teatro

digerindo a merdra (ou o absolutismo temerário)

crítica de “Ubu Rei”, com Marco Nanini e Rosi Campos

foto de Carlos Cabéra

“Ubu Rei”, de Alfred Jarry, escrita em 1896, conserva o valor máximo dos clássicos: sua atemporalidade. Seguimos envoltos, nós todos, entre o terror revolucionário e o terror absolutista, desde tempos imemoriais e sem nenhuma perspectiva de deixar esta onda que paira no ar para trás; em histórias que se repetem em farsas cujas narrativas não cansam de surpreender.

Ao mesmo tempo, diferente de outros espetáculos onde a identificação também é universal, Jarry em seu (então) polêmico texto, abre um grande campo para o estranhamento e, fundamentalmente, para a sugestão. Tendo diversas encenações memoráveis ao longo das décadas por todo o globo – incluindo a brasileira do Ornitorrinco, de 1985 – ela não é uma peça de todo acessível. Há de se tomar certos cuidados nas escolhas para que, ao mesmo tempo que faça sentido dentro do contexto onde se é encenada, deixe o espectador entre o assombro e o riso; entre o terrível e o ridículo.

Marco Nanini, um dos grandes atores brasileiros vivos, celebrando 50 anos de carreira, ao convidar Rosi Campos – que participou da montagem antológica nos anos 80 – e a Cia. Atores de Laura, apresenta um Pai Ubu bufonesco e patético. Seu carisma, no entanto, infere em uma grande atenção ao patético da figura; arrancando riso fácil e, por vezes, nos fazendo esquecer do perigo do poder autoritário que tais figuras teimam em conquistar – pela violência ou pelo voto.

A encenação com direção de Daniel Herz, com tradução e adaptação de Leandro Soares – além de, por certo, inserções textuais do próprio Nanini – aproxima o texto de 1896 à nossa realidade. Enquanto o cenário de Bia Junqueira, os figurinos de Antonio Guedes e o visagismo de Diego Nardes acertam muitas vezes ao flertar com o simbolismo, a aproximação dramatúrgica acaba por muitas vezes digerir a “merdra” para o espectador.

Trata-se de uma montagem acessível, onde o nonsense por vezes envereda para um humor estruturado em gags e esquetes; interessante, porém, notar que o abuso da escatologia de Jarry já não produz o mesmo efeito na nossa realidade: uma figura poderosa tão inculta e estúpida passa longe de ser impensável no mundo de 2017.

A trilha de Leandro Castilho executada ao vivo também aproxima e cativa o público para dentro da narrativa (já não mais tão) absurda; a interação desta banda – além dos demais atores do elenco – com Nanini e Campos é um grande achado do espetáculo. Na interpretação deles, reagindo aos mandos e desmandos de Pai Ubu, abre-se o campo de leitura do espectador. No entanto, escolhas da encenação deixam eles muitas vezes à mercê de piadas fáceis preparadas para arrancar o riso do público.

Com cenário grandioso e interpretação precisa de todo o elenco dentro das escolhas cênicas, “Ubu Rei” passa longe de ser mau teatro. Fica, ainda assim, a dúvida de por que não deixar o poema a ser completado na cabeça de cada um ali presente; que para além das relações possíveis e óbvias, ficasse nas mãos de quem acompanha a trajetória desta horrenda figura a percepção da contemporaneidade presente em um texto de mais de um século atrás. Pois por trás de seus comportamentos monstruosos e desumanos, para além do bufão, há alguém que existe e age dessa maneira – seja lá por qual motivo. E é na descoberta – ou na lembrança – disso que reside a complexidade humana, permanentemente entre o terrível e o risível.