atriz negra, manequim branco
crítica de Sin&Nhá, de Carol Carvalho, apresentada na Mostra Solo Mulheres do Teatro de Contêiner Mungunzá
Carol Carvalho recebe o público com aparente entusiasmo; sua personagem, vendedora da loja de departamento Sin&Nhá logo estará conversando com as pessoas a fim de fazer os cadastros de clientes e oferecer a todas o cartão da loja. O trocadilho no título do espetáculo é sua síntese: a sonoridade remetendo a uma grande rede vai de encontro às relações historicamente racistas construídas e mantidas em nosso país.
No espaço cênico do Teatro de Contêiner estão três araras de roupas, uma mesa, a atriz negra e um manequim branco. A luz de Alison de Sá (também diretor) privilegia os tons vermelhos das roupas vestidas pelo manequim e que ocupam duas de três araras. O roxo das outras roupas – assim como o preto do uniforme de Carvalho – evidencia-se menos. Sin&Nhá inicialmente aborda o mundo do trabalho precarizado, com suas metas massacrantes e as lidas com clientes e supervisoras. Mas não demora para compreendermos a interseccionalidade proposta por Carvalho em sua dramaturgia: é impossível desassociar raça e classe no capitalismo, especialmente nas margens do sistema.
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A partir de sua experiência – a atriz foi vendedora de uma grande loja de departamentos – e de relatos e pesquisas em torno de violências simbólicas e psicológicas sofridas por mulheres negras, Carvalho faz das situações vividas no local de trabalho metonímia para falar do racismo na contemporaneidade. Desde o segurança da loja que segue a própria funcionária até um divertido e incômodo bingo de expressões racistas comumente escutadas, o solo é perspicaz em sua assertividade, neste apontar sutil para os privilégios da branquitude; é difícil permanecer passivo diante da obra que convida à interação.
E Sin&Nhá vai além do retrato da funcionária negra entre manequins brancos. Carvalho compartilha memórias de sua infância que mobilizam reflexões em torno de como funciona este sistema que se estrutura em torno de e a partir das funções, expectativas e opressões lançadas sobre a mulher preta. Para levar à cena uma festa de aniversário, na segunda apresentação dentro da Mostra Solo Mulheres, a atriz pareceu intencionalmente escolher mulheres negras do público para segurar as bonecas brancas, enquanto uma atriz branca segurava a única boneca negra. A imagem, complexamente simples, é simultaneamente momento de restituição e de reafirmação do preconceito insistente.
O sintético solo de Carvalho organiza vivências que, ainda que nasçam de sua experiência individual, são imediatamente coletivizadas na percepção estrutural e estruturante dos atravessamentos de classe e raça em uma sociedade capitalista e inequivocamente racista. É sobre o que se precisa fazer; sobre o que é necessário aguentar. Na cena final, não mais a lace de cabelos lisos que ecoam a exigida progressiva; não mais o uniforme preto das lojas Sin&Nhá, mas sua pele negra à mostra – e agora em destaque pela iluminação recortada. Um manifesto do tanto que insiste em restar engasgado; do tanto que ainda há pra se dizer.
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ficha técnica Sin&Nhá Atriz: Carol Carvalho Dramaturgia: Carol Carvalho Direção Teatral: Allison De Sá Produção Geral: Ulisses Dias Identidade Visual: Josué Dias Iluminação: Allison De Sá foto de capa: Lucas Sato
Reflexão necessária, inteligente e elucidativa. Parabéns