ela, a que não espera
crítica de Penélope, dramaturgia de Lígia Souza com direção de Nadja Naira. realização: La Lettre.
[com a colaboração de Andréa Martinelli na edição]
Penélope. Em um nome, cabe muito. A referência imediata é a companheira de Odisseu, cuja narrativa de espera é contada por Homero. Mas tal qual o Ulysses de James Joyce, a dramaturgia de Lígia Souza toma o mito como potência para contar outra história. Sob a direção de Nadja Naira, Uyara Torrente e Pablito Kucarz são Ela e Ele, personagens sem nome. Irmãos distantes no espaço e no afeto, habitam um mesmo tempo, um instante de muitos anos, na tensão entre quem vai e quem fica.
Notadamente no prólogo e na cena final, o fluxo de pensamento de Torrente como a personagem feminina realça o tom joyceano de Penélope – há, inclusive, a citação direta ao trecho final de Ulysses; do célebre monólogo de Molly Bloom. Atriz, dramaturga e dramaturgia ecoam o sim: and yes I said yes I will Yes (e sim eu disse sim eu quero Sim). O texto de Souza foi escrito antes da pandemia e, segundo o bate-papo com a equipe no Zoom que acompanha as sessões da webpeça apresentada no Instagram, precisou de poucas adaptações para o formato online.
Ela e Ele estariam frente à frente na proposta original. Ainda assim, difícil pensar que o encontro e a proximidade física seriam capazes de superar a distância entre os irmãos. A relação familiar ecoa o retorno de Luis em Apenas o Fim do Mundo, de Jean-Luc Lagarce (Naira esteve na montagem de 2006 da companhia brasileira de teatro). Mas em Penélope não há um verdadeiro retorno – nem mesmo uma família ou um lar para se retornar, ao que parece.
O que há é aquele momento de diálogo, conflito, confronto, pensamentos em fluxo. Um instante que perpassa anos e a dúvida do tamanho do agora. Sobre ele mesmo, sobre o ontem, sobre o amanhã. Nosso tempo é especialista em produzir ausências, escreve Ailton Krenak, do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida.
Ausências, partidas e expectativas. Penélope carrega esses temas nas suas diversas camadas. O que se espera dEla é que ela espere. Que fique, que cuide. Desde o início fica evidente na interpretação de Torrente a diferença entre aceitar e querer Sim. Ele, nesse sentido, é também um homem que foge ao padrão; no trabalho de Kucarz, o que emerge é o ressentimento, que não raro destila misoginia em sutilezas.
Formalmente, a opção pelo Instagram traz consigo uma série de implicações – como aconteceria na escolha de qualquer plataforma, visto que os experimentos de base teatral que surgem durante a pandemia trazem, no geral, um dado inerentemente disruptivo ao uso corrente dos aplicativos em questão. Entre as imagens fugazes dos stories e os feeds organizados, influencers fazem de si próprios seus produtos, assim como produtores de conteúdo buscam adequar suas propostas às regras e limitações desta rede social.
Todo perfil criado em uma rede social é uma possibilidade de recriação de si; um filtro construído em torno de uma persona digital. Escolhemos quem, em nós, mostrar. Em tempos pandêmicos, as lives tornaram-se também espaços de encontro; dos encontros possíveis para este momento.
No pacto firmado por Penélope junto a seu espectador, a câmera que registra ator e atriz é por vezes sua contracena; em momentos pontuais, é o olhar do espectador, como nas rubricas anunciadas e na fala direta de Torrente ainda antes da entrada de Kucarz na transmissão.
Na colaboração de Paulo Rosa, a live tem seus vídeos editados ao vivo, o que simultaneamente subverte a rigidez tradicional da plataforma e também gera um efeito extremamente eficaz na composição cênica pretendida sob a direção de Naira. Além disso, há as sonoridades propostas por Álvaro Antonio, que ora se misturam ao ambiente de Kucarz e Torrente, ora deslocam a atmosfera do diálogo-conflito.
Assim, a direção de Naira organiza a dramaturgia de Souza dentro das possibilidades do online: a grandeza das personagens é reafirmada na somatória entre o uso da espacialidade física de onde ator e atriz estão e o jogo webcênico de composição de Rosa, que literalmente redimensiona quadros para transitar pela natureza das relações expostas em Penélope.
O resultante é um acontecimento cênico digital de direção precisa, que alinha uma dramaturgia que lida organicamente com questões densas a trabalhos sólidos de interpretação – destaque para o crescente final de Torrente, onde a atriz vivifica um contundente manifesto de Souza em torno da liberdade das mulheres. Ele o que fica, Ela a que não espera. A que se diz sim, que quer Sim, e vai à vida. Que existe em sua inteireza; até mesmo na sombra.