a solidão é
crítica de SOBREVIVER é a salvação pois parece que viver não existe, do Grupo Claricena, escrita por Fernanda Abegg a convite do ruína acesa. este texto foi comissionado pela produção da websérie.
por Fernanda Abegg
A escrita intimista de Clarice Lispector corporifica-se na websérie SOBREVIVER é a salvação pois parece que viver não existe. A escritora, que faria 100 anos em dezembro de 2020, foi celebrada por essa e outras obras do Grupo Claricena. Nesta experiência em particular, o projeto explorou a temática da solidão, fortemente agravada pela demanda do isolamento social que assolou o mundo nos últimos anos. Agora, com a pandemia abrandada, e o retorno das atividades presenciais, por quê falar sobre esse assunto?
Segundo uma matéria da Folha que chegou às redes no início deste mês, 1 em cada 4 brasileiros não se sente próximo a ninguém. O tema da ausência, a ânsia da comunicação frente à falta de contato, parece ser algo profundamente ligado ao nosso tempo. Mas Clarice, que viveu primeiro, que escreveu antes de nós, já sabia desde sempre que sentir-se só é uma das características mais profundamente humanas que existem. “Só” não em termos de ter pessoas ao nosso redor, mas sim em relação às conexões que conseguimos ou não criar com o mundo à nossa volta. Em uma de suas entrevistas, a escritora afirma que todo adulto é solitário e triste, ao contrário das crianças, porque estas têm a fantasia.
Nessa ficção-fantasia, a websérie, com direção de arte e edição de Suane Monteiro e encenação de Anderson Vieira, investiga essas e outras questões, e traz, de modo sensorial, video-poéticas em preto e branco, que compõem, quase como em um diário confessional, os conflitos de cada uma das personagens apresentadas. A escrita de Clarice se confunde com relatos pessoais dos narradores, demonstrando também que a identidade de gênero do seu texto é fluida. O projeto é dividido em 10 episódios, que estão disponíveis no canal do YouTube da Corpo Rastreado e nas mídias do @grupoclaricena.
- Seja um apoiador: conheça a campanha para manter a ruína acesa
- Leia mais: queimar o prédio, crítica de amilton de azevedo sobre Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento
- Leia mais: depois do fogo, crítica de Paloma Franca Amorim sobre Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento
AMOR É NÃO TER
A solidão é uma procura. Em casa, observando a vizinhança, quantas vezes você procurou algum modo de expressar tudo aquilo que não foi possível falar? Em um processo autoavaliativo, o ator Jamerson Soares executa sua rotina fisiológica, escatológica, enquanto pensamentos sobre um ex-amor o invadem. Nessa contemplação, a personagem percebe que talvez escrever seja a única forma de expurgar os fantasmas que lhe assombram. Com fragmentos extraídos de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, no primeiro episódio da série, nos deparamos com um vazio que busca ser preenchido pela leitura e escrita.
SOBREVIVER COM O OVO
A solidão é apego ao ego. Em Sobreviver Com o Ovo as texturas, os modos de preparo e de condução do eu frente ao outro são apresentados pela intérprete Letícia Figueiredo. Na cozinha de sua casa ela contempla, observa, interage e reflete sobre o que existe, sobre a vida que é feita de ciclos, nesse redemoinho de sensações que é estar viva, e o que esse fato contém em si. O texto do episódio inspirado no conto O Ovo e a Galinha, do livro Felicidade Clandestina, traz a angústia que o apego à ideia que temos do eu carrega, e, como forma de terceirizar as suas próprias emoções, coloca as inquietações da narradora sobre uma galinha.
O PÃO NOSSO DE CADA DIA
A solidão é alimento do cotidiano. A narração dupla e a presença de mais de uma pessoa em cena revelam o vazio na rotina dos dias, do trabalho (que preenche a barriga, mas nem sempre o espírito), da ida à feira, do voltar à casa, de encontrar os nossos, nesses movimentos de vai e vem, que mecanicamente realizamos como uma coreografia ensaiada. A trilha sonora na voz de Dorival Caymmi, invocando o vento, e sobreposta a fragmentos extraídos do livro Um Sopro de Vida, levam o espectador a questionar-se sobre um eu em constante mutação; sobre ser o que se é, e no instante seguinte, deixar de ser, por saber-se efêmero. Em um misto de confusão mental, onde a certeza de si é justamente a revisão diária sobre questionamentos corriqueiros e agonizantes. A atuação de Clecí Nascimento juntamente de sua mãe, deixa consigo uma indagação: o que me preenche hoje?
AMOR É NÃO TER / desilusão
Solidão é transmutação elemental. Em uma confissão sobre a necessidade de afastar-se de onde não cabe, a personagem interpretada por Jamerson Soares revela seus pensamentos durante o banho. O episódio, que pode ser considerado um desdobramento do acontecimento proposto no primeiro vídeo da série, apresenta um contraste ao evidenciar o susto de quem não percebe-se sozinho, frente àqueles que agarram-se a isso, como um mastro içado de sua própria identidade. Ao mesmo tempo, essa retirada demonstra uma incapacidade dissociante de se enxergar no outro. A narração traz passagens do livro Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres e a ação apresenta a escrita como modo de buscar uma conexão qualquer. Porém aqui, escrever é uma forma de vomitar o que é preciso, e o ato de queimar vem como a única opção para desobstruir o texto, porque o pensamento que passa à palavra torna tudo tão concreto, tão real, que aquilo que dói precisa ser transformado em cinzas pelo fogo. Os elementos, como a água e o fogo, curam esse coração despedaçado, demonstrando a natureza como elemento imperativo, porém a poesia não.
SOBRE A ETERNIDADE
A solidão é muito comprida. Contemplar a passagem do tempo, e enxergar a morte como o único fim do eu. Entender que eterno é o que vem depois, é quem vem depois. Com fragmentos retirados do primeiro capítulo do livro Perto do Coração Selvagem, o ator Juan Pedro entrega seu corpo às horas que dão passagem aos dias, e no fazer de atividades cotidianas, sem pressa, na calma do tédio, repete todo dia o mesmo dia. Em certo momento, um jogo de câmera confunde o olhar, o espectador, e é como se víssemos o mundo de ponta cabeça. A personagem olha frequentemente para a vista fora de sua janela, como quem contempla e espera pela passagem do tempo. Em um ato performático, ele retoma a ação com prendedores de roupa, dessa vez cravando-os em si mesmo. A solidão dura tanto que as pausas dilatam a extensão do momento. Essa sensação é reforçada pelo corpo parado frente à câmera fixa, com a personagem em suspensão, como quem espera pelo sempre, sem perceber que ele se passa a todo instante.
SEGREDOS P/ VIVER
Solidão é ter que fingir que não quero você. O vazio que vem de não poder ser quem se é em público, de ter que esconder nossos afetos porque o mundo não está preparado para receber. Com textos retirados do livro Água Viva, o ator John Fortunato se coloca em frente a uma janela gradeada, a qual acaricia como se fosse um corpo. O jogo de imagens sobrepostas desse dorso, sob esse mesmo corpo, cria a ilusão de dois seres juntos. Porém, o texto revela que para sobreviver, a personagem deve calar os próprios sentimentos. Em outro momento, o rosto do protagonista aparece projetado em um xícara de café, e entre longos silêncios, o vazio da incerteza, do medo de uma possível rejeição, tanto da pessoa amada quanto da sociedade, o assola e atormenta. Olhar para a parede, mirar a si, brincar consigo: ações que são mais seguras do que se abrir para uma experiência inesperada.
SOBRETUDO, SOBRE NADA
A solidão é um livro em branco. Em um dia de chuva, o narrador, seu cão e seus potes de plantas no jardim. Felipe Espíndola, que protagoniza o sétimo episódio da série, olha com desvelo para a câmera e toma para si as falas da personagem retiradas do livro A Hora da Estrela. As cenas, que apresentam as relações criadas entre ele e esses outros seres que habitam a sua casa, são cortadas pela posição mediúnica de escrita realizada pela personagem. Enquanto isso, ocorrem reflexões sobre a essência da escrita, sobre esse ato criativo tão tolo e solitário. As falas revelam a violência que pode estar contida nos nossos processos de criação e questionam o quanto da nossa identidade está forjada nos outros.
PARA NASCER
Solidão é estar vivo. Uma voz aveludada corta o quadro branco e vazio. Viver é incompleto porque somos seres que ansiamos. Será que vão para as plantas esse nosso cuidado que a gente não sabe onde por? Nessa relação com os objetos ao redor, nós e nossas coisinhas, que usamos para preencher os vazios que sobram e os pedaços que faltam, Gessyca Geyza é respiração, pelo e pele. Uma barriga que se expande e que reconhece que pensar sobre a coisa já transforma aquilo em existência. Uma fresta de sol irriga o rosto da atriz enquanto ela reflete sobre o nascer. Com trechos retirados do livro O Lustre, a protagonista aparece com seu corpo nu em posição fetal e, sem questionar o feminino, indaga, ora como criadora, ora como criatura, sobre os movimentos que geram a vida.
VAZIO ESPIRITUAL
A solidão é falta de léxico. Com medo do perigo de revelar o que está oculto, a narradora reflete sobre o ato da escrita. Como em um fluxo de consciência, própria da escritora, que pinta as palavras de uma cor quando na verdade sabemos que são em outra, a atriz Amara Hartmann passeia dentro e fora de uma casa. Com movimentos desesperados, como quem busca por algo já dito, já escrito, como quem procura pelas palavras escondidas, a encenação revela um cenário repleto de livros e uma cabeça vazia, incapaz de assimilar duas sílabas sequer. Com texto inspirado no livro Um Sopro de Vida, a personagem revela uma relação indireta entre a tristeza e o ato criativo, como quem afirma que quando felizes nos tornamos incapazes de produzir. Essa percepção é reforçada pela atuação que traz movimentos simbólicos sobre a escrita, e na cena, na qual frente uma enxurrada de papéis, de notas, anotações, ela revela o olhar perdido, vazio, e incapaz de redigir.
SOBRE LITERATURA E BRUXARIA
A solidão é ancestral. Um corpo esguia-se pelo espaço, e transita pela mata e pelos cantos da casa, revelando uma presente sensação mágica sobre tudo que existe, e que não entendemos o porquê existe, apenas sentimos. O episódio performado por Álefe Passarin, que age como quem vê tudo pela primeira vez, mistura as cenas desse lar-natureza, no qual encontra a vida como um bicho de carne e osso, descobrindo as sensações contidas no ser. Os fragmentos do texto são parte do discurso que Clarice fez em um congresso de literatura e bruxaria de Bogotá, e apresentam questionamentos metafísicos sobre o mundo que nos rodeia.
Maravilha ler um texto tão poético assim <3
Me senti totalmente inserida nesse texto.