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epidemia jovem, sociedade doente

crítica de “Boca a Boca”, série de Esmir Filho produzida pela Netflix.

[a primeira parte deste texto é SEM SPOILERS!]

Uma epidemia aflige a pequena cidade de Progresso, um pequeno pólo pecuário no interior de algum estado brasileiro. A doença faz com que a população seja forçada a encarar seus medos e preconceitos enquanto também escancara suas contradições e segredos. Boca a Boca, produção brasileira da Netflix com criação de Esmir Filho, já seria uma série inscrita profundamente em nosso contemporâneo mesmo antes da emergência do novo coronavírus. Mas por conta desse contexto, ganha novos e profundos significados.

Gravada antes da pandemia, carrega coincidências sutis e outras poderosas: desde a limpeza das mãos com álcool em gel em uma das cenas até as reações diversas das personagens frente às medidas preventivas a serem tomadas. O Brasil parece caber inteiro naquela pequena cidade – e não apenas por coincidência.

Muitas das escolhas de Boca a Boca são certeiras e assertivas em suas metáforas. A relação do próprio nome da cidade com sua arquitetura colonial estabelece a contradição – ou mesmo a hipocrisia – deste Progresso. A Escola Modelo e seus jovens progressistas são confrontados pela mentalidade conservadora e reacionária da maioria dos pais e outros habitantes adultos.

A proposta de localizar a ação em uma cidade tão pequena potencializa a leitura da série como microcosmo de nossa sociedade. Nas personagens adultas, projetam-se instâncias de poder e lugares sociais diversos. Ainda que haja um desenvolvimento dramático que traz complexidade a algumas delas, é possível compreendê-las dentro de um espectro da representação de classes sociais.

Boca a Boca traz relevantes debates à tona a partir do desenvolvimento de sua trama. O roteiro assinado por Esmir Filho, Juliana Rojas (que também dirige dois episódios), Juliana Soares, Marcelo Marchi, Thais Guisasola e Jaqueline Souza, consegue abordar questões importantes de forma orgânica, ainda que por vezes pudesse se demorar mais em algumas narrativas propostas.

Os seis episódios parecem pouco para as tantas histórias contadas por Boca a Boca. A série é corajosa e ousada ao escapar de clichês do formato, mas infelizmente não consegue fugir de uma característica (ou limitação imposta?) cada vez mais comum às séries da Netflix: temporadas curtas e a necessidade de elaborar um gancho para a sequência de uma história que poderia ser melhor desenvolvida e finalizada com mais calma se houvessem mais alguns episódios.

Não que a possibilidade de uma nova temporada seja ruim, muito pelo contrário: a consistência da primeira temporada de Boca a Boca, cujo roteiro pode até derrapar, mas o faz por se arriscar, gera uma expectativa positiva de sua continuidade. A interessante narrativa polissêmica não é o único aspecto que merece destaque na série.

A fotografia de Azul Serra, somada à direção de arte de Frederico Pinto, é de uma beleza ímpar. Boca a Boca deleita-se em sua proposta neon, tanto nas festas quanto na caracterização da doença. Ao mesmo tempo, opõe à dinâmica fluida das cenas entre jovens uma sóbria rigidez quando adultos estão presentes.

Muitas vezes a história é contada em stories: as redes sociais e aplicativos tornam-se dispositivos narrativos que funcionam muito bem na série, que tem uma forte presença de elementos da cultura digital, como memes e até mesmo vídeos de ASMR.

Enquanto isso, a excelente trilha original de Gui Amabis mergulha no synthpop e em batidas lo-fi enquanto aproveita ótimas músicas de artistas nacionais – como Baco Exú do Blues e Letrux, que assina canção original e exclusiva da série.

No elenco, nomes carimbados e competentíssimos como Grace Passô, Denise Fraga e Flávio Tolezani convivem bem com jovens também talentosos – o trio protagonista é formado por Iza Moreira, Michel Joelsas e Caio Horowicz, respectivamente Fran, Chico e Alex.

Boca a Boca parte das vivências e experiências destes três jovens em um momento de crise para falar sobre muito mais temas do que apenas a epidemia. A série se mantém densa enquanto transita pelo suspense ligado à doença e temas caros ao amadurecimento – seja dos adolescentes, seja de uma sociedade como um todo.

[atenção: depois da imagem, o texto seguirá COM SPOILERS!]


Fran, Alex e Chico
Iza Moreira (Fran), Caio Horowicz (Alex) e Michel Joelsas (Chico) em “Boca a Boca”

o tanto que há entre ápice e apatia

A polissemia de Boca a Boca reside essencialmente nesta pluralidade de metáforas que podem ser lidas. Há momentos onde o discurso da série é cristalino e as relações se estabelecem sem nenhuma dúvida. Porém, ao acompanhar novos desdobramentos, abre-se um campo de possíveis na busca pelos sentidos por trás do que acontece em Progresso.

No início, a base da epidemia parece ser uma punição aos impuros. O assassino é imunológico, internalizado, não é o outro: o corpo do jovem é simultaneamente agressor e vítima. A reação de criar uma hashtag que desafia os jovens a seguirem se beijando é ao mesmo tempo negacionismo e reação – de algum modo, essa ação remete, ainda que em chave quase inversa, à filmes de terror como Medo em Cherry Falls (2000), onde as vítimas do assassino são pessoas virgens e muitos resolvem fazer uma grande festa para transarem e, assim, se livrarem do risco.

É como se no Progresso dos nossos tempos a onda conservadora fizesse com que a liberdade de experienciar o próprio corpo fosse um risco. Enquanto o contexto pandêmico e mentalidades autoritárias no Brasil e no mundo tornam essa problemática tremendamente atual, também ecoa fortemente em Boca a Boca questões relacionadas à outras epidemias com origens súbitas e misteriosas – marcadamente, o HIV.

A metáfora torna-se óbvia quando, já na aldeia, Manu (Esther Tinman) revela a Alex que não há cura; apenas modos de conviver com a síndrome. A série aborda não só o risco da doença em si, mas os estigmas carregados por ela e as violências advindas disso.

Porém, o roteiro não se prende à isso. Traçando o caminho desde a contaminação até a manifestação dos sintomas, os jovens passam por uma experiência que vai da alucinação à insensibilidade. Ressoa como outra metáfora, simbolizando o que seria um amadurecimento saudável dentro de uma sociedade doente – como diz o nome do último episódio.

O contraste entre a ânsia de existir dos jovens e o pseudo-controle do mundo adulto é uma constante – espelhada também na oposição entre cidade e aldeia, pouco explicada nesta primeira temporada. É a partir desta dicotomia que se constroem os vilões, seja de forma maniqueísta ou um pouco mais complexa.

Nero (Bruno Garcia) é uma representação do latifundiário cuja mentalidade segue escravocrata e racista. Sua visão de progresso é a possibilidade de transgressões éticas na direção do maior lucro. Enquanto isso, Guiomar (Denise Fraga) é uma figura com mais nuances, cujo arco dramático desenvolve-se a partir de suas descobertas relativas à Manu – mas, ainda assim, parece plausível que tenha sido ela a chamar a polícia no cliffhanger da temporada.

Ao longo dos cinco primeiros episódios, muitas faíscas poderiam fazer a narrativa brilhar ainda mais. O detalhamento da curiosa relação de Chico com seu irmão Quim (Kevin Vechiatto), um olhar mais aprofundado sobre a paixão de Alex e Manu, um explorar mais cuidadoso da relação de Fran com sua irmã gêmea falecida – aqui, aliás, a série parece flertar com uma referência ao livro A Desumanização, de Valter Hugo Mãe.

Algumas das trajetórias se desenvolvem com uma boa medida entre a delicadeza e a calma necessárias e a assertividade para reafirmar o discurso. Exemplo do primeiro caso é a relação de Maurílio (Thomas Aquino) com Chico; do segundo, as tantas cenas onde desvela-se a relação da família Nero com seus empregados e a falácia do “ela é quase da família”.

São muitos os fios que permanecem soltos ao final da primeira temporada de Boca a Boca. As maiores fragilidades parecem revelar-se quando ela se aproxima de seu fim. Causa certo estranhamento – e isso talvez seja proposital – que os estudantes da Escola Modelo, logo após libertarem-se em mais uma festa e apelidarem a cidade de #Retrocesso agissem de maneira tão tóxica em relação ao vídeo íntimo de Chico; a reação de seu pai e a violência dos cidadãos de bem numa rua escura, por outro lado, é bem plausível.

A resolução do problema central da primeira temporada – em cena onde mais uma vez a fotografia de Azul Serra e a direção de arte de Frederico Pinto chamam a atenção – é catártica e conciliadora. Já o gancho proposto para os próximos acontecimentos é um dos raros momentos de Boca a Boca onde o inesperado não agrega novas possibilidades de leitura: as ações orquestradas da polícia na aldeia e na escola soam incoerentes, assim como a imagem de Manu aprisionada ao final.

Talvez o grande mérito de Boca a Boca seja a junção de sua qualidade técnica – na direção, na arte, na fotografia, nas interpretações – com um roteiro inventivo que não se prende à apenas um discurso e não conta apenas uma história. A ousadia, porém, trouxe consigo riscos, principalmente ao considerar a curta duração da temporada.

Ainda assim, encerrada a série, um misto de sensações permanece. Para além das dúvidas não respondidas pelo roteiro, Boca a Boca deixa muito a se pensar; a multiplicidade das metáforas carrega também sinais confusos do que apreender da obra. 

Pois talvez seja disso que se trata: construindo certezas na forma de autoenganos, os adultos da série descolam-se completamente de seus filhos. Enquanto isso, os jovens aceitam as contradições da adolescência e tem lá seus momentos surpreendentemente maduros.

Entre o místico e o simbólico, a trilha da doença estanca sentimentos enquanto ilumina o coração. Boca a Boca fala sobre o dentro que extravasa quando se pode existir, mas parece apontar para o tanto que há entre viver no ápice e na apatia.