cinema

“Pass Over” e quem pode esperar por Godot

crítica do filme “Pass Over”, dramaturgia de Antoinette Nwandu e direção de Spike Lee.

[texto com spoilers]

Sai a árvore de galhos secos, entra um poste de luz com placas de rua. O não-lugar onde se passa a ação de Esperando Godot, de Samuel Beckett, é agora uma esquina de Chicago. Pass Over (2018), dirigido por Spike Lee, localiza a dramaturgia — sim, dramaturgia! — de Antoinette Nwandu em um dos quarteirões mais violentos da cidade americana. O filme se passa quase inteiramente no teatro Steppenwolf, também em Chicago. É apenas no início e no final que a ação não acontece no palco — ou nas reações da plateia.

Pass Over começa com imagens das pessoas que irão assistir à apresentação: em uma fachada, lemos St. Sabina Rectory — a paróquia de Santa Sabina é uma das maiores igrejas católicas frequentadas por afro-americanos na cidade. Não parece um público escolhido ao acaso: na narrativa de Nwandu, referências bíblicas são frequentes. O próprio nome já carrega consigo uma citação — além de tantos outros significados possíveis. Passover é o nome em inglês do Pessach, a Páscoa judaica que celebra a libertação dos hebreus da escravidão no Egito.

Literalmente, o título poderia ser traduzido como passar por cima — a legenda opta por atravessar. É possível remeter à frase de um conhecido pôster dos Panteras Negras: move on over or we’ll move on over you (siga em frente ou seguiremos por cima de você, em uma tradução livre). Porém, o que se vê no palco é a impossibilidade de seguir.

A dramaturgia de Nwandu inverte a chave beckettiana: seus personagens não estão esperando algo ou alguém, mas estão precisamente no momento que precede o salto para atravessar fronteiras imaginárias da cena. Cabe destacar a sintética cenografia de Wilson Chin — além do poste de luz, poucos objetos ocupam o palco — e sua metafórica barreira de areia que faz as vezes de Mar Vermelho para aqueles dois. É como se o quarteirão mais violento de Chicago estivesse sobre o deserto egípcio; camadas históricas de narrativas de povos escravizados se sobrepõem.

Vladimir e Estragon esperam por Godot; Moisés (Jon Michael Hill) e Kitch (Julian Parker) sonham com a Terra Prometida. Esperando Godot é uma obra extremamente aberta para interpretações pela crueza de sua composição: há a possibilidade de a observar pelo viés religioso, filosófico, político… Pass Over investe na leitura religiosa como subtexto, aproveitando a forma beckettiana para trazer à tona questões existencialistas por trás de falas banais. Mas, fundamentalmente e passando por cima de tudo isso, trata-se de uma obra sobre raça.

Uma das múltiplas leituras sobre a figura ausente de Godot é de que se trata de uma inalcançável liberdade. Naquela esquina, muitas das expectativas e desejos de Moisés e Kitch acerca da Terra Prometida são absolutamente mundanos; ao mesmo tempo, distantes daquele quarteirão que os aprisiona. Poder atravessar os limites a eles impostos significa passar a viver, e não mais sobreviver.

Ainda que seja evidentemente uma livre-adaptação da obra de Beckett, é possível refletir sobre as personagens que orbitam este duo central. Em Esperando Godot, há a estranha relação de Pozzo e Lucky: do primeiro para o segundo ato subverte-se quem está no comando. Além deles, há a figura do garoto que surge para avisar Didi e Gogo que Godot não virá naquele dia. Em Pass Over, vemos dois homens brancos: Mister (Ryan Hallahan, traduzido como Sinhozinho) e o policial Ossifer (Blake DeLong, em um trocadilho com o termo officer) com duas entradas cada, tal qual os personagens beckettianos.

Se Mister parece Pozzo em sua primeira entrada, principalmente no subtexto da relação dele com Kitch, em seu retorno torna-se uma visão brutal da figura do garoto: aqui, não mensageiro das más notícias, mas verdadeiro anjo da morte. Ossifer, por outro lado, também remete a Pozzo — em suas duas passagens. Arrogante, racista e violento, humilha e agride os dois protagonistas até que é impedido de matar Moisés por uma interferência sobrenatural e acaba redimido pelas mãos do profeta.

Aliás, é no entremeio das visitas de Mister e Ossifer que Moisés e Kitch compreendem que, para perseverarem em sua missão, seria preciso mudar sua forma de agir e de falar. Com o humor ácido que permeia todo o filme, eles buscam imitar a gestualidade de Mister; e nem mesmo essas tentativas que sugerem uma espécie de embranquecimento cultural — e o consequente apagamento de suas subjetividades — como tática de sobrevivência os poupam da violenta abordagem policial.

Po-Po é a gíria escolhida para os dois referirem-se à polícia. Ironicamente, a sonoridade do termo remete à pronúncia em inglês de Godot. Como se a motivação desta espera de Moisés e Kitch não fosse a liberdade trazida por um Outro, mas exatamente a impossibilidade de alcançá-la proporcionada por este.

Mesmo após a aparente intervenção divina, eles são impedidos de realizar sua passagem. Nwandu e Lee, entre diversas referências a acontecimentos reais (da escolha da esquina ao ajoelhar de Colin Kaepernick na NFL), compõem um mosaico ao mesmo tempo cru e poético do racismo nos EUA de ontem, hoje e amanhã. Mister nos lembra de Donald Trump e seus seguidores da alt-right, mas não só. O algoz da vida e dos sonhos destes jovens é o homem cis branco médio ressentido ao perceber seus privilégios em risco. Uma branquitude que crê que só ela deve poder sentar e esperar por Godot.