caos, acaso e o que fazemos de nós (ou 13.824 criações de um outro)
crítica de “A VIDA”, da AntiKatártiKa Teatral
foto de Ligia Jardim
Cercados por números e possibilidades matemáticas, a AntiKatártiKa Teatral nos apresenta o acaso de quem poderíamos ser. “A Vida” se compõe de 27 cenas biográficas a partir de histórias dos três atores, das três atrizes e do diretor; a cada dia, ao sabor da roleta – que, ainda que ancorada por uma aleatoriedade científica, parece às vezes ter o poder de conduzir auspiciosamente a narrativa – são apresentadas, em 8 Fases, algumas dessas memórias recriadas.
Se o resgate realizado por Nelson Baskerville de momentos selecionados da própria trajetória em “Luis Antônio – Gabriela” é o pedido de desculpas de um indivíduo – ainda que extremamente expansível para um macrocosmos – a caleidoscopização proporcionada pela pluralidade e diversidade das biografias em “A Vida” é, além de uma celebração, o lembrete de como nós construímos quem somos a partir dessa multiplicidade de possíveis.
Quais são as memórias que escolhemos – ou que nos escolhem – para carregarmos como fundantes do nosso ser? Como acontecimentos de tempos diversos se reorganizam no nosso “eu” que apresentamos ao mundo a cada dia? E, mais ainda: quando olhamos para um outro, como é que construímos o que estrutura o seu mistério de existir?
Ao selecionarem momentos de suas vidas para compartilhar com a plateia, Baskerville e o elenco (Tamirys O’Hanna, Thaís Medeiros, Camila Raffanti, Felipe Schermann, Nuno Carvalho e Hercules Morais) buscaram recortes de alguma forma definidores, instantes que duraram de minutos a anos, efêmeros acasos que de algum modo tornam-se pertinentes ao levados à cena. E ao recuperarmos nossas memórias, nem sempre somos fiéis ao que de fato aconteceu. O contexto dentro do qual as recuperamos, quem somos e o que fazemos no instante em que trazemos elas de volta à superfície de nossos pensamentos já as transforma. E, depois deste processo, ainda resta a escolha de qual construção simbólica e poética escolhe-se dar; ou seja, é quase uma reinvenção de si e do vivido, uma reinvenção cênica que dará vazão a uma possível nova vida por apresentação.
Tais excertos recriados de cada biografia ali presente – ou quase-presente, já que Baskerville não entra em cena, mas suas histórias sim – podem ser vidas vistas através de uma luneta ou de um microscópio. A descoberta e a construção de nossas próprias vidas pode estar relacionada a um acontecimento distante e universal ou do mais íntimo e particular; assim como um outro pode ser narrado por si próprio ou por um narrador também outro – uma soma sempre acumuladora de alteridades.
A encenação é marcada pelo acúmulo das informações de cada cena apresentada – seja na contaminação da atmosfera do espetáculo naquele dia ou mesmo no espaço cênico, onde adereços e objetos vão se tornando rastros e pistas da vida que está ali sendo construída. Além da aleatoriedade em si já compor as infinitas possibilidades de elaboração em cada apresentação de “A Vida”, as passagens textuais presentes entre cada Fase, estas fixas, são como oráculos: nós, contaminados pelas cenas sorteadas, vamos interpretando tais passagens em relação ao que vimos e à expectativa do que veremos, organizando desdobramentos, encontrando o sentido próprio daquela composição; são encaixes quase nossos: quem eu crio, dentro deste todo?
Estruturando-se em Fases, com uma roleta em cena e grandiosos momentos espetaculares, a encenação nos lembra que jogos, memória, azar, destino, sorte, invenção e acaso se misturam no nosso dia a dia e, essencialmente, em nossos encontros. “A Vida” – e também a vida – é este todo, um monolito fragmentado, onde cada parte, de um jeito bonito ou doloroso, revela um ínfimo e um infinito do outro.