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a palavra doçura na ponta de uma faca afiada

crítica de Barba Azul, de Lígia Fonseca, apresentada na Mostra Solo Mulheres do Teatro de Contêiner Mungunzá.

“Na história do Barba-azul, vemos uma mulher que cede ao encanto do predador, que acorda para a realidade e foge dele, mais sábia para a próxima vez. O conto de fadas trata da transformação de quatro introjeções sombrias que, para as mulheres, são objeto de controvérsia: não veja, não tenha insight, não fale, não aja. Para expulsar o predador, precisamos fazer o contrário. Devemos abrir as coisas com chaves ou à força para ver o que está dentro delas. Devemos usar nosso insight e nossa capacidade de suportar o que vemos. Devemos proclamar nossa verdade em alto e bom som. E devemos ser capazes de usar nossa inteligência para fazer o que for necessário a respeito do que vemos.” (Clarissa Pinkola Estés em Mulheres que correm com os lobos)

Um maço de espinafre é um bosque. Cebolas fazem as vezes de tesouros, maçãs são mulheres e crianças, uvas são chaves, a batedeira sobre a mesa é um castelo. E o peixe é Barba Azul. O mais monstruoso e animalesco de todos os maridos dos contos de fadas, conforme diz Bruno Bettelheim, é, desde o início do espetáculo concebido, escrito e interpretado por Lígia Fonseca, um peixe morto dentro de uma assadeira.

No conto eternizado por Charles Perrault, Barba Azul era um homem cheio de posses, mas cuja característica que o nomeia tornava-o horrível. Para convencer uma senhora a dar a mão de uma de suas filhas em casamento, ele leva-as, acompanhada de amigas e amigos, para uma de suas casas de campo. Depois de alguns dias, tudo ia tão bem que a caçula começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul assim e que era um homem muito honesto. Após se casarem, Barba Azul avisa sua esposa de que irá viajar. Deixa com ela todas as chaves do castelo onde vivem, proibindo-a apenas de entrar em um aposento.

É ao entrar nele que a jovem descobre os cadáveres de outras mulheres, antigas esposas assassinadas por Barba Azul. Diante da pavorosa descoberta, ela deixa cair no chão ensanguentado a chave do aposento. E não consegue limpá-la. É o que faz com que seu marido saiba que ela entrou no quarto proibido. Ao retornar de viagem, afirma que irá matá-la. Ela, então, pede alguns minutos para orar antes de seu fim e passa a gritar por socorro, ansiando pela chegada de seus irmãos. O final do conto de Perrault é, de certo modo, feliz: eles chegam a tempo, impedem Barba Azul de cometer feminicídio e o assassinam. Por não ter outros herdeiros, toda a sua fortuna fica com a jovem viúva-sobrevivente.



O indelével sangue na chave, segundo Bettelheim, é o único elemento mágico da estória – de modo que Barba Azul não se enquadraria perfeitamente na categoria de contos de fada. O psicanalista parte da moral da história de Perrault, publicada junto a ela na edição de 1742, para argumentar que o conto apresenta de forma extremada o tema de que a mulher, como prova de confiabilidade, não deve indagar dos segredos do homem: 

A curiosidade, apesar de atraente, 
Custa sempre muitos incidentes; 
Vemos todos os dias muitos exemplos. 
Trata-se, sem a ninguém ofender, 
De um momentâneo prazer. 
Assim que o temos, deixa de ser, 
E sempre custa demasiado caro. 
(Moral de Perrault para Barba Azul)

Na Outra Moral, presente na mesma edição, Perrault afirma que – já no século 18 – Essa história, veremos de imediato, é um conto de tempos passados. O autor aponta que não há mais esposo tão terrível. Que hoje, mesmo estando descontente e desconfiado, perto de sua esposa ele é sempre delicado. E conclui que é difícil julgar, dentre os dois, qual é o senhor. Difícil dizer se Perrault era ingênuo ou otimista, mas, guardadas as dimensões perversas e definitivas dos atos de Barba Azul, não é difícil notar os porquês de tal conto ainda dialogar com a sociedade contemporânea.

As leituras de Bettelheim em A psicanálise dos contos de fada em torno desta obra apontam, por um lado, para a problemática da curiosidade feminina e da confiança do homem para com sua mulher e, por outro, para o sexo. Para o autor, Barba Azul trata dos aspectos sombrios do sexo que deveriam mais se ocultar atrás de uma porta permanentemente fechada, e com um controle seguro.

Para lançar o olhar sobre o Barba Azul de Lígia Fonseca, faz mais sentido buscar outras abordagens. A dramaturgia de Fonseca parte da leitura de Clarissa Pinkola Estés do conto, principalmente no que diz respeito à forma de contar a história, inspirada mais na presente em Mulheres que correm com os lobos do que na original de Perrault, mas também no sentido de como a artista opera a aproximação entre a fábula e a sua própria narrativa. 

Segundo Estés, o Barba Azul representa o predador inato que habita a psique de todas as mulheres. E a promessa enganosa do predador diz que a mulher será rainha de algum modo, quando de fato o que se planeja é seu assassinato. 

Além da leitura arquetípica, Estés também nos lembra que muitas mulheres viveram literalmente o conto do Barba-azul, casando-se com um parceiro que é destrutivo para com a sua vida. E insistem em pensar tal qual a protagonista do conto de fadas: se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. 

É no cruzamento entre essas duas linhas de força – conto de fadas e realidade; o predador da psique e o da vida cotidiana – que transita Fonseca em seu Barba Azul. Nomeando assim o peixe sobre a mesa, ela já apresenta o predador como cadáver. Lá está ele, de barriga aberta, o componente principal para a receita que ela irá compartilhar com o público na mise-en-scène que se organiza como espécie de programa de culinária.

Dentre os ingredientes da encenação (dirigida por Nelson Baskerville), representações de personagens do conto e da história de Fonseca. E sangue. O sangue na chave é sangue de mulher, diz Estés, sangue arterial, da alma. Ele não mancha só a chave; ele escorre pela persona inteira. A atriz está sempre com um paninho para limpar suas mãos ao fazer uso da tinta vermelha para escrever nas paredes. É sua essência ali, indelével.

Fonseca estrutura a dramaturgia a partir desta receita sendo preparada, costurando ficções e realidades em um movimento de restituição: depois de ouvir, dentro de seu relacionamento abusivo, que ela não deveria ser atriz; depois de ser punida por este homem de tantas violências por insistir no teatro, lá está ela, fazendo do palco o seu lugar, tornando-o seu lar de distintas formas. É dela a cena, a casa, o cozinhar, o ser atriz, o ser mulher, o ser mãe, o amar e ser amada, o viver e o contar. 

A opressão de gênero é um mal que atravessa tempos e sociedades; Barba Azul traz, ao observar a narrativa a partir desta perspectiva, a epítome da violência contra a mulher na figura dos sucessivos feminicídios, enquanto sua motivação – o fato de suas esposas serem curiosas – também simboliza o assassinato da criatividade feminina, segundo Estés. São as diversas camadas de leitura sobre o conto de Perrault que faz com que ele atravesse tempos; infelizmente, mantendo uma triste atualidade.

Fonseca projeta trechos de Barbe-bleue, filme de terror mudo de 1901 dirigido por Georges Méliès e do Barbe Bleue de Pina Bausch (1977). E nos apresenta a sua receita, em 2022. Assim, faz de seu testemunho também discurso coletivo. Quando materializa com vísceras na mão a citação de Angélica Freitasum útero é do tamanho de um punho – a atriz criadora adiciona o outro lado da mão: a palma aberta, que tudo acolhe. Ali formalizam-se as tantas dores e os absurdos vividos – tão reconhecíveis por mulheres que se relacionam com homens, tão identificáveis em nós, homens que se relacionam com mulheres.

Além do bosque no coração, estão em cena as raízes e os frutos; dos antes e depois. Da etimologia de matrimônio e patrimônio, uma letra, um gênero, e um tanto que se altera e o quanto isso significa. Das três maçãs, que restam inteiras, sãs e salvas, filhas, futuras mulheres que também saberão que, nas relações, se existe algo de secreto, se existe algo de sombrio, se existe algo de proibido, é preciso que seja examinado.

Fonseca desenvolve seu Barba Azul pelos diversos movimentos deste exame. Na estranha receita sendo preparada, ingredientes pouco usuais se combinam. São dois os sangues utilizados na cena: um dela, a tinta separada em uma vasilha; um dele, visceral, de dentro do peixe. 

E o animal, ainda que morto, não está de todo inerte. A atriz dança com seu encantamento, sob o som de Fagner. Quem dera ser um peixe, para em seu límpido aquário mergulhar. Um aquário pode ser casa, mas é também prisão. Melhor escolher, na voz de Nina Simone, ficar com a vida.

De posse de todos os seus poderes instintivos, Estés convoca: não tenha medo de investigar o pior. Nem sempre é um quarto bem trancado. Pode ser uma revista na gôndola do supermercado. Pode ser uma porta rachada por um soco. Pode ser como a palavra doçura dita na ponta de uma faca afiada.

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ficha técnica
Barba Azul

Concepção, dramaturgia e atuação: Lígia Fonseca
Direção: Nelson Baskerville
Produção: Lígia Fonseca e Ana Elisa Mattos
Arte: Victoria Moliterno e Cora Maria

foto de capa: Andrea Pimont