teatro

família em luto, família em festa

crítica de “Três Mudanças”, de Nicky Silver. projeto de Carolina Mânica com direção de Mário Bortolotto.

O dramaturgo norte-americano Nicky Silver tem feito sucesso no Brasil. A montagem de “Pterodátilos”, protagonizada por Marco Nanini e com direção de Felipe Hirsch (2011) foi talvez a mais representativa, e o autor chega agora ao seu sexto texto encenado por aqui.

Escrito em 2006, “Três Mudanças” lança uma falsa isca para o público em seus primeiros momentos. Na premissa apresentada logo no início, ao que tudo indica veremos uma comédia dramática sobre as agruras de receber um parente diferente e distante — ainda que familiarmente próximo — na rotina de um casal.

Ainda que essa seja efetivamente a estrutura da situação desenvolvida pelo enredo, o que se estabelece é uma narrativa perversa; dramaticamente tensa e permeada por uma ácida comicidade. Nos minutos iniciais o público já sabe que o casal Nate e Laurel (Bruno Guida e Carolina Mânica — que idealizou o projeto) não está assim tão bem.

Ela, sofrendo com as tentativas passadas de engravidar e suas consequências; ele, traindo-a. O irmão de Nate, Hal (Nilton Bicudo) também já tem sua imagem anunciada desconstruída: recém chegado não dos louros de Hollywood, mas de uma clínica de reabilitação, torna-se maquiavélico pivô do que se segue.

A chegada do jovem viciado e morador-de-rua-por-três-semanas — fugido da “tirania” dos pais milionários, como se sugere — Gordon (Lucas Romano) realça o caráter manipulador de Hal e desestabiliza de vez a ordem familiar. Steff (Renata Becker), amante de Nate, acaba sendo uma personagem apresentada talvez de forma mais superficial; distanciada da ação por grande parte do espetáculo, é utilizada como espécie de comentadora de algumas cenas.

Lucas Romano e Nilton Bicudo em “Três Mudanças” / foto: Julieta Benoit

A direção de Mário Bortolotto opta por escolhas que colocam a dramaturgia de Silver como núcleo da encenação. Nesse sentido, o que se estrutura é uma sequência de situações dramáticas apresentadas de maneira linear em um intervalo razoável de tempo — no mínimo 3 meses, como indica uma fala de Steff. As ações basicamente ocorrem na sala do casal, com poucas variações de ambiente.

O cenário de Marisa Bentivegna, que também assina a iluminação, é de um sugestivo minimalismo. Há apenas um sofá — e, posteriormente, a cadeira e o computador de Hal — no centro do espaço. Delimitando a casa (e criando um outro ambiente) estão dezenas de estantes metálicas praticamente vazias — além das garrafas de bebidas e copos, apenas alguns livros esparsos.

Além do fato de tais estantes sugerirem mais um escritório do que uma casa — o que faz sentido, considerando a aparente rotina estafante do casal — o vazio se torna símbolo não apenas da vida de Nate e Laurel, mas de um espaço passível de preenchimento que será muito bem aproveitado pelas ações de Hal.

Na sucessão de acontecimentos, a dramaturgia de Silver é dinâmica e mantém o público entretido apesar de alternar entre momentos um tanto previsíveis e a recorrência de um tipo de coup de théâtre. Além de certas peripécias nas próprias ações de Hal (talvez, também, na utilização de Steff), há o recurso de trazer para o conhecimento do público acontecimentos passados que revelam as intenções de personagens e ampliam as possibilidades de caminhos na trajetória da obra.

Carolina Mânica e Nilton Bicudo em “Três Mudanças” / foto: Julieta Benoit

Redimensionando o caráter dramático de “Três Mudanças” estão os comentários feitos diretamente à plateia. Alguns destes rompem com a linearidade da ação e permitem que pequenas rupturas sejam criadas dentro das situações dialógicas. A direção de Bortolotto compõe bem tais momentos junto à iluminação de Bentivegna.

A tradução de Clara Carvalho opta por manter as referências originais da obra no tangente ao local da ação. Enquanto, por um lado, isso ressalta o caráter universal — ainda que, de certo modo, burguês — das relações intrafamiliares, por outro é perceptível que certas localizações citadas — como onde Steff trabalha — não são dados apreendidos instantaneamente pelo espectador brasileiro. Ao mesmo tempo, Carvalho faz boas escolhas para manter jogos de palavras e o dinamismo do texto.

Bortolotto assina também a trilha sonora, que transita entre momentos extremamente precisos e em diálogo orgânico com as ações e outros mais súbitos que acabam por reforçar o que se vê em cena. Nos figurinos de Fábio Namatame, trocas sugerem a passagem do tempo — além da transformação na figura de Gordon — e inserem Steff em uma paleta diferenciada; a amante parece estar sempre em tons de rosa.

Lucas Romano e Renata Becker em “Três Mudanças” / foto: Julieta Benoit

A interpretação de Renata Becker surpreende ao conseguir acompanhar a inconstância da personagem. Distanciada, soa sempre um pouco alheia ao que realmente está em pauta, mas sua função é importante para o desenrolar do espetáculo — ainda que, enquanto personagem, passe a impressão de ser pouco desenvolvida na dramaturgia.

Bruno Guida, como Nate, caminha da severidade à perplexidade e se destaca na cena onde desabafa para o irmão — no denso jogo de aparências que ocorre por todo o enredo, parece ser este o primeiro momento onde ele se desarma.

Nilton Bicudo, como Hal, oscila mais que seus colegas. Por momentos, reforça a figura já sugerida pelo texto em suas ações. Ainda assim, na complexidade da personagem, transita por diversos humores de forma consciente e é o condutor da trama em grande parte de “Três Mudanças”. Lucas Romano é um carismático Gordon, dosando bem ingenuidade e perversidade. Em ações sutis, por vezes rouba a cena.

Bruno Guida e Lucas Romano em “Três Mudanças” / foto: Julieta Benoit

A lucidez de Laurel é aos poucos desconstruída por Carolina Mânica, que desenha de maneira densa e orgânica a trajetória da personagem. No vazio relacionado às experiências de abortos passados parecem habitar as projeções que alimentarão as ações de Hal.

Vale ressaltar que, em seu ato contínuo de tentar escrever seu novo livro, fica no ar a sugestão de que todos os acontecimentos vistos não passam de sua ficcionalização — como se Nate fosse um duplo de Hal; a troca de qual personagem usa óculos parece brincar com isso. Porém, para além desta leitura, há muito o que se analisar na disfuncionalidade da família apresentada.

Postos em um olho do furacão — provocado por Hal, que talvez seja o único a atingir seu doentio objetivo — estão todos lançados na direção de si mesmos no sentido mais grotesco. A insistência da tentativa de Nate de ser um “homem bom” acaba por destruí-lo, assim como o desejo de ter um filho, de Laurel, acaba por destroçar uma unidade familiar e compor outra, no mínimo controversa — e, ainda, no destino de Gordon, restou exatamente aquilo de que ele havia fugido.

A elaboração de tais perversidades contemporâneas parece interessar ao grande público. Considerando o mercado americano, pode-se lembrar de Kristen Roupenian, que se tornou um fenômeno literário no último ano a partir da publicação de seu conto “Cat Person” na revista The New Yorker. O sucesso da história — que dialogava de maneira interessante com millenials e seus relacionamentos — garantiu à autora um contrato milionário para a publicação de dois livros.

O primeiro, “You Know You Want This” (publicado no Brasil como “Cat Person e outros contos”), traz doze narrativas que talvez oscilem na qualidade, mas que mantém uma certa potência em seus desconcertos. Neles, situações aparentemente normais se desenvolvem com reviravoltas ou crescentes bizarros — até chegar em finais muitas vezes mórbidos, taciturnos ou até mesmo divertidos.

Ao que tudo indica, as pessoas se interessam por obras que servem, ainda que de maneira disfarçada, como espelhos para os seus próprios pensamentos e relações. Assim, “Três Mudanças” é simultaneamente ágil e denso; tem potencial para atingir diversos públicos ainda que não traga uma temática leve. A crueldade não é exclusividade de nossa sociedade, mas agora atinge novos patamares. Hoje, não demora muito para um vestido de luto tornar-se de gala.

Bruno Guida e Nilton Bicudo em “Três Mudanças” / foto: Julieta Benoit