teatro

queimar o prédio

crítica a partir de Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento, do Grupo Claricena, apresentado no WhatsApp, escrita a convite da produção do projeto Experiência Transmidiática com Clarice.

Entre os tantos contos, romances e ensaios de Clarice Lispector (1920 – 1977), há apenas uma dramaturgia: A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, publicada em 1964 em A Legião Estrangeira. No prefácio da seção Fundo de Gaveta, Lispector afirma que a obra foi escrita apenas por diversão enquanto eu esperava o nascimento do meu primeiro filho, ou seja, entre 1948 e 1949, e diz também que o texto não presta. Em carta escrita a Fernando Sabino anos antes, em 1946, a autora conta que começou a escrever uma “cena”:

(…) uma cena antiga, tipo tragédia Idade Média, com… coro, sacerdote, povo, esposo, amante… Em verdade vos digo, é uma coisa horrível. Mas tive tanta vontade de fazer que fiz contra mim. Não está pronto e está tão ruim que até fico encabulada. Mas você não imagina o prazer… (em Cartas perto do coração; trecho disponível no artigo Marcas do trágico em “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”, de Clarice Lispector, de Juscilândia Oliveira Alves Campos)

Ainda que vista de tal modo pela própria Lispector, a fortuna crítica do material aponta para sua relevância dentro da trajetória da escritora: Earl E. Fitz, autor de uma análise pioneira da obra (1997), aponta que “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos” pode ser lida como uma peça fundamental de transição, uma chave que revela o crescimento de Clarice Lispector como uma escritora criativa, e uma comentarista sociopolítica, especificamente no que diz respeito ao papel das mulheres na sociedade.

Quanto ao conteúdo, há artigos que se debruçam sobre o pecado dos pecados da condição feminina e sobre a única (re)ação da mulher da peça – o sorriso, visto como máquina de guerra – entre outros. Quanto à forma, além dos apontamentos de Fitz – que observa a obra a partir de sua estrutura dramática – vale observar a análise de Alexandre Villibor Flory (2020) e as lições do enunciado da forma que se pode inferir de A pecadora queimada.

Flory aponta para uma limitação da abordagem dramática e a necessidade do instrumental do teatro épico na direção do olhar sobre a dramaturgia. A pecadora queimada e os anjos harmoniosos traz personagens que falam em solilóquios, mesmo na presença dos demais. São simultaneamente alegorias e representações; não têm nomes próprios – Sacerdote, Amante, Pecadora, Esposo – e coros, que interferem na sequência das ações. Em cena, o julgamento de uma adúltera que nada diz, apenas sorri, e ao final será condenada à fogueira.

O Grupo Claricena, fundado em 2013, já havia realizado uma primeira aproximação a esta dramaturgia de Lispector: Espectro, de 2014, inspira-se na única tragédia teatral da autora, e é apresentado em teatros de Alagoas. Conforme o nome do coletivo indica, o intuito inicial era levar aos palcos obras gestadas a partir do universo literário de Lispector – desde contos até as cartas escritas e recebidas por ela. Nos anos seguintes, também encenaram criações autorais.

Em 2022, o Claricena volta a debruçar seu olhar sobre A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, partindo dela enquanto mote para conceber uma experiência formal singular: Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento é inteiramente apresentada no aplicativo de mensagens WhatsApp, em tempo real.

A encenação visual de Anderson Vieira desenvolve-se em diálogo com a dramaturgia de Júlia Balista e o dramaturgismo de Bárbara Esmenia; e um grupo de WhatsApp ganha dimensões diversas ao longo da obra. No início, depois das orientações técnicas, duas mensagens servem como prólogo. Primeiro, os minutos finais da última entrevista de Clarice Lispector. Eu escrevo simples. Eu não enfeito. (…) Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo. 

Ao mesmo tempo que é instaurada, ainda que de modo abstrato, a atmosfera de Mulher nenhuma, também aponta-se de cara uma operação formal recorrente: no final da mensagem de áudio, o mesmo trecho é reproduzido em velocidade acelerada. Afinal, estamos no WhatsApp, é 2022, e o tempo urge sempre. A segunda mensagem é simultaneamente de boas vindas e um convite à imaginação do espectador/participante. A voz de Fernanda Heitzmann, criadora e intérprete, desenha a espacialidade dos acontecimentos que virão nos próximos quarenta e cinco minutos. Definitivamente, nós estamos dentro de um prédio.

O Claricena define o espaço da ação, compreendendo a virtualidade da encenação e suas possibilidades de diálogo com o real. O público é informado de que pode interferir; na apresentação assistida, em geral, o que se viu foram reações às mensagens, ferramenta recente do aplicativo, quase como que os risos e suspiros que se ouviriam em um espaço cênico compartilhado.

Um dos números presentes no grupo carrega o nome de Contrarregra. De modo semelhante ao que se veria no palco, ele mudará o título e a imagem do grupo como quem troca cenários, além de enviar imagens, áudios e vídeos como quem opera luz, projeção e som. O WhatsApp é tornado caixa preta pelo Claricena, e há muito o que se pode construir neste mesmo espaço virtual. Nesse sentido, com as ilusões continuamente rompidas e os pactos e convenções refeitos a cada cena, estamos diante de uma obra épica, que narra a própria representação.

No primeiro ato, o grupo de WhatsApp representa um grupo de WhatsApp: uma reunião online de condomínio do Edifício Clarice está acontecendo, e todos ali presentes são moradores. A síndica lista as pautas e os conflitos começam a aparecer. Ao longo do segundo ato, acompanhamos os dias que antecedem o tão falado incêndio. O lugar do público altera-se a cada cena. O grupo varia entre espaço concreto, exibindo a troca de mensagens particulares e coletivas entre personagens, espaço narrativo, onde rubricas indicam movimentações e emojis constroem atmosferas, e espaço de representação, quando observamos por escrito interações e diálogos presenciais em apartamentos.

Definitivamente, nós estamos dentro de um prédio. E ainda estamos em um grupo de WhatsApp? O Claricena joga com as possibilidades e ferramentas do aplicativo a cada cena – áudios, figurinhas, gifs, emojis, envios de visualização única, apagar mensagens – de modo que a atuação dos intérpretes é muitas vezes tornada uma operação; ainda assim, há espaço para a representação e a narração. Para conhecer as personagens, é importante estar atento às sutilezas, como ruídos no fundo dos áudios e as telas de bloqueio dos celulares vistos nas imagens compartilhadas.

Não é simples perceber sempre a entonação das mensagens de texto – isso costuma acontecer quando conhecemos nossos interlocutores; então uma pontuação, uma maiúscula, um determinado emoji e outros detalhes podem significar muito. De todo modo, não há prejuízo na fruição de Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento. É curioso notar as escolhas da encenação em torno dos tempos entre as mensagens – em certos momentos, parece haver uma necessidade de colar a comunicação neste realismo virtual.

Realizar a encenação no WhatsApp faz sentido para a proposta temática da obra: o Edifício Clarice, onde moram as personagens, ainda que inteiramente plausível em nossa sociedade contemporânea, também representa uma distopia que evoca o fim absoluto da privacidade – e, aqui, por consequência, da liberdade e da intimidade – em tempos onde a velocidade da (des)informação é inatingível e suas imprecisões são inescapáveis.

Nas trocas de mensagens, tempo, expectativa e ansiedade dialogam diretamente com controle, liberdade, privacidade e, essencialmente, ser. Irene, a protagonista, fala de cafés com seu marido Jorge como quem fala de amores. Há simultaneamente angústia e leveza em seu existir. Ao final, quando consolida-se a ideia de que mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento, o caos não está nela, mas em seu entorno; nas estruturas patriarcais heteronormativas que precisam ser implodidas.

E como, então, ir além? Imaginar caminhos, futuros; incêndios. Definitivamente, nós estamos dentro de um prédio, em grupos de WhatsApp, nas ruas e em todos os lugares. Sim, Irene, querosene nas paredes que oprimem, violentam, matam. Que ser chama sirva para incendiar as estruturas, pois nada aquece o coração mais do que a fúria. Por nenhuma a menos.

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa – ou colabore diretamente através da chave pix@ruinaacesa.com.br]

serviço
Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento
Duração de cada apresentação: 45 minutos
Plataforma utilizada: WhatsApp - acesso via Sympla
Dias: 29 e 30 de julho / 5 e 6 de agosto (sexta e sábado, sessões às 19h e 21h)
Ingressos: http://www.grupoclaricena.com/p/ingressos_5.html 
Mais informações: grupoclaricena.blogspot.com / @grupoclaricena

ficha técnica
Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento
Grupo Claricena

Encenação Audiovisual: Anderson Vieira
Dramaturgia: Júlia Balista
Dramaturgismo: Barbara Esmênia
Produção Geral: Mariana Nunes
Assistência de produção: Fernanda Heitzmann
Direção de Arte e Design: Suane Monteiro
Criadores Intérpretes: Amara Hartmann, Emmerson Leão, Fernanda Heitzmann, May
Oliveira e Nathiaga Borges.
Técnico de Transmissão: David Oliveira
Assessoria de imprensa: Nossa Senhora da Pauta
Provocação em Lives: Anderson Vieira, Canafistula Lima, Fernanda Heitzmann, Mariana
Nunes, Oru Florydo, Tarcila Tanhas.
Social Media: Anderson Vieira
Realização: Grupo Claricena
Comunicação: Teatro Já!
Apoio: Nuclea TRANZBORDE