teatro

tristes sonhos em ação

crítica de “Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias”, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.

Há uma máxima sempre retomada de Bertolt Brecht (1898–1956) que questiona: “que tempos são esses onde é necessário defender o óbvio?”. Pois a nova encenação do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que inspira-se nos quadros de “Terror e Miséria no Terceiro Reich” (1938), parece partir da assunção de que mais do que nunca, nos tempos que correm, o óbvio estabelece-se como campo de franca disputa.

Para o seu “Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias”, o Bartolomeu convoca aliadas e aliados, compondo um elenco de atores-mcs de extremo talento e potência. Depois de obras mais sintéticas — como “Antígona Recortada” (2013) — e experimentais — “Memórias Impressas” (2015), “Efeito Cassandra” (2016) — o coletivo parece retomar procedimentos — e à certa grandiosidade — vistos em espetáculos como “Orfeu Mestiço — uma hip-hópera brasileira” (2011). O Teatro Hip-Hop pesquisado pelo grupo, que parte do teatro épico, finalmente se encontra dramaturgicamente com Brecht.

A inspiração fica na estrutura e na temática dos quadros de “Terror e Miséria no Terceiro Reich”. Tal qual Brecht observou notícias e fatos de seu contexto, a dramaturgia de Claudia Schapira — em colaboração com Lucienne Guedes, que também atua, e o elenco — bebe da atualidade brasileira e a traz para cena de forma contundente. Na encenação assinada por Schapira, nove atores e atrizes, junto a dois DJs, encontram-se refugiados em um ensaio.

Eugênio Lima e Dani Nega estão atrás das picapes mas também são os primeiros Mestres de Cerimônia do espetáculo. São eles que apresentam a estrutura da obra: em um espaço quase nu — Bianca Turner assina vídeo e cenário, além de dividir a direção de arte com Schapira — atores sonham. Ali, propõem situações inspiradas no texto brechtiano. A ideia de improvisar utopias, subtítulo da peça, parece distante do que se vê.

“Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias” / foto: Sérgio Silva

Assumindo-se como ensaio, “Terror e Miséria no Terceiro Milênio” propõe um espaço aberto para reflexões incertas sobre os tempos que correm. Considerando que o presente contexto exige um posicionamento assertivo, a peça não deixa dúvidas acerca do discurso que a sustenta. Ainda assim há a possibilidade de se compreender o campo da criação como um desejo de utopia.

São tristes os sonhos sonhados. Duros, dolorosos. Há pouco tempo, Lima e o Coletivo Legítima Defesa levaram à cena o questionamento “e se Brecht fosse negro?”. Aqui, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos parece refletir sobre o que Brecht diria se fosse vivo hoje. Pois há sim, pairando no ar, certa similitude nos terrores do terceiro Reich em ascensão e do que se vivencia no terceiro milênio. As misérias que se desenham, no entanto, não se tratam meramente das econômicas: contaminam também o imaginário.

Na fricção com os quadros escritos na década de trinta, a busca pelos entrecruzamentos; além da possibilidade de tantos espelhamentos quase diretos — e assustadoramente nítidos, para não dizer óbvios — a necessidade de encontrar, quando não construir, as fissuras que precisam emergir. Quando o clássico quadro da “Mulher Judia” surge à cena, questiona-se de que mulher se está falando — e a encenação apresenta aí seus momentos de mais triste beleza na escolha de, na repetição de um trecho do texto, estabelecer uma narração que não se efetiva em uma ação cênica; permanece um incompleto vazio.

Nilceia Vicente e Roberta Estrela D’Alva em “Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias” / foto: Sérgio Silva

Em outro momento de grande sagacidade, Georgette Fadel apresenta uma proposta para a também clássica “A Cruz de Giz”. Uma metaprocessualidade se estabelece ali — e agora, é a ação cênica do quadro brechtiano que efetiva o discurso provocado, sem a necessidade de construir de fato a situação do original. É auspicioso a situação ser protagonizada por Fadel — em 2017, a atriz, branca, foi questionada por interpretar uma mulher negra em “Entrevista com Stela do Patrocínio” e aceitou as críticas, ouvindo-as de peito aberto e respondendo com um bonito texto — e põe em xeque muitas das boas intenções tão vistas em nossos tempos.

Ao convidar aliadas e aliados negros — à Lima e Roberta Estrela D’Alva somam-se Jairo Pereira, Nilcéia Vicente e Dani Nega — as questões sociais estão em constante racialização. Seja debatendo o armamento da população ou o genocídio institucional da juventude negra, “Terror e Miséria no Terceiro Milênio” aponta para o racismo estrutural da sociedade brasileira sem nenhum pudor. Em sólida interpretação de Pereira, talvez mais conhecido por sua trajetória como vocalista da banda Aláfia, um spoken word mobiliza uma plateia convidada a engajar-se desde o início do espetáculo. Em resposta poética à violência, responderão que seu revide é a vida.

O depoimento de Vicente comove ao mesmo tempo em que reflete criticamente acerca do narrado — o procedimento que está presente no nome do Bartolomeu insere dados performativos à encenação que não abandona em momento algum seu caráter épico. A potência é narrativa; e a direção de Schapira não se furta de enfrentar as problemáticas por trás da representação — e de suas crises.

Sérgio Siviero e Fernanda D’Umbra em “Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias” / foto: Sérgio Silva

No combate direto aos terrores e misérias de nossos tempos, há pouco espaço para mensagens dúbias. Porém, ironia e sarcasmo tornam-se fortes aliadas. A paródia de Chaplin executada por Sérgio Siviero, partindo — de algum modo — dos “Físicos” do original, explicita, em dupla operação, o patético por trás de certos discursos. Outro momento alto da obra é o juiz de “Em Busca da Justiça”, em brilhante trabalho de Vinicius Meloni. As implicações de nossos representantes com setores criminosos torna-se um problema para essa inquieta e angustiada figura. De algum modo, parece que a ficção está correndo atrás da realidade: os acontecimentos recentes geram novas reverberações na construção de Meloni.

Completam o equilibrado e talentoso elenco Fernanda D’Umbra e Luaa Gabanini — que também assina coreografias e direção de movimento. Nos demais elementos da encenação, compreende-se estas como camadas vivas da narrativa. A direção musical de Nega, Lima e Estrela D’Alva mantém o espetáculo pulsante. A iluminação de Carol Autran desenha a bandeira brasileira nas linhas cruas do cenário de Turner. Nos recortes de nosso símbolo pátrio, as ações acontecem. Ainda que contando com outros recursos, a luz de Autran encontra uma forma simples, ao mesmo tempo funcional e simbólica, de desenhar as cenas.

Nos figurinos de Schapira — com assistência de Isabela Lourenço — evoca-se a massificação fascista, com a predominância do cinza e a numeração do elenco. Vale destacar não apenas a criatividade das projeções de Turner, mas seu uso como elemento concreto. Constroem-se espaços outros e materializam-se objetos na cena.

“Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias” / foto: Sérgio Silva

No momento em que “Terror e Miséria no Terceiro Milênio” parece caminhar para o final, a angústia presente na ressignificação de “O Velho Combatente” surge. Para os tempos que correm, porém, não seria desse modo que se poderia conceber a improvisação de utopias. Seguem-se, então, os quadros escolhidos como finais pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Neste momento, ao trazer para o debate os Crimes de Maio — ocorridos em 2006 — a encenação parece nos lembrar que o contexto atual apresenta uma complexidade que não se pode resumir apenas nos acontecimentos mais recentes.

Para além disso, a oferenda a Obaluaiê e o final da encenação, tal qual o “Plebiscito” que encerra a dramaturgia brechtiana, serve de lembrete de que “melhor seria uma palavra só: ‘Não!’”. Recusar o terror e a miséria que teima em nos cercar é nomeá-la a fim de tornar possível seu desmascaramento e enfrentamento. Que os tristes sonhos postos em ação sejam o prenúncio de uma cura que não virá sem luta. Atotô!

“Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias” / foto: Sérgio Silva