teatro

qontaminação ou dos cupins sem cabeça

crítica de “Parede”, do 28 Patas Furiosas.
foto: Helena Wolfenson

No café que se localiza à frente do Espaço 28, sede do 28 Patas Furiosas, o público recebe máscaras cirúrgicas e é informado por uma das atrizes que visitará uma obra já iniciada há algum tempo, mas que seria naquele momento específico que seria construída a “Parede” — título do espetáculo. Após algumas instruções e um estranho áudio que apresenta uma figura central à obra — dados que instauram certa aura misteriosa frente ao que acontecerá — adentra-se o espaço.

A peça-instalação do 28 Patas, com encenação, cenário e luz de Wagner Antônio, é simultaneamente obra e autópsia. Construção, reforma e destruição são mote das ações dos atores e atrizes, que, ao passo que lidam com a materialidade cênica do espaço, também concebem materialidades diversas dos próprios corpos. Ou, talvez, qorpos. “Parede” parte da figura do gaúcho Qorpo Santo (1829–1883) e de sua obra Ensiqlopèdia ou Seis Mezes de Huma Enfermidade para completar a “Trilogia da Instabilidade” do grupo, composta também por “lenz, um outro” (2014) e “A Macieira” (2016).

Tal qual a dramaturgia pouco convencional de Qorpo Santo é até hoje alvo de debates acerca de suas afiliações — pai do teatro do absurdo ou precursor do surrealismo? — a encenação do 28 Patas não faz questão de organizar-se dentro de uma proposta específica de linguagem.

O que emerge é algo instaurado entre a tensão performativa dos corpos em ação lidando com a materialidade dos blocos de concreto e demais materiais, uma base dramatúrgica que oferece pistas acerca dos acontecimentos que de alguma maneira embasam a constante construção e desconstrução e a sensorialidade do público, que se vê envolto por uma instalação desvelada aos poucos e imerso na atmosfera de instabilidade proposta pelo coletivo.

A materialidade cênica de “Parede” carrega potências diversas. Na encenação de Antônio, os qorpos dos atores e atrizes (Isabel Wolfenson, Murilo Thaveira, Pedro Stempniewski, Sofia Botelho e Valéria Rocha) emparedam a si próprios ao mesmo tempo em que transitam entre operários-cupins, condôminos insatisfeitos, seres sem cabeça, mãos em fachos de luz, imagens brutas e afetivas; a interpretação é construção. Densa desde o início, a peça-instalação concebe suas distintas camadas buscando demover suas hierarquias. Assim, a lida do público com a obra parte da instabilização de sua proposta cênica.

Se Qorpo Santo foi internado sob o diagnóstico de monomania, o que se constrói neste “teatrinho de condomínio”, como aponta a encenação em dado momento, é o argumento obsessivo da segurança. Após uma delicada composição imagética do elenco, na relação das mãos com os espalhados fachos de luz, e a segunda intervenção via áudio de .Q — voz em off de Tadeu Renato, que assina os textos que diz, além da dramaturgia de “Parede” junto ao 28 Patas Furiosas — a desenfreada reforma se inicia; atores tornam-se operários e o monolito de concreto torna-se um piso, palco para novas ações.

Após seis dias de construção, no sétimo se descansa. O mundo é então recriado, agora à imagem e à semelhança destas inquietas e confusas figuras. As manifestações de .Q — tal qual as reuniões do condomínio — se dão via WhatsApp. A misteriosa figura ausente motiva todas as decisões sendo tomadas; para que este qorpo não invada tais existências, que se subam tantas paredes quanto necessárias.

A reconstrução parece buscar, inicialmente, a mesma velocidade da comunicação permitida pelos aplicativos de mensagem. Ainda que exigente fisicamente, “Parede” parece não compreender em si a exaustão: é como se não houvesse espaço para ela dentro da contemporaneidade. Os atores e atrizes, como os cupins dos vídeos, seguem em constante ação.

O “viver sem cabeça” evocado tantas vezes torna-se uma inquietação: ainda que pareça ser o misterioso .Q aquele com a capacidade de espalhar-se e qontaminar aquelas vidas e espaços, é possível perguntar-se acerca de que corpo e de que cabeça se está falando. No trabalho do 28 Patas Furiosas, o diálogo entre as camadas da materialidade cênica e a interpretação dos atores parece apontar para a busca do que se deve quebrar para que se permita ao qorpo dizer.