ficção e engajamento; desejar e agir
crítica de Caso Cabaré Privê, do Núcleo Pequeno Ato, com concepção e direção de Pedro Granato.
[a primeira parte do texto é livre de spoilers!]
O filho do presidente está morto. Não se sabe exatamente o que aconteceu – sua agenda previa que ele estaria em uma reunião no horário, mas o corpo foi encontrado em um cabaré no centro de São Paulo. Enquanto o presidente está a caminho da cidade, uma investigação é instaurada e todas as performers do estabelecimento são isoladas em suas cabines privês para serem interrogadas. Em Caso Cabaré Privê, do Núcleo Pequeno Ato, dirigido por Pedro Granato, é o público quem faz as perguntas para as suspeitas.
A dramaturgia de Felipe Aidar e Tainá Muhringer é porosa. O texto sustenta e desenha a trama ao mesmo tempo em que deixa um grande espaço a ser preenchido pela relação construída entre os participantes e o elenco. Nessa proposta reside um dado central à obra: a interação pactuada é democraticamente livre.
É possível ser uma testemunha silenciosa dos acontecimentos, acompanhando o desenrolar das situações. Porém, Caso Cabaré Privê consolida o seu discurso artístico na constante participação daquelas e daqueles que se sentirem à vontade.
Logo na estreia, verificou-se que o convite feito pela obra é bem atrativo. Foram muitos os que se engajaram na busca pela resolução do mistério. Propostas imersivas não são algo novo para Granato, cujo trabalho com teatro jovem nos últimos anos vêm se desenvolvendo nesta linguagem dentro do Núcleo Pequeno Ato, criado por ele.
A ideia de teatro jovem para este Núcleo é ampla: conforme afirmam no release do espetáculo digital, consideram neste recorte a faixa dos 16 aos 30 anos. Com exceção de Granato, todos – ou quase todos – os integrantes da ficha técnica do projeto estão nessa faixa de idade.
Antes de Caso Cabaré Privê, Granato escreveu e dirigiu o que veio a se tornar a Trilogia Jovem: Fortes Batidas (2015), 11 SELVAGENS (2017) e Distopia Brasil (2019). Ali, as pulsões destes tempos que correm rápido se formalizaram de modos distintos. Perceber a diferença nos temas, tons e interações das três obras é uma possibilidade de traçar, evidentemente dentro de uma série de recortes, o panorama de um Brasil pós-2013. De um espetáculo-balada à uma reunião em um país teocrata; do dançar à distopia.
Em Fortes Batidas, o público era convidado a estar junto. Beber, flertar, beijar – e brigar, também, por que não? Já 11 SELVAGENS trazia a polarização para situações do cotidiano, deixando os espectadores no limiar de intervir ou não. Distopia Brasil radicalizou na construção de uma atmosfera autoritária, onde a plateia ou obedecia ou se rebelava; não havia lugar para a apatia.
Agora, Caso Cabaré Privê lê o mundo virtual e gamifica a imersão. As relações entre elenco e espectadores/participantes se consolidam na proposta da obra que formaliza em jogo sua ficção. É uma completa inversão do que se via em Distopia Brasil – e não apenas pela participação ser opcional.
A narrativa, alinhada ao formato muito bem aproveitado pelo Núcleo Pequeno Ato, gera um grande engajamento desde o início. O público busca ativamente pelas pistas, questiona assertivamente as suspeitas e até mesmo o responsável por conduzir a investigação.
Não é difícil compreender este envolvimento: o próprio confinamento cria uma ânsia de convívio, de pensar junto, estar junto. Soma-se a isso o sucesso do gênero crime real em variados formatos – sendo um exemplo nacional o podcast Projeto Humanos e sua minuciosa pesquisa sobre o Caso Evandro – e o que temos como resultado é uma vontade pungente de resolver, coletivamente, um mistério bem construído.
Caso Cabaré Privê também parte da premissa – já clássica em filmes de terror – do found footage, ou seja, de vídeos encontrados, para inteligentemente compor seu mosaico entre o passado (em gravações) e a investigação (ao vivo). Além de importantes para a trama, os flashbacks também são momentos para ficar atento às coreografias de Inês Bushatsky, à direção musical de Pedro Augusto Monteiro, à direção de arte de Renan Ramiro e aos figurinos de Isabella Melo e Gustavo Zanela.
Também cabe ressaltar o trabalho de Gustavo Bricks que, além da participação especial como ator, é o videomaker e assina uma função específica e importante para o contexto atual: operador de Zoom. A encenação digital de Caso Cabaré Privê aproveita bem as ferramentas da plataforma – além de trazer uma excelente vídeo-orientação para as configurações necessárias.
Vale lembrar que Granato, em 2019, dirigiu um espetáculo que acontecia simultaneamente em quatro países – Babilônia sem fronteiras. Dos palcos do mundo para os quartos de casas: o imponderável trouxe consigo interessantes experimentações.
[depois da imagem abaixo, o texto continua – mas agora com spoilers!]
No entanto, o Caso Cabaré Privê não versa sobre o imponderável. Muito pelo contrário. Há um grande zelo na narrativa escrita por Aidar e Muhringer e na interpretação do elenco para manter o mistério e cuidadosamente fornecer as pistas para que se descubra o que aconteceu com o filho do presidente. Ao criar um site com o dossiê do caso, a obra não apenas torna-se multitela mas também convida efetivamente à investigação.
Essa estrutura, porém, mostra-se um sagaz subterfúgio que captura o público nessa busca pela verdade, mantendo-o em estado de jogo. Anunciando que o objetivo é a resolução do suposto crime, Caso Cabaré Privê mantém a dramaturgia aberta ao mesmo tempo em que nela residem pílulas fundamentais para o entendimento do debate proposto pela obra.
Quando já não há mais tempo para nada, cabe a este coletivo-público decidir o que fazer com as informações adquiridas. Espalhar a verdade ou ignorar o acontecido. É quase um dilema do bonde que se desenha, mas recheado de incertezas. Vazar o dossiê é como um sacrifício por um possível bem maior; mandá-lo para a lixeira é proteger aquelas pessoas e perder uma oportunidade única de (tentar) derrubar um presidente asqueroso.
Um vídeo que dialoga com a opção decidida a cada apresentação encerra o espetáculo. Além de trazer novas revelações (algumas surgem quase como easter eggs), manchetes de jornais anunciam as consequências dos ocorridos. E como a realidade constantemente nos lembra, nada é tão simples assim.
No sobrevoo que damos pelos interrogatórios, os investigadores-público conhecem brevemente figuras das mais variadas; o trabalho do elenco na construção das personagens se aproveita desse mergulho no contraditório.
É possível pensar em outras obras que abordam temáticas similares – ainda que de formas extremamente distintas. Em Carne de Mulher, Paula Cohen partia do Monólogo da Puta no Manicômio, de Franca Rame e Dario Fo, para versar sobre as tantas histórias que estão por trás de uma ação (criminosa).
Ali, a personagem se cobria também pelo marcador da loucura – o que, em teatro, geralmente é acompanhado de uma tremenda lucidez. Já às performers do Cabaré Privê resta inserir seus argumentos sutilmente nos depoimentos; buscando, ao mesmo tempo, isentar-se de culpa e refletir acerca da culpa em si.
Neste sentido, cabe lembrar de Justa, texto de Newton Moreno encenado pela Odeon Companhia Teatral. A narrativa do espetáculo, com ares de filme policial noir, trazia como disparador a investigação do assassinato de um político. O responsável acabava chegando em uma casa de prostituição, e as trabalhadoras do local tornavam-se suspeitas.
As problemáticas da política nacional estão presentes, sem muito disfarce, tanto em Justa como em Caso Cabaré Privê. Borram-se as fronteiras entre certo e errado no confronto com a realidade em toda sua complexidade. Nas descobertas da verdade, as possibilidades de ação sobre essas representações do nosso mundo embaralham ética, moral e instintos.
No espetáculo online de Granato e seu Núcleo Pequeno Ato, o público está livre para interrogar as performers, a dona do cabaré e até mesmo o legista e o investigador. Ao fazer de cada apresentação uma nova investigação, Caso Cabaré Privê se desenvolve em grande parte a partir das interações do público.
Fortes Batidas começa e termina em festa, enquanto 11 SELVAGENS ia da violência nas relações interpessoais a um retrato do fim de um país. Distopia Brasil, a despeito de todo o autoritarismo, trazia o ímpeto revolucionário em seu final. Caso Cabaré Privê propõe, na horizontalidade entre obra e receptor, estruturar-se como um experimento democrático e reflexivo sobre os nossos tempos.
Por natureza, a abertura de sua proposta confere ao espetáculo simultaneamente potência e fragilidade. Após a encenação gamificada, resta ao espectador/participante refletir sobre intenções e consequências. Caso Cabaré Privê parece se encerrar como um triste e pessimista retrato do fracasso das intenções e da ineficácia de certas ações, mesmo quando radicais.
Que texto bacana, Amilton! Acabei de ver a peça e agora li sua crítica! Ótimo tudo, ótimo ambos! Bj