teatro

do corpo à culpa (tenha cuidado e um tênis de corrida)

reflexão crítica de amilton de azevedo sobre “Tenha Cuidado”, de Mallika Taneja, apresentada na 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp).

[edição: Andréa Martinelli]

(foto: Sissel Steyaert)

Blecaute. Sobe a luz. Mallika Taneja está nua, no centro do palco. Na cenografia, roupas coloridas estão organizadas e suspensas ao seu redor. Ela olha para a plateia demoradamente. Em certo momento, sorri. Noutro, se perfila. Ao prender os cabelos, sua ação é firme, definida. São longos minutos. Ouço tosses e pequenos ruídos dos que assistem, assim como eu. Um rapaz na minha diagonal, talvez por nervosismo, faz um barulho repetitivo com algum objeto nas mãos.

Não é comum que eu me coloque em primeira pessoa quando escrevo uma crítica. Mas parece fundamental que isso aconteça ao me debruçar sobre o espetáculo Tenha Cuidado, apresentado na 7ª Mostra Internacional de Teatro (MiTsp). Assisti ao monólogo de Taneja no Dia Internacional da Mulher, um dia que, embora alguns se esqueçam, se destina a reafirmar e lembrar de lutas — o que também é pertinente de se pontuar.

Após o dilatado silêncio, que pode tanto normalizar aquele corpo nu quanto intensificar um desconforto em algumas pessoas, a artista indiana começa uma provocativa conversa com o público. Inicialmente, nos conta que seu pai sempre diz que ela deve tomar cuidado ao sair de casa. Que, após o cair da noite, deve sair apenas se for acompanhada de seu irmão — ou de alguém como ele; ou seja, um homem, uma figura masculina.

Taneja articula encenação e dramaturgia de forma impressionante: Tenha Cuidado consegue, em menos de quarenta minutos, estruturar-se enquanto síntese objetiva e de extremo impacto ao compartilhar com o público questões profundas acerca da violência contra a mulher. Ao falar de sua realidade, evidencia-se que não há grandes distâncias entre Índia e Brasil neste assunto.

A escolha da artista por construir sua peça a partir da sobreposição entre discurso e ação estabelece uma ironia ora hilária, ora desesperadora. Enquanto compõe relatos que criticam frontalmente o ato — infelizmente comum — de culpabilização da vítima, ela se veste. Sobrepõe faixas, shorts, camisetas, calças, vestidos.

É como se essa presunção da necessidade de responsabilização da mulher sobre a violência cometida, e não do agressor, forçasse todas as mulheres a esconder-se. De sua silenciosa nudez ao verborrágico cobrir-se, Taneja aos poucos deixa de existir. Para se proteger, teria que apagar toda sua individualidade — e a artista nos confessa: ama escolher roupas novas.

Ao formalizar um tema tão delicado, Taneja opta pela interação. Nela, a artista provoca reações do público que podem até mesmo causar desconforto aos demais. Não demora muito para a primeira pergunta lançada à plateia. Também não demorou muito para notar a liberdade sentida pelos homens que assistiam à mesma sessão que eu para responder — e quando não é assim?

Aqui, os comentários se davam de forma simpática, na imensa maioria construtiva para o desenvolvimento da peça; não se trata do ato da resposta em si, visto que a artista está de fato compondo um diálogo com os espectadores. Mas é curioso notar que até mesmo quando há uma acidez na pergunta, nós, homens, parecemos nos sentir os mais aptos a falar; falar alto.

Talvez essa questão tenha se evidenciado pelo ocorrido na apresentação das 17h do dia 08 de março. Após a convocação de Taneja para que todas e todos vibrássemos intensamente (cheer loudly) quando ela mostrasse o vestido escolhido para um evento, um assovio. Fiu-fiu. Mesmo com a atmosfera leve e divertida, não há em momento algum do espetáculo nada que pudesse justificar essa ação. A artista estranha; olha para nós: “really?!”.

Pois é. Really. Ainda que não haja rodeios no discurso crítico que Taneja está apresentado, alguém assoviou para ela. É igualmente assustador o fato da pessoa estar consciente ou não da carga de violência simbólica que esse ato carrega. Tenha Cuidado segue; o desconforto se intensifica. Mais em uns do que em outros — até mesmo quando algumas pessoas do público falam que ela tem um par de tênis na mão e ela corrige para tênis de corridas, pois você precisará deles, risos aparentemente masculinos são ouvidos. (Não estou dizendo que não se poderia rir nesses momentos — até porque, reitero, a artista constrói habilmente a comicidade na dramaturgia. Apenas compartilho o quanto a reverberação do monólogo no público ao redor afetou a minha recepção).

Com um cobrir-se incessante e infindáveis provocações lançadas ao público, Taneja nos conduz sem rodeios à uma violência muito mais cotidiana do que gostaríamos. Ao final, mais do que um corpo que não se vê dentre as tantas camadas de roupas, uma humanidade sequestrada sob absurdas justificativas. Como se fosse responsabilidade dela não ser vítima de alguma violência ou, ainda, como se ela fosse responsável pela moral de toda uma família.

O interminável — e, talvez, imprescindível — vestir-se é apresentado como uma dentre as tantas táticas de sobrevivência aprendidas desde a infância por mulheres. Tenha Cuidado tensiona um arco performático-narrativo que vai de um corpo nu à uma figura amorfa, com o rosto coberto por tecidos e cabeça protegida por um capacete. Quando Taneja diz a frase que encerra o espetáculo, não deixa de ecoar a liberdade presente na imagem inicial: assim, pelo menos, não vão dizer que a culpa foi sua. Tenha cuidado.