pombo atropelado na estrada; fazer das tripas (do outro) coração
crítica de “Os Famintos”, da Fricção Coletiva
foto de Nasha
Discutir o ser-artista no mundo contemporâneo parece ser um lugar-comum inesgotável de possíveis. Há aqueles que defendem tal figura como a de um mártir, entregando sua vida a algo maior do que ela; outros romantizam a beleza do sonho de viver da poesia. Alguns acham que é bobagem, ou coisa de vagabundo. Fato é que é ofício; e hoje ofício há de se enquadrar.
Ao tentar situar-se em nossa sociedade, o ser-artista se confronta o tempo todo com seu ego, mas também principalmente com o mundo, este outro. A Fricção Coletiva, em Os Famintos, destrói a vaidade do artista em frente à impossibilidade de vencer o real.
Na dramaturgia de Natália Xavier, uma narrativa descritiva que se locomove rapidamente entre o concreto e o poético, somos transportados do choque da artista com (um)a realidade para o encontro dela consigo mesma; não sem passearmos por imagens incessantes que transitam entre o sublime e o rasteiro.
O papel transcendente da arte é evidente; no entanto, os meios para atingir tal objetivo nem sempre passam pelo campo do belo. A possibilidade desse alcance passa, inevitavelmente, pela atitude da artista frente ao mundo que a cerca. E pela altitude. Vencer a gravidade é ideia recorrente, e assim a artista deve ser pássaro.
E não é pássaro que não voa: é pomba, que voa, sim. Que vence a gravidade e pode ir longe. Mas vive embaixo. Vive rasteira, vive no lixo. Que é o que lhe cabe. Viver à margem, revirar os dejetos da sociedade que a rejeita ou ignora. E alimentar-se deles. Vencer a gravidade mas voltar pro subterrâneo.
Até porque a queda é sempre dura. Se iludidos pelo alcance do nosso voo, o retorno se torna mais difícil; quando não impossível. E se precisa voltar; pois é no escombro que nos fortalecemos.
E se quando confrontados com a realidade distante do outro que se adequa nos vemos impotentes e deslocados, ainda que buscando neles também o incentivo para o voo do imaginário, no confronto com um “igual” parece que só nos resta ser rato. Como se nossas asas fossem cortadas e só nos restasse o ínfimo da existência terrena, que já não basta.