teatro

gritos de dignidade (ou ser oráculo de si)

crítica de “Carne de Mulher”, monólogo de Paula Cohen com direção de Georgette Fadel

foto de Lenise Pinheiro

Há uma liberdade inerente ao discurso da loucura. Uma possibilidade deste, o louco, dizer coisas de conhecimento geral, mas que poucos se atrevem a afirmar. Tal liberdade acaba também, por vezes, isentando-o da responsabilidade sobre o que diz; torna-se um discurso de exceção. Por toda nossa história – e nossas estórias – à toda mulher que se atreveu a dizer o que não lhe cabia foi atribuída tal adjetivo: é louca. Histérica, desestabilizada, nervosa, despreparada.

Partindo da obra “Monólogo da puta no manicômio”, de Dario Fo e Franca Rame, Paula Cohen se utiliza da liberdade dada pelo contexto da loucura – além da violência imposta ao se deslegitimar um discurso – para, através da narrativa de vida de uma prostituta internada em um manicômio judiciário, acusada de atear fogo à um edifício, contar a história de inúmeras opressões, comuns à todas as mulheres.

No início de “Carne de Mulher”, Cohen conta ao público sobre o Oráculo de Delfos, mais importante e famoso da Grécia antiga, apresentando relações mitológicas, mitos de origem, acontecimentos do local e, fundamentalmente, sobre as mulheres que, banhadas por suas águas, tornavam-se poderosas profetisas. Durante este prólogo, mulheres do público são convidadas à escrever seus nomes no corpo – já preenchido pelas artistas da equipe do espetáculo – para que Cohen, atriz-performer, torne-se um oceano de almas femininas.

A encenação, dirigida por Georgette Fadel, faz uso potente da imagem do banho oracular, de revelações e descobertas, para que Cohen personifique todos esses discursos e histórias na sua narrativa em primeira pessoa. A fumaça que encobre a atriz conduz o espetáculo para este espaço de portal, onde a personagem canaliza na própria carne a amplitude e potência universal de sua trajetória particular. Fragmentada e sagrada, como apontada na concepção do cenário (e iluminação) de Marisa Bentivegna, a mulher encarnada grita por dignidade ao escancarar a ausência dela nas próprias lembranças.

A trilha sonora de Claudia Assef pontua os desenhos e intensidades criados pela interpretação de Cohen, além de conduzir o público à um ápice quase catártico ao fim de um espetáculo cuja trajetória é a da descoberta de si como fonte do saber; desvelar, a partir das vivências, não só as opressões mas as potências íntimas e infinitas de cada uma.

Ao universalizar a história desta prostituta, o espetáculo deixa de tratar, do que poderia parecer à primeira vista, de uma fábula sobre a vingança. Ao conferir legitimidade – e poder profético! – àquele discurso, a fala de uma louca deixa de ser algo isento de responsabilidade; muito pelo contrário: passa a fazer parte da construção de novos possíveis – ainda que, de certo modo, violentos. Dentro do contexto da narrativa, não se perde de vista a problemática da resolução daquilo, mas se permite uma vazão daquela série de opressões no sentido de um ato que se torna, no seu fazer, político.

Com imagens duras e repleta de momentos de intensa crueza, no texto e na encenação, “Carne de Mulher” passa longe de um monólogo monocromático e previsível. Chega até, por vezes, a fazer rir – seja do absurdo que é a realidade, seja de nervoso – mas não deixa escapar a seriedade do que é: um grito militante-poético pela recuperação e defesa da dignidade, no mínimo, da carne.