notas sobre o que transborda
relato a partir da experiência da “Parabólica dos Sonhos”, do 28 patas furiosas
vento na minha cara, eu me sinto vivo (Baco Exu do Blues)
Vejo no aplicativo que meu ônibus levará trinta minutos para passar. Trinta minutos esperando no ponto é diferente de trinta minutos dentro da Parabólica dos Sonhos das 28 patas furiosas. Tempo. Tempo. Abro outro aplicativo e chamo um Uber. Consolação, Dr. Arnaldo, Cardeal Arcoverde. Acho curioso que neste caminho do centro para cá nós passamos em três cemitérios, digo para o motorista. Ele não prolonga o assunto. Espaços de luto. Do carro, consigo ver o funeral do Araçá. Estava vazio neste domingo à noite.
Tive vontade de perguntar ao motorista sobre seu sono; sobre seus sonhos. Durante a Parabólica, Valentina me ouviu contar um sonho. Na conversa, me lembrei de uma música da Bratislava (há algum tempo, eu e ela começamos a contar os sonhos um pro outro). Depois contei o mesmo sonho para Bel. Falei sobre como tenho sonhado bastante, lembrado bastante, me divertido bastante. Quando tomo umas cervejas antes de dormir, sonho mais, lembro mais. Bel me contou de seus dentes separando-se e um fluxo de rio nascendo dali. Sentei no colchão. Queria ter dormido lá. Gosto da ideia. Gosto de ver, contemplar. Sonhar é contemplação?
No meio, saí para tomar um ar no bonito vão ao lado do espaço cênico do TUSP. Olhei para o céu. Foi uma sensação estranha. Na Dr. Arnaldo, com o vidro aberto, o vento na minha cara, sou atravessado por uma sensação ainda mais estranha. Lembro de uma frase de Vitor Brauer nessa música: uma noção da existência absurda e um autoconhecimento brutal. Não sei se foi isso. O que sei é que o que capturei dentro da Parabólica, dentro de uma experiência de determinada duração espaço-temporal, borrou os limites da instalação. Agora estou no meu quarto, e a realidade parece menos real. Quero logo dormir. Sonhar. O que é essa porra de real?
Luzes, colchões, lâmpadas, madeiras, água, ovos, carvão, pequenos altares-totens a serem louvados profanados mobilizados observados (destruídos), fósforos, fósforos, fósforos. Vídeos também. Mas essas narrativas me interessavam menos. A agência sobre a materialidade, quem detém? E a agência sobre a realidade, quanto tempos? (A pergunta era “quanto temos”, mas digitei errado. E quase digitei errado de novo. Vou manter). O 28 patas furiosas joga com isso. Tempo e materialidade. Lembro quando assisti A Macieira no CCSP. Em dado momento da obra, me preocupei que talvez o metrô já estivesse fechado quando o espetáculo terminasse. Pareceram horas ali. Não foram. Pode parecer ruim; pra mim foi ótimo. E já falei da qontaminação dessa obra-autópsia-instalação que é Parede.
Parabólica dos Sonhos, processo, ensaio, pesquisa, instalação, seilá, pouco importa (ou importa muito?), é movimento: uma produção de sentidos a partir da lida coletiva e aberta com determinados elementos predispostos pelas 28 patas furiosas mas que serão (des)ativados por dezenas de patas mais ou menos furiosas. Uma agência em fluxo; parece haver sim um roteiro sim eles ensaiam pesquisam escolhem. Mas a obra depende da matéria de sonhos pesadelos e agires de cada um que ali entra. A plateia-totem, me contaram, não havia sido ocupada até hoje. Fui o primeiro a sentar. Muita coisa depende de um primeiro. Alguém precisa sonhar pra que se possa compartilhar o sonho.
Sonho. Eu queria ter deitado em um colchão e dormido ali. Que sonhos me habitariam no centro dessa Parabólica? Sonhos-mundo, sonhos-outro. Queria ter sonhado lá. Ou só dormido. Ao redor de mim os tantos modos de se ritualizar a vida, o luto, o novo. Nos vídeos a serpente. Ah, as serpentes. O confete lançado no ar é quase pipoca – Atotô, Obaluaiê. E papeis. Organizar papeis. Curvar madeiras. A festa é rito. O rito é matéria em ascese; é tentativa de cosmos diante do caos, sempre e insistentemente. Sonhar não é insistência: é abertura essencial.
Cheguei em casa junto com a chuva. Sonho é caminho. Penso no fósforo aceso que se curva em si enquanto guia um retorno. Seguimos a serpente na direção dos mortos para que a ritualização do luto seja ovo-semente de fazer nascer o novo? Sonhar juntes, ainda que se faça pesadelo. Sonhar com o mundo. Sonhar mundos.
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