arquipélago, destaque, teatro

discursos, escolhas e efeitos

crítica de Ubu Rei, texto de Alfred Jarry, com Os Geraldos e direção de Gabriel Villela. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Um imbecil, com patente de capitão, inserido no sistema político, toma o poder por ambições que se revelam absolutamente pessoais. Essa síntese possível, ainda que rasteira, de Ubu Rei, texto de Alfred Jarry estreado em 1896 na França, cola inteiramente o contexto da obra aos tempos que correm. Parece ser essa a percepção que impulsiona a encenação de Gabriel Villela em seu segundo trabalho em parceria com Os Geraldos (Campinas/SP).

Porém, logo de cara, há de se pensar: o que Pai Ubu ainda nos conta sobre os déspotas contemporâneos? Talvez muito: ao longo do século XX e em uma assustadora crescente nestas primeiras décadas dos anos 2000, o que havia de mais absurdo na ficção grotesca de Jarry mostrou-se mais e mais factível – a ponto de, possivelmente, a realidade ter ultrapassado em muito aquilo que se imaginava estar no limite da (pretensa?) civilidade democrática. Conforme aponta Felipe Charbel em crítica na Folha de S. Paulo quando do lançamento da tradução dos irmãos Gregório e Bárbara Duvivier para Ubu Rei (Editora Ubu, 2021), utilizada pelos Geraldos, “é notável o potencial alegórico da peça”, de modo que “o texto se acomoda muito bem a contextos históricos diferentes, sem parecer datado”, e a presente tradução alimenta “o tempo todo” sua “perene atualidade”.

Por outro lado, diante das abjeções que se observam ao redor do mundo, desde os totalitarismos passados às ditaduras e os ataques à democracia do presente, a absoluta estultícia de Pai Ubu é confrontada com estratégias e projetos de poder extremamente calculados mesmo em suas vulgaridades, com objetivos ainda mais tenebrosos do que a pura sede pelo poder e suas benesses. Como bem sintetiza Heloísa Sousa em seu texto sobre Ubu Rei no Farofa Crítica, “representar figuras autoritárias como risíveis e zombáveis, sendo essas mesmas responsáveis por projetos genocidas, não possui mais a mesma força simbólica que foi possível na França de Jarry em 1896″.



Assim, uma encenação contemporânea de Ubu Rei traz consigo um frutífero impasse: quais escolhas formais (e que adaptações, inserções, subversões dramatúrgicas) realizar a fim de que a obra mantenha a potência – que inegavelmente ainda pode nos dizer muito – do material original de Jarry? Em afirmação do diretor presente no release do espetáculo, trata-se de uma “sátira afiada do nosso país, respondendo, com violência poética, à selvageria e à estupidez destes tempos”. Na temporada de estreia em São Paulo, no Sesc Consolação, uma imensa adesão da plateia parece confirmar o que diz Paula Alzugaray em texto publicado na seLecT_ceLesTe: a associação entre a sátira de Jarry e à calamidade do governo de Jair Messias Bolsonaro confere à obra “a qualidade de um tratado sobre nossos tempos”.

Ao final do texto citado, Alzugaray afirma que a empreitada dos Geraldos com Villela “é uma catarse, uma resposta ao levante do fascismo”. A catarse, aqui, é diferente das tragédias – Charbel aponta que “o que temos ao fim da jornada insensata do Pai Ubu é outro tipo de purificação”, que “se dá pelo riso”. E sua pergunta, referente à dramaturgia, é relevante para esta reflexão: “mas do que rimos, no fim das contas?

Na encenação de Villela com Os Geraldos, rimos de figuras autoritárias “responsáveis por projetos genocidas”, citando novamente a crítica de Sousa, e talvez depois dos últimos quatro anos isso em si seja muita coisa, carregue consigo uma grande importância. Ao mesmo tempo, abre-se a possibilidade de pensar em torno das formas através das quais a obra faz rir. Apontá-la como “um tratado sobre nossos tempos” pode, inclusive, ser muito mais negativo do que a primeira impressão de tal expressão nos sugere.

Pois se é essa a “resposta ao levante do fascismo”, é uma resposta que não nos indica nenhum caminho, tampouco aprofunda a reflexão em torno de suas raízes e do sucesso de movimentos de extrema direita ao redor de todo o globo. A opção de Villela é a de considerar nossos tempos aqueles que correm na velocidade das redes sociais – o que poderia ser interessante, visto que talvez tenham sido elas (e suas máquinas de fake news mobilizados por gabinetes do ódio) as maiores aliadas da eleição de Bolsonaro em 2018. 

No entanto, o que se verifica na cena é uma comicidade que, ao colar-se nas citações da realidade política nacional, torna-se uma avalanche, uma verdadeira coqueluche memética que acaba por esvaziar qualquer verticalidade possível na crítica pretendida: Ubu Rei resulta em uma obra onde o discurso de suas várias camadas – da adaptação dramatúrgica assinada por Villela e Geraldos às escolhas musicais e o caráter multicultural de seus figurinos e adereços – é continuamente esvaziado em escolhas que objetivam o puro efeito.

Em sua ambição surrealista, o trabalho parece se pretender dadá. Mas a lógica que ele próprio constrói faz dele, no fundo, acrítico. Na busca pelo diálogo direto com o Brasil dos últimos anos, adota posições fáceis, considerando seu contexto e a maior parte de seu público, não enfrentando possíveis contraditórios, ainda que os lance de forma que soa irresponsável. O Ubu Rei de Villela e Geraldos parece mesmo jogar com e aceitar seu próprio vácuo. Mas mesmo para isso, para um pastiche, para uma sátira que abraça o sem-sentido, falta radicalidade.

Paulo Bio Toledo aponta, em sua crítica publicada na Folha de S. Paulo, que “o fracasso na estreia da peça [em 1896] é também um tipo de sucesso do material”. Da mesma forma, o sucesso de Ubu Rei, em 2023, pode ser visto como uma espécie de fracasso. Toledo também afirma que “falta o elemento inflamável que faria a peça explodir sobre o presente”; na encenação, “a provocação cede lugar à comunhão”.

Neste processo de comunhão, há pouco de efetivamente transgressor na presente montagem. O que assombrava os palcos parisienses do final do século XIX aqui é tornado puro escracho; a linguagem ofensiva já não tem o mesmo impacto, considerando o que se vê em qualquer dia comum nas redes sociais, em transmissões ao vivo do plenário da Câmara e registros de reuniões do alto escalão do último governo.

Assim, a opção de empilhar referências e comentários diretos da realidade nacional dos últimos anos resulta em uma reprodução da lógica memética – que, por sua velocidade, é geralmente rasa. O riso tem um quê de nervoso, mas sua criticidade é aos poucos solapada por um caráter difuso nas escolhas que constituem o discurso deste Ubu Rei. As ambições surrealistas acabam por se converterem em momentos constrangedores do desalinhamento entre intenção e realização, num ato de purificação pela purificação, de teatralidade pela teatralidade.

Em si, não se trata de um problema; cada equipe de criadores é absolutamente livre para levar à cena aquilo que quiser da maneira desejada. Mas certos momentos de Ubu Rei geram tanto ruído em sua caricatura política dos tempos que correm que parecem que estão lá apenas porque talvez Villela e Os Geraldos saibam que um retrato possível do contemporâneo é triste e ineficaz para além do deboche e do escárnio.

Há uma irresponsabilidade que se poderia pensar juvenil, não fosse o calibre dos envolvidos no projeto, no que aparenta ser uma tentativa de se colocar contra tudo o que está aí. Pois ainda que focada, evidentemente, no autoritarismo bolsonarista, Ubu Rei incorre em generalizações problemáticas sob qualquer viés. Na colagem nonsense dos fatos políticos, a relação entre personagens da ficção amalgamados à figuras públicas reais é costurada objetivando uma comicidade que depõe contra a própria constituição deste enquadramento da realidade na cena.

São muitos os exemplos disso, possivelmente o mais grave sendo a mudança no registro da interpretação de Bostadura (Railan Andrade, em trabalho que se destaca), abandonando os trejeitos e a prosódia de Bolsonaro para adotar os de Luís Inácio Lula da Silva após ter seu dedo cortado por… Carla Zambelli (a Czarina de Ciça de Carvalho). Além deste, há implicações complexas na trajetória de Bugrelau (João Fernandes), príncipe da Polônia, visto que os filhos do rei são inicialmente apresentados em referência direta aos filhos do ex-presidente (zero um, zero dois, zero três) e, em sua retomada do poder, o povo que o apoia canta El pueblo unido jamas será vencido – como se o retorno da monarquia “legítima” pudesse ser lido como uma revolução popular.

No geral, as canções surgem como comentários exógenos à dramaturgia de Ubu Rei, contrapondo ou extrapolando as questões abordadas, e notadamente enriquecendo a espetacularidade da encenação, sustentando seu ritmo frenético – a proposta é causar “uma sensação de vertigem”, como aponta o release da obra, para que o espectador embarque neste “delírio tropical”. Mas há uma ordenação muito grande nas camadas, ainda que difusas, sobrepostas, para que ela efetivamente dê o salto na direção deste transe pretendido.

Na intenção antropofágica do trabalho – apresentada no texto de Villela e Ivan Andrade (diretor adjunto e iluminador) presente no programa de Ubu Rei – a “canibalização” das tantas culturas é realmente a “goela pantagruélica” do casal Ubu, o que talvez faça sentido nesta tentativa de atualizar a violência que se viu na fruição à obra de Jarry em 1896. Mas mesmo esse choque já não é recebido da mesma forma, tendo seu impacto diminuído por um certo embaraço da plateia diante do pout-pourri de culturas e os chistes advindos desta sobreposição – que almejaria uma universalização da crítica, mas acaba por solapar (ou ignorar) contextos distintos entre a organização política de sociedades ocidentais e orientais, por exemplo.

A patafísica de Jarry, ciência das soluções imaginárias, exigiria um esforço maior de sublimação do absurdo da realidade que nos circunda para efetivar-se no Brasil de 2023. Na declaração de Paula Mathenhauer Guerreiro (presente em matéria de Ubiratan Brasil no Estadão), a Mãe Ubu da presente encenação, há, talvez, um indício dos caminhos patafísicos de Villela e Os Geraldos: “Em montagens passadas, essa personagem ouve calada a série de xingamentos e impropérios dirigidas a ela pelo Pai Ubu, mas, na nossa, Mãe Ubu é empoderada e responde à altura ou até mais alto que seu companheiro”. Neste alinhamento entre ficção e realidades, apontar como uma singularidade da encenação o empoderamento da figura de Mãe Ubu é como colocar Margaret Thatcher como um exemplo de liderança feminina na história moderna; esvazia-se o próprio sentido por trás da ideia do empoderamento, alinhando-se a premissas liberais.

O que paira no ar por toda a encenação de Ubu Rei é uma contínua reafirmação de que há algo de podre no reino… do Brasil. Ao encerrar a obra com Todo menino é um rei, a potência transgressora de Jarry dilui-se no que resulta, observando a totalidade do trabalho, em uma crítica superficial ao poder como um todo. A intenção anarquista soa ingênua, descolada do estado atual da ascensão da extrema direita no mundo, e a impressão que fica é de que o espetáculo, de aparente coragem, mais do que um tratado, talvez seja um sintoma dos nossos tempos.

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ficha técnica
Ubu Rei (2022)

Direção, cenário e figurino: Gabriel Villela
Direção adjunta e iluminação: Ivan Andrade
Dramaturgia: Alfred Jarry
Tradução: Bárbara Duvivier e Gregório Duvivier
Adaptação dramatúrgica: Gabriel Villela e Os Geraldos
Arranjos Musicais: Everton Gennari
Direção musical e preparação vocal: Babaya Morais e Everton Gennari
Elenco: Carolina Delduque, Ciça de Carvalho, Douglas Novais, Everton Gennari, João Fernandes, Julia Cavalcanti, Gabriel Sobreiro, Gileade Batista, Paula Mathenhauer Guerreiro, Patrícia Palaçon, Railan Andrade, Roberta Postale, Valéria Aguiar e Vinicius Santino
Assistência de figurino e adereços: Cristiana Cunha e Emme Toniolo
Costura: Ateliê de Dona Zilda Peres Villela
Fotografia: Stephanie Lauria
Visagismo: Claudinei Hidalgo
Maquiagem: Patrícia Barbosa
Design gráfico: Vanessa Cavalcanti
Assistência de produção: Bruna Paifer e Nicole Mesquita
Coordenação de produção: Tatiana Alves
Coordenação geral: Douglas Novais
Produção: Os Geraldos