exaurir o presente
reflexão crítica de amilton de azevedo sobre “O que fazer daqui para trás”, de João Fiadeiro, apresentado na 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp)
O palco do Teatro Cacilda Becker está vazio. Não há rotunda nem outros tecidos para esconder algo da maquinaria. No fundo, uma porta aberta. Um microfone está no centro do espaço em um pedestal. As varas de luz estão à vista, baixas. Não há qualquer recorte na iluminação; ela não distingue cena e plateia.
Já se passaram alguns minutos do horário estipulado. O público conversa, mexe nos celulares, folheia o guia da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp). É incerto precisar quando O que fazer daqui para trás começou. Só se percebe que isso já aconteceu quando a primeira performer subitamente irrompe da porta ao fundo, para em frente ao microfone, ofegante, e narra breves instantes de pessoas que talvez existam em algum lugar e as relações que se tecem entre elas — que nunca se viram.
Ela corre novamente, agora em direção à plateia. Abre uma porta lateral e ouvem-se seus velozes passos ao longe. A luz do público segue acesa. E agora? Risadas, comentários, incertezas. Grande parte dos espectadores voltam a conversar, mexer em seus celulares, folhear seus guias da MiTsp. Um vazio. O que se espera de uma obra teatral?
Após alguns minutos, chega outro performer, ofegante, ao microfone. Ele fala um pouco. Volta a correr, sai pela porta lateral. Neste momento, já se compreende o dispositivo da encenação. Ou não? Espectadores riem, voltam a conversar, mexem em seus celulares, folheiam seus guias da MiTsp. Mais uma performer surge no palco. A atenção do público é retomada. E assim, João Fiadeiro propõe espaços de ausência em sua obra, exigindo uma mobilização de seus observadores para que preencham-se de vazio — ou o preencham.
No desenho de luz de Colin Legran, uma variação sutil diminui a resistência sobre a plateia. Nas varas à vista, refletores apontam para o urdimento. Demora para se ter certeza de que sim, há uma lenta dança acontecendo ali. Iluminar o que geralmente se esconde. As dramaturgias de O que fazer daqui para trás se escrevem em lugares visíveis, invisíveis, reais e inventados.
Pois o que diz um microfone desguarnecido? O que resta das respirações ofegantes e da vitalidade dos corpos que ali passaram quando já não há nada — ou há algo? Nas falas, há escuta? E entre elas? Muita coisa está (nos) acontecendo enquanto esperamos que algo (nos) aconteça. Adaline Anobile, Carolina Campos (também assistente de direção), Márcia Lança, Iván Haidar e Daniel Pizamiglio estão correndo.
A ação de dar voltas em quarteirões do bairro da Lapa não é vista pelo espectador. Mas é nela — e na exaustão que aos poucos habita os corpos dos performers e co-criadores — que se constitui a encenação. Enquanto isso, dentro do teatro, contempla-se um palco vazio. Ocupado, talvez, pelos rastros dos textos ditos ao microfone — que, muitas vezes, também estão convocando a imaginação do público para lugares outros. Seja o espaço externo, seja uma vastidão interna — afinal, conforme um inquieto performer questiona, o que é o corpo?
Virtualidades e o real se entremeiam na proposta de Fiadeiro que não estabelece nitidamente uma convenção com a plateia. O pacto não é firmado por todas e todos; consequentemente, a imersão na obra fica em suspenso. Há muito do poema de O que fazer daqui para trás a ser escrito na mente, corpo e sensibilidade de quem se insere como observador daquela dinâmica.
Nas falas de cada performer, diversos temas e abordagens: corporalidade, alteridade, materialidade. Elas e eles trazem para dentro o que há fora. O público é convidado a fazer o mesmo. Ou não. No palco, as corridas agora quase se sobrepõem. No urdimento, luzes passeiam em um céu inventado. Uma performer ofegante não diz nada, apenas respira. Exausta. Respira. A luz passeia como que indo embora. Agora, o presente se exaure também por um instante.