teatro

o que fica e quem se vai

crítica de “Entre Vãos” (cena 1: “Livreiro”), do Coletivo Teatral A Digna

foto de Alécio Cezar

As coisas na cidade possuem o valor que nós damos a elas. O que e como elas significam é responsabilidade de cada um que a possui, vê, habita ou cria. Na disputa com a realidade e seu concreto, no entanto, a abstração torna-se insignificante.

A manutenção do mundo já não leva em conta as potências simbólicas contidas em suas construções, suas possibilidades, seus encontros; a poesia é acinzentada e cimentada em novas paredes que não tardam em subir para que o cotidiano acelerado, esse sim, não ouse lançar-se em suspensão para novos olhares.

Entre Vãos, do Coletivo Teatral A Digna, nos convida a visitar olhares, encontros e desencontros da nossa sempre significativa São Paulo. Dividido entre as três personagens – o Livreiro, a Anjo de Corredor e a Balconista – o público tem acesso à uma parte da narrativa, acompanhando a trajetória da personagem escolhida até um desfecho coletivo. Este texto traz reflexões sobre a cena do Livreiro.

Convidados para uma palestra sobre “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, vamos rumo à ocupação do hotel Cambridge, onde o sebo Lido e Relido está instalado. Ao lá chegarmos, somos recebidos por uma figura atrapalhada, ainda de roupas de baixo e creme de barbear por todo o rosto. Aquela sala, seu sebo, é também sua vida. Os livros, desorganizados; a interação conosco, confusa; um início não exatamente receptivo. Mas logo tudo começa a se encaixar. Ao entrarmos ali, é como se entrássemos no âmago daquela pessoa.

Como se o mais íntimo de alguém pudesse estar nas suas coisas, na solidão delas, espalhadas, bagunçadas por todo um pequeno cômodo, daqueles sem valor nenhum, daqueles que indubitavelmente virão abaixo graças à imparável força do progresso, seja lá qual for seu custo. Como se uma ordem judicial nos despejasse de quem somos, ou ainda, de quem pudemos ser; de quem almejávamos ser. Mesmo quando o afeto da poesia é um afago triste, um acontecimento trágico onde as coisas se transformam e ganham novos significados.

O Livreiro nos conta sua história através da história de seus livros e autores. Numa sucessão vertiginosa de apresentações, subentende-se que o “efeito Werther” reverbera em cada vida de maneira diferente – mesmo quando de maneira inventada. Por trás de cada escritor suicida, uma conjunção enorme de fatores. Alguns tão tristemente absurdos que chegam a ser risíveis. E o que isso significa? Que atmosfera é gerada? Talvez, a vida que nos move seja a vida que nos mata.

Ou ainda, a cidade que nos move também nos mata. Ao passearmos por nossa existência, criamos nossas próprias mobilizações mas também somos mobilizados pelo que nos circunda, por uma cidade em constante movimento; um movimento que muitas vezes segrega e exclui.

Somos convidados pelo Livreiro a acompanhá-lo: ainda há um bilhete a ser entregue, uma mensagem com destinatário certo. Então, munidos de fones de ouvido, seguimos essa figura única – entre tantas figuras únicas – enquanto a dramaturgia não apenas cria uma atmosfera sonora como guia e provoca nosso olhar.

É ali, no metrô, entre vãos, que somos lembrados da complexidade e da plenitude de cada outro cujo olhar (não) se cruza com o nosso. Reconhecer este outro como um repleto de possíveis, como um que também valoriza suas coisas, que as transforma e cria significados.

Ainda que as três figuras se encontrem no espaço vazio, é como se lá não estivessem; em meio às massas velozes e fugazes, às construções e destruições do cotidiano, nossa presença em meio ao caos da cidade não passa, muitas vezes, de ausência.