com um recorte da nossa sociedade pouco contemplado pela produção teatral da cidade.
Neste sentido, há algo em Coisas que você pode dizer em voz alta que faz pensar. Na HQ de Gauthier, Charlotte está andando pela cidade, por sua escola, nas casas e festas. Na encenação de Henrique, ela está em sua garagem quase o tempo todo. É como se toda a angústia dessa garota que dizem pensar demais coubesse ali dentro; como se fosse impossível dimensionar este não-lugar — a adolescência. A imensidão do mundo simultaneamente a esmaga e cabe inteiramente dentro de sua subjetividade.
No tudo que vai aos poucos sendo feito mas nunca dito, Charlotte segue vertiginosa entre assuntos, interesses e garotas. É a dura, barulhenta e dolorosa busca por si e por seus semelhantes. Assim, ao encontrar uma possível referência em uma pessoa mais velha, a jovem finalmente pode trocar o inatingível espaço sideral pelo acessível oceano. Ainda é imenso, mas nele o mergulho é sempre possível. Legal! No fundo, tudo poderia ser mais simples.