teatro

cosmogonias apocalípticas

crítica de Vaca, de Bruna Betito, apresentada na Mostra Solo Mulheres do Teatro de Contêiner Mungunzá.

Io, depois de ser transformada em novilha por Zeus, de quem era amante, e ser amaldiçoada por Hera a vagar pelo mundo sem descanso, cruza o estreito de Bósforo e encontra-se com Prometeu acorrentado no monte Cáucaso. Ele a conforta, dizendo que Io voltará a sua forma humana quando chegar ao Egito e será a ancestral de muitos heróis. Bruna Betito, no prólogo de Vaca, cruza um estreito entre zumbis famintos e pessoas morrendo. Uma mulher a amaldiçoa por ela ter sido amante de seu marido. Betito então caminha pelo deserto até que um homem velho e barbudo lhe dá comida. E a comida torna-se, subitamente, um pote de sêmen.

Nas representações da deusa egípcia Ísis, muitas vezes associada com Io, é comum vê-la com um ornamento de chifres de vaca em sua cabeça. É uma espécie de herança da divindade Hator, cujas características exemplificavam o ideal egípcio de feminilidade. Ísis era a mãe mítica dos faraós. Io era uma amante de Zeus tornada novilha. Betito é artista; dirige, atua e escreve a dramaturgia de Vaca. Com orientação cênica de Janaína Leite e dramaturgismo de Debora Rebecchi, a atriz criadora convoca referências das mais diversas ordens para constituir a teia cósmica de sua obra.



Entre caos, festa, cena e ritual, Betito opera uma cosmogonia apocalíptica que caminha entre sonho, pesadelo e a realidade das relações amorosas. Espaço onírico, balada, confessionário, última ceia, galáxia, programa de auditório: Vaca organiza-se em trânsito, convocando linguagens e relações conforme sente a necessidade. 

Após o prólogo, Betito dança uma coreografia exaustiva; esvazia-se para convidar ao preenchimento. Os mitos se entremeiam entre as luzes (de Daniel González) em movimento e as belas composições cênicas. Vale destacar também as belas criações em arame de Ítalo Iago, principalmente o adereço que fica suspenso durante quase toda a obra e é depois utilizado pela atriz.

No convite às mulheres do público de serem suas apóstolas para a elaboração de um juízo final sobre a questão das amantes, assim como no jogo de perguntas para a plateia, Betito faz de Vaca uma obra aberta, mas sob sua firme condução da narrativa através dos códigos escolhidos para as respostas e os modos de encaminhar as cenas. Ainda assim, parece haver algum espaço para mudanças de percurso e certas surpresas na lida de espectadores com o discurso da encenação.

Betito é uma maestra: tranquila, permite que certas temporalidades se esgarcem até o limite, gerando uma comicidade quase constante por suas abordagens ao tema central – a figura da amante. A atriz comenta a si mesma e ao entorno da encenação com humor, seja verbalmente ou por expressões faciais. E o riso da plateia também pode surgir, às vezes, como reflexo do nervosismo; Vaca convoca seu público à reflexão de forma aparentemente leve, divertida, mas sempre permeada por uma camada provocativa, questionadora.

Relações entre ser amante, monogamia, feminismo, fidelidade e lealdade fazem parte das constelações de sentidos propostas por Betito. Na trilha sonora, Vaca vai do amante não tem lar e o não quero atrapalhar você, até o querida, adeus, do militante que morreu por sua liberdade. Parece confuso colocar Marília Mendonça e um hino da resistência antifascista lado a lado. No contexto da cosmogonia proposta por Betito, Vaca constrói sua própria mitologia galática. Da vaca à via láctea.

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ficha técnica
Vaca

Direção, atuação e dramaturgia: Bruna Betito
Dramaturgismo: Debora Rebecchi
Orientação cênica: Janaina Leite
Preparação corporal: Thiane Nascimento
Adereços em arame: Ítalo Iago
Video: Tati Caltabiano
Luz: Daniel González
Técnica de luz: Angel Taize
Operação de som e projeção: Carlos Jordão
Figurino: Silvana Carvalho
Contrarregras: Emilene Gutierrez e Rafael Costa
Fotos dos cartazes virtuais: André Medeiros e Camila Rios
Poema: Angélica Liddell
Realização: Al Borde