reflexões, teatro

o que, por que, para quem?

[uma reflexão sobre os tempos que correm ou perguntas para um teatro do paradoxo]


O TEATRO DO PARADOXO

No filme A Vastidão da Noite (2019), lançado recentemente no Amazon Prime Video, o diretor Andrew Patterson localiza sua ficção científica nos anos 1950. Em uma evidente homenagem ao clássico Além da Imaginação, todo o enredo se passa como se fosse em um programa de televisão, chamado pelo filme de Paradox Theater.

A ideia de um teatro do paradoxo não soa como algo novo, mas parece muito precisa para falar de nossos tempos. Pois é possível que o que vemos on-line seja teatro e não seja teatro – como brinca o texto de Gustavo Pinheiro publicado na Veja Rio.

Como um teatro de Schröedinger, que é e não é até que possamos sair dessa caixa pandêmica e olhar com algum distanciamento para tudo isso – e provavelmente não haverá um consenso.

No mais, cabe lembrar do nome original da série clássica: The Twilight Zone. Cá estamos, vivendo de fato além da imaginação; ainda que se possa argumentar que a ciência já previa algo similar, não parece que seria possível conceber o que aconteceria em relação à pandemia em nosso país. Mas também estamos – e aqui tento focar no teatro, na arte teatral, no fazer teatral, enfim, escolham as palavras que melhor parecerem – nessa zona do crepúsculo. 

Quando o sol está tão baixo no horizonte, nossa visão pode ser ofuscada pelo seu brilho; mas são bonitas as cores no céu. Quando esse momento passa, pode tanto significar a aurora de um novo dia ou a chegada da noite. E são tempos difíceis para ser otimista.


TEATRALIDADE E VONTADE DE TEATRO

A internet, e fundamentalmente as redes sociais, são também teatros do paradoxo. Atuamos em toda a nossa liberdade possível, ainda que conscientes de suas ilusões e de nossa atuação. Quando o saudoso professor Jacó Guinsburg visita o pensamento de Nikolai Evrêinov em Stanislávski, Meierhold & Cia., afirma que o instinto de atuação na espécie humana ultrapassa mesmo o desejo inerente a cada pessoa no sentido de transformar a si própria, levando o homem a querer mudar a vida mesma e criar algo inusitado em geral.

Não parece haver palco mais fortuito para tanto do que o terreno digital. Guinsburg está versando sobre a ideia própria de teatralidade. Nela, cabem as publicações em stories e vídeos curtos do tiktok, mas só porque nela se insere tudo que diz respeito a incutir sentidos na vida: se há qualquer fundamento ou valor para a existência do homem no mundo, ele vem precisamente desse poder de atuação, jogo e transformação, de sua teatralidade, nos termos de Evrêinov. 

Em Além dos Limites, Josette Féral também traz o pensamento de Evrêinov ao localizar a teatralidade como um instinto de transformação das aparências da natureza. O russo se refere a tal instinto como vontade de teatro – um impulso irresistível encontrado em todos os homens.

No mesmo livro, Féral apresenta três exemplos que apontam para a teatralidade como propriedade do cotidiano: no primeiro, um espaço cênico surge como portador de teatralidade antes da obra iniciar; o segundo é uma apresentação de teatro invisível, proposto por Augusto Boal, onde é apenas o conhecimento do espectador acerca da intenção de teatro existente na situação observada que o força a ver o espetacular onde só havia especular, a semiotizar o espaço – o portador da teatralidade é o performer, mas é só com o conhecimento do espectador que esta se efetiva. No último exemplo, o olhar de um observador pode inscrever teatralidade na vida cotidiana.

Objetivamente, portanto, é evidente que há teatralidade nas obras sendo produzidas em plataformas digitais. O que não responde efetivamente à questão basilar dessa reflexão: teatro – ser ou não ser?

O que parece marca de boa parte das produções sendo apresentadas é a vontade de teatro decantada em pesquisas estéticas que partem de um cabedal cênico. Quando um grupo de teatro propõe-se a criar uma obra multiplataforma – utilizando, como exemplo, o experimento sensorial do Magiluth (PE), Tudo o que coube numa VHSo resultado não será nada próximo de um espetáculo teatral. Mas as ferramentas dos artistas-criadores são precisamente as do tablado. Há, em algum lugar, para além do impulso irresistível, algo de teatro. Na relação individual proposta, estabelece-se um tecnoconvívio simultaneamente virtual, ficcional e real.

Os pactos reinventam-se, as linguagens são radicalmente outras. Mas há um ponto de partida comum ao que se fazia antes. O referencial; o instrumental. Muitas vezes, não são produtos meramente adaptados para as necessidades desta realidade, mas criações que riscam o chão em tentativas de manter-se teatro, ainda que não sendo teatro. Peça, solo de Marat Descartes, é um exemplo impactante do que pode agregar a um projeto pré-existente a compreensão destes novos possíveis.


A PLURALIDADE DE CONTEXTO(S)

A história do teatro brasileiro é estudada e aprendida geralmente no singular, como se isso fosse possível. São histórias, estórias, sucessos, fracassos. Lançando o olhar ao contexto pré-pandemia, a diversidade de uma cena efervescente emerge, tendo como únicas constantes a pluralidade e a necessidade constante de deslocamentos para construir análises.

Mirando apenas o horizonte paulistano – o que já é muita coisa – é possível vislumbrar os abismos do que se podia acompanhar de teatro(s). Uma análise rápida e panorâmica já aponta para as quase infinitas possibilidades, entre montagens tradicionais, vanguardas e pseudo-vanguardas, textos clássicos e contemporâneos.

Plateias lotadas e vazias, (ausência de) atenção da grande mídia e da crítica, enfim: não se trata, aqui, de refletir acerca da qualidade, ainda que isso seja importante (assim como é questionar as próprias balizas que determinam o que é essa qualidade), mas sim de lembrar do quanto e das tantas formas que se fazia teatro.

Pois agora, o digital e suas limitações são também prato cheio, levando em consideração também o relativamente baixo investimento financeiro necessário para se entrar em cartaz nas redes, para experimentações – teatrais, mas não teatro.


HÁ SEMPRE UM ENORME GRAU DE INCERTEZA NO DECORRER DAS COISAS

Teleteatro – inclusive ao vivo – não é algo novo no Brasil; tampouco é nova a ideia do teatro filmado. Filmes construídos a partir da estética teatral também já estão por aí há algum tempo. Por que antes, então, não se via teatro on-line? Haviam iniciativas semelhantes, sim, como o Teatro para Alguém, mas poucas e de certo modo esparsas. Alguém estaria criando obras desta maneira não fosse esse desagradável contexto?

Não é como se muitas dessas pesquisas, mais ou menos inovadoras, bem ou malsucedidas, fossem fruto de um longo planejamento. O já citado Magiluth estaria estreando em São Paulo o espetáculo Estudo n°1: Morte e Vida. Possivelmente o primeiro a levar uma peça para as lives de redes sociais, Ivam Cabral escolheu seguir com a temporada de Todos os sonhos do mundo virtualmente, em seu instagram – e quatro meses depois, estreará uma versão pensada para o formato on-line.

Quantos grupos não foram forçados a deixar em suspenso projetos concretizados ou planejados? E aqueles contemplados por editais públicos, o que fazer? A adaptação para o on-line é um dos caminhos para que o movimento não pare. Neste sentido, cabe fazer a diferenciação do que motiva a criação no território digital. Tiago Rodrigues, diretor português, reflete sobre essa questão a partir das implicações por trás da sugestão de aproveitar a oportunidade para se reinventar.

Ironicamente, é às pessoas da Cultura, que sempre viveram em crise, em constante adaptação a circunstâncias precárias, tanto em tempos de crise como nos outros, que esta questão é colocada mais vezes. Este paradoxo é uma declaração de ignorância e de preconceito. Desde logo, é preciso que nos recordemos de que os artistas e todos os seus cúmplices são “reinventores” por natureza, fazem dessa capacidade de examinar e reformular a sua criatividade um labor diário.

Ao mesmo tempo, não se pode deixar que caia sobre a classe artística a cobrança de uma reinvenção por conta de um modelo esgotado – que, como Rodrigues aponta, sequer foi efetivamente implementado em Portugal; que dirá no Brasil. A questão do ser ou não ser teatro pode então ser reformulada: por que ser teatro?


A MÁQUINA DE PRODUZIR AUSÊNCIAS

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida.

Nosso tempo, na reflexão de Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo, ainda não é o da pandemia. É possível, inclusive, que se argumente que nosso tempo tem buscado produzir presença, ainda que virtual. Eliane Brum disse, ainda em março, que o que está acontecendo hoje é exatamente o contrário de isolamento social. Fazia muito tempo que as pessoas, no mundo inteiro, não socializavam tanto.

O convívio tornado tecnoconvívio; as relações inevitavelmente mediadas pelas tecnologias disponíveis (que, convenhamos, não são poucas). Será irremediável? Na análise de Paul B. Preciado, já não se trata só de que a casa seja o lugar de confinamento do corpo, como era o caso da gestão da peste. O domicílio pessoal se converteu agora no centro da economia do teleconsumo e da teleprodução.

A ideia do home-office – e da percepção, finalmente, de que algumas reuniões poderiam mesmo ser um e-mail – tem sido vista muitas vezes com bons olhos; mas essas novas relações de consumo e trabalho devem ser continuamente tensionadas e observadas sob uma importante criticidade. Conforme Preciado conclui, nossas máquinas portáteis de telecomunicação são nossos novos carcereiros e nossos interiores domésticos se converteram na prisão branda e ultraconectada do futuro.

Cá estamos, sem muita opção se não permanecer nesta prisão branda – aqui, é evidente que se faz um recorte de classe e cabe reconhecer que poder permanecer em casa é um privilégio dentro da absurdamente desigual sociedade brasileira. Uma prisão repleta de ofertas de liberdade, principalmente no que diz respeito ao consumo. Não é possível que estas possibilidades de teatro on-line tornem-se mais um produto dentre os tantos que podem chegar via aplicativos de entrega (e de videoconferências)?

Krenak aponta para essa mercantilização da vida e ao fato de que há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. O teatro é por excelência um espaço de fomento à cidadania; uma constante e construtiva ode à autonomia. A maioria dos artistas tem consciência disso e opera positivamente dentro dessa perspectiva.

Essa preocupação (se é que é uma preocupação e não um mote quase central no fazer teatral) pode – deve? – caminhar junto com uma busca por rigor e qualidade estética. A formalização de discursos é parte fundante das artes cênicas. Sendo as plataformas digitais um meio, o quanto elas já não trazem enquanto mensagem?

Qual é o controle possível sobre as convenções pactuadas com os espectadores? Aliás, cabe, sim, repensar continuamente as hierarquias que se estabelecem entre palco e plateia. Aqui, quando artista e público não coabitam o mesmo espaço, há uma espécie de anarquia na recepção. Nada garante que uma plateia sentada no escuro e em silêncio esteja efetivamente prestando atenção no que se apresenta. Porém, ao pensar na virtualidade, o artista perde muito de sua agência sobre o público.

Pode-se dizer que assim há uma possibilidade de maior liberdade na fruição, mas é uma visão otimista – ainda mais se considerarmos a fugacidade das redes e, por vezes, uma vontade excessiva de interagir com uma obra que não se pretende interativa. 

Há o risco de que o teatro on-line se torne apenas mais uma aba aberta no navegador; mais um aplicativo no celular. Um serviço de streaming apresentado ao vivo. Ou talvez nada disso ocorra e essa seja uma visão exageradamente pessimista. São tempos tristes. E criações bonitas estão sendo gestadas nestes tempos.

(Não se pode esquecer da oportunidade, antes inexistente, de uma parcela da população brasileira – inclusive muitos estudantes de teatro e artistas de demais regiões do país – de ter contato, ainda que virtual, com uma grande diversidade de produções feitas à milhares de quilômetros de suas casas.)

Mas e quanto ao porvir? Há um público sendo formado para o teatro? Que teatro será o da pós-pandemia? Um teatro de cadeiras distantes, onde tosses carregarão consigo motivos ainda maiores para irritar o restante do público?

O teatro do paradoxo continuará sendo e não sendo teatro, apresentado em lives de instagram, facebook, youtube ou em videoconferências? É um movimento efêmero ou veremos a consolidação de uma nova linguagem? O público, cada vez mais habituado ao delivery, ainda que ansiando que tudo isso acabe para sair de casa, sairá para ir ao teatro ou preferirá assistir à uma obra como se visse uma série da Netflix, dividindo sua atenção com comentários no twitter?

São muitas as perguntas, pois são muitas as incertezas. O que parece fundamental é observar que o teatro on-line não pode transformar-se em mais uma engrenagem do nosso tempo, essa máquina de produzir ausências.


(APÊNDICE:) ESVAZIAMENTOS OU O QUE (NÃO) PODE A CRÍTICA

A internet foi e segue sendo terreno fértil para a crítica teatral. Com cada vez menos espaço nos jornais e veículos de comunicação tradicionais, blogs e portais surgiram como uma alternativa muito auspiciosa para o diálogo com uma cena que já não cabia nas poucas páginas e pautas.

Também deixou na corda-bamba os parâmetros que legitimavam não necessariamente a escrita, mas seus autores. É excelente que se questione quem historicamente ocupou esse espaço – de algum modo, um espaço de poder. Ao mesmo tempo, como agora se legitima o fazer crítico?

No momento em que uma nova linguagem passa a ser observada dentro de um prisma teatral – ainda que dentro deste teatro de Schröedinger – o instrumental analítico necessário à crítica parece ser esvaziado em alguns debates. Não que houvesse um parâmetro estabelecido, muito pelo contrário: há tempos, para as muitas, muitos e muites que vêm escrevendo sobre teatro, a crítica significa deslocamento, embate, corpo-a-corpo com a obra.

Enquanto a arte teatral segue em movimento, ainda que virtual, há um paradigma que insiste em permanecer de pé: a ideia de que ainda hoje a crítica predominante assemelha-se àquela antiga, que olhava de cima para baixo para a cena e valorava dentro de padrões pré-estabelecidos o que se está inventando no momento do fazer. A crítica, hoje, não quer fornecer respostas absolutas; quer tatear junto e descobrir quais são as perguntas.