tão [nada] míticos Odisseus (e suas distâncias que também podem nos pertencer)
crítica de “O agora que demora — Nossa Odisseia II”, de Christiane Jatahy.
A celebrada trajetória de Christiane Jatahy é marcada por uma abundante contaminação entre encenação teatral e produção audiovisual. Suas obras exploram diversas maneiras de construir pontes entre palco e tela. Para ficar em alguns exemplos, o premiado “E se elas fossem para Moscou?” operava ao mesmo tempo enquanto espetáculo e filme, editado ao vivo e exibido em outro espaço; anos antes, “A falta que nos move” foi primeiro peça e depois, definindo alguns dispositivos como disparadores da experiência de filmagem, gravado e lançado nos cinemas.
Para além das plataformas que se friccionam, Jatahy situa sua pesquisa em outros campos fronteiriços de linguagem; performatividade e narratividade fluem em suas obras em uma permanente lida instável entre real e ficção. Ao propor, como díptico, o projeto “Nossa Odisseia”, a encenadora brasileira verticaliza ainda mais a relação entre teatro e cinema, documento e fábula, narrativas míticas e individuais.
Em “Ítaca — Nossa Odisseia I”, oposições binárias tornam-se plurais na adaptação de duas passagens do texto de Homero. Predominantemente teatral, a obra se organiza em três atos; dois que ocorrem simultaneamente para a plateia dividida — onde três atrizes brasileiras e três atores francófonos revezam-se entre Penélopes, Calipsos, Antínoos e Ulisses — e um terceiro, onde o dado cinematográfico torna-se predominante e a espetacular encenação passa a servir como espécie de estúdio para a gravação de um filme performático; os enredos transbordam, e os espaços antes localizados parecem agora um grande mar.
O que ocorre na segunda parte do díptico, “O agora que demora — Nossa Odisseia II”, é uma radical inversão de diversos caminhos apontados por “Ítaca”. Aqui, Jatahy propõe a aproximação do teatro ao cinema — e não o oposto. “O agora que demora”, antes de se configurar ao público como experiência presencial, apresenta-se como filme. No palco, apenas Jatahy e Thomas Walgrave — seu colaborador artístico, que assina também luz e cenário — em ilhas de montagem e edição; e uma tela. No palco, uma janela para o mundo.
Talvez antes de filme, “O agora que demora” seja processo. Ainda que exibido de maneira bem finalizado e editado, o que salta aos olhos é efetivamente um caráter processual em muitas de suas cenas. No roteiro de Jatahy, a trajetória desta (que se torna também nossa) Odisseia é uma tentativa de abarcar quase na totalidade os cantos de Homero. Não se trata de contar a história daquele Odisseu/Ulisses, mas de compreender o trânsito entre o caráter mítico da narrativa e questões contemporâneas — a central, indubitavelmente, é a problemática dos refugiados.
Em busca destas narrativas dos (quase impossíveis) retornos às suas Ítacas, Jatahy, Walgrave e Paulo Camacho — que assina a direção de uma bela fotografia; parceiro em diversos trabalhos da encenadora — rodaram por diversos países. Palestina, Líbano, Grécia, África do Sul e, por fim, a Amazônia brasileira. Trabalhando com atores e atrizes locais, a obra parece estabelecer pontes não apenas entre o Odisseu homérico e contemporâneo, mas também entre as diversas situações de refúgio que se apresentam no mundo. Neste sentido, o que se evidencia ao longo do caminho é uma estranha sensação de pertencimento; não por uma pretensão universalista do espetáculo, mas pelas camadas que se sobrepõem entre filme e momento presente — entre a distância daquelas realidades e os corpos presentes no teatro.
Na iluminação de Walgrave, todos os refletores apontam para a plateia. É no meio do público que estão os atores, atrizes e músicos. Se no início são adições presenciais ao que se vê na tela — narram, comentam, cantam, tocam em conjunto com as ações do filme — aos poucos tornam-se também performers das próprias narrativas. Assim como no material gravado, ficção e realidade se costuram nas falas. E se por vezes se misturam, em muitas a irrupção do real se impõe de maneira irrevogável sobre a construção fabular.
De maneiras particulares, estes Odisseus pelo mundo articulam as passagens e personagens da narrativa homérica às próprias experiências. Se o herói, em brilhante artimanha, apresenta-se como “Ninguém” para escapar do ciclope Polifemo, é de se considerar que a um refugiado sem documentos tal título não se configure como uma escolha. Os episódios da guerra de Tróia cantados por Demódoco emocionam Odisseu; a lembrança de um palestino acerca de sua percepção do que é a guerra a partir de sua experiência nela revela-se ao mesmo tempo divertida e assombrosa.
Neste sentido, são vários os momentos tocantes de “O agora que demora” no fluxo entre ficção e memória — além do próprio dado processual. No bairro de Hillbrow (em Joanesburgo, África do Sul), onde vivem migrantes de regiões carentes do país, além de oriundos de outros países de África, três garotas estão lendo o roteiro no momento em que este versa sobre Telêmaco. Difícil conceber que o que se vê foi dirigido e não obra — brilhante — do acaso: uma delas gagueja em certas palavras em inglês, não conseguindo pronunciá-las. E duas destas palavras são precisamente “desastre” e “destruído”.
As câmeras eternizaram este momento, transformando o que poderia ser uma simples casualidade em algo simbólico — talvez de uma pretensa inocência ou ingenuidade projetada naquelas crianças pelos olhos do espectador. É a partir deste tipo de possibilidade que cabe refletir acerca da compreensão de Jatahy sobre a fricção entre tempo presente e tempo passado. São muitos os agoras que demoram. E muitas são as formas de lidar poeticamente com isso.
Pois nestas nossas Odisseias, não se trata mais de superar distâncias. A Palestina é uma Ítaca não reconhecida por seus estrangeiros. Da situação de refúgio no Líbano, os sírios sabem que seu lar está do outro lado de uma montanha, a menos de uma hora de viagem. Trata-se, pois, deste tempo metafórico que nos distancia de onde habitam nós mesmos.
E assim como os atores e atrizes — sejam no filme ou sentados na plateia — o público também está inserido neste lugar. A proposta de Jatahy parece situar o espectador em um outro campo, também fronteiriço. Como cúmplice ou testemunha, a ação presencial desloca a recepção para longe do espectador passivo do cinema — e talvez até mesmo do teatro. Em uma das poucas cenas onde a luz da plateia está toda apagada, vemos a refugiada síria Yara Ktaishe sentada, olhando para a câmera. A imagem é escura, e a passagem do que parece ser um trem ilumina não apenas Ktaishe, mas as sombras da equipe — presumivelmente, Jatahy, Walgrave e Camacho — no muro.
E é precisamente aí que parece evidenciar-se o cruzamento entre as camadas do espetáculo — que de algum modo também se mantém paralelas — quando compreende-se a implicação de todos os envolvidos em diversos níveis. As pessoas vistas naquela cena na tela estão também dentro do teatro. Na revelação das sombras, a obra explicita seu caráter não-ilusionista. Ainda que ficção e realidade possam misturar-se organicamente nas falas, o material gravado carrega consigo a potência imagética do real — ainda que sob o rigor e a habilidade da montagem de Jatahy e Camacho, as paisagens retratadas (naturais, construídas e humanas) muitas e muitas vezes falam por si.
Como se uma complexa narrativa imagética, somada aos fragmentos de vivências tão diversas, fosse materializando-se não apenas na tela e não apenas no teatro; mas nestes espaços entre o agora real e o agora imaginado, o agora desejado e o agora impossibilitado. Entre a fábula de milênios atrás e o momento presente, os tempos dialogam harmonicamente — ainda que em suas severidades (e levezas) particulares.
A operação de tal diálogo se dá, de certo modo, à vista do público. A presença de Jatahy no palco não esconde a edição constante entre gravação e os — de certo modo pontuais — acontecimentos no tempo presente. Ainda que evidentemente pouco seja improvisado em suas ações, a escolha de ter no palco não seu elenco mas uma ilha de edição enfatiza o caráter de montagem, de sobreposição. Ao longo de “O agora que demora”, ela pontua dados e compartilha certas questões; como uma organizadora da obra e sua processualidade. Assim o é na apresentação do último ato, onde a encenadora explica os motivos de algumas de suas escolhas.
O final desta (nossa) Odisseia é a Amazônia. Ela, uma enorme e mitológica Ítaca de grande parte da ancestralidade de nosso território, é também de algum modo parte da trajetória de vida de Jatahy — que neste momento implica-se ainda mais profundamente dentro do material pesquisado ao revelar que seu avô paterno perdeu a vida em um acidente aéreo nos confins da floresta. Ela parece almejar ser espécie de Telêmaco que busca não concretamente seu pai — que Jatahy conta não ter conhecido na infância — ou avô, mas a reconstrução de uma memória; um deslocamento de tempos para encontrar, de algum modo, parte de si.
E conceber a floresta amazônica como nossa Ítaca traz consigo diversas leituras. O sufocamento não apenas das matas, mas dos povos indígenas, refugiados e circunscritos a terras cada vez mais em disputa é sem dúvida um denso mote. No entanto, ao vermos a relação de Jatahy com o cacique, parece ela também um Odisseu, dentre os tantos ao redor do mundo, buscando esse retorno ao lar.
Ao falar sobre seu avô, constrói para si uma espécie de fábula: que, por antes de se acidentar dizer que estava “estudando a língua dos índios”, teria sobrevivido e vivido entre eles. A afirmação é singela e reveladora, concebendo em abstrato toda a diversidade dos povos originários. No processo de efetivamente estar presente em uma comunidade indígena, Jatahy emociona-se.
Há, sim, o reconhecimento possível de uma ancestralidade ainda que tão distante de como vivemos o nosso cotidiano. Por vezes, contudo, podemos nos perceber estrangeiros de nossas próprias Ítacas. Não apenas ao não reconhecê-las, mas ao não nos reconhecer em distintos modos de se habitar um instante. “O agora que demora” viaja o mundo na busca não de entender, mas registrar, friccionar e refletir sobre tempos e lares.