destaque, teatro

mostra urgia #3: algo pulsa em sintonia numa tarde de domingo

texto a partir da programação do terceiro dia da MOSTRA URGIA no Desterro (RJ). amilton de azevedo está na programação do evento. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Nos primeiros dias de dezembro de 2023, o Desterro ateliê, espaço cultural localizado na Glória, Rio de Janeiro, recebe a MOSTRA URGIA. O movimento da URGIA é capitaneado por João Ricardo e Lane Lopes, dramaturgos interessados em construir espaços de fala e escuta em torno de escritas em processo. Para a produção da mostra, ganham a companhia de Filipe Félix e Juliana Thiré, do Desterro, e de Gabriela Perigo, e ela “não acontece sem toda a galera que vem e volta nos encontros da URGIA”, como dizem na divulgação.

Hoje escrevi enquanto acontecia tanto de bonito. É uma experimentação com a Crítica Dentro, formato proposto por Ruy Filho na Antropositivo e já desenvolvido aqui na elaboração do texto sobre AGAMENON 12H e também em parte de escrita(s) em processo, exercício sobre o primeiro dia da MOSTRA URGIA, e também na quase totalidade de palavras num papel são tanto, texto sobre sábado.

As palavras que seguem, então, são muitas; o texto é longo e sem dúvidas não dá conta do tanto que foi e seguem sendo os dias no Desterro. Copio e colo os parágrafos que inauguraram os textos de ontem e anteontem pra contextualizar antes daquilo que vem sobre hoje, um domingo bonito com vento e felicidade.

um minuto para as 16 horas

nada está acontecendo mas sempre há algo acontecendo e enquanto batemos um papo João pega uma dramaturgia senta-se no meio do salão e começa a ler e a palavra lambe lambe lambe lambe a única ação possível é o lamber

“para não esquecer o gosto desse momento” ouço isso sinto o sabor da cerveja na minha boca e não há violência na minha sensação na minha memória neste meu agora mas ao mesmo tempo há uma violência nas palavras ditas com tranquilidade por João

Lane vê se a cerveja toda branca do gelo já deve pode ser aberta e pergunta para Allan

lambe lambe e lambe e finalmente late.

pausa

João expira no microfone

agora todes topam escrever.

Lane sugere action writing a partir de um jornal eu brinco teatro-jornal está velho peguem um tuíte

talvez façam isso o domingo está calmo e venta e o dia é fresco

“por favor a cerveja é retornável” Allan lê e repetimos e pensamos nessa frase na necessidade disso e agora enquanto escrevo penso naquela do Galeano sobre as placas de proibido brincar com os carrinhos num aeroporto e o fato da placa existir quer dizer que alguém ainda queira brincar com carrinhos num aeroporto.

omissão; de alguém lido por João

um “poeta político”

poeta político. poesia, política, frutas que apodrecem

poeta político. é uma construçõ sonora e ética e poética e um gato passa lentamente pelo jardim enquanto Allan deita

“bananas apodreceram/ subvertendo a ordem da história humana”

“tem o perigo do gato fugir?” pergunta Lane de fora enquanto um trem irrompe a noite dentro e o poeta político à que serve o que olha o que ignora o que não vê sobre o que canta pelo que faz porque faz como faz

“é bom morrer no teatro” e de novo o vídeo do lagartijas tiradas al sol e frutas apodrecem pois é isso é o tempo presente é o tempo agindo sobre o que vive diante de nós numa cena num domingo no Desterro onde um homem lê um texto sobre muita coisa e Juliana está deitada de olhos fechados e venta lá fora e João segue e segue e fala sobre a morte sobre inventários legados esperanças

“o que se passa poeta” e eu diria “o que te passa, poeta”. João devolve o microfone ao pedestal

era do Ferreira Gullar e agora João vai ler um da Gabi

“sobe no caixão” algo se inverte e agora se pode descansar e “a morte pode ser bonita só a morte pode dizer da vida” e que beleza isso sim a finitude essa dualidade que não é em si oposição não tem algo de

não sei

abri o pdf de uma dramaturgia escrita por mim há alguns anos penso em lê-la. passo os olhos vejo trechos de “plutão” e digo para mim mesmo não

vida morte festa. é sempre o tempo e como ele se encaminha nessas dinâmicas de corredeiras de deslizares de suspensões

Lane começou a ler um texto dela e a aliteração funciona e vem uma rima e há um jogo zeloso com cada palavra e como elas se encontram e fraseiam passeiam na escuta há um cuidado alinhavado um bordado ágil e cá estou eu adjetivando como se fosse sobre isso não quero que seja

de novo o muito que é palavra no papel e agora eu quero muito pensar sobre o que é dramaturgia o que afirma-se dramaturgia e um gato preto está em posição de alerta e Gabriela corta legumes acho que é uma cebola roxa

de novo dramaturgia poesia e o que é isso o que é tudo isso o que srá que nos faz chamar um texto disso ou daquilo e o que pode um texto vir a ser pra além daquilo que o intencionamos dele

“vou ler agora o close friends” e Lane lê um story e caralho eu acho que é sobre isso que eu estava escrevendo agora o que são as formas o que são os suportes suportes possibilidades

João “CAFONA” e Lane “ESPERA” e era sobre o pacto de cumplicidade como Caio colocou ontem na mesa e uma leitura leve algo que se escreveu e que se é escrito é fruto pra ser lido.

e Allan então leu carta para Tiê um texto que escrevi há anos quando meu amigo iria ser pai pela primeira vez e eu nunca tinha escutado alguém lendo-o. era pra ser uma música e ele chegou a ser musicado por uma amiga mas eu só ouvi dois versos.

agora Juliana lerá uma dramaturgia em processo eu perdi os detalhes da explicação do contexto pois estava escrevendo a frase de cima

a tessitura da voz de Juliana e como isso desenha nessa ação simples de ler com intenção – não há nada de simples no simples – uma atmosfera nesse domingo de tarde escutamos sua voz passos de chinelo o vento nas folhas

de repente rimos rimos de nervoso há uma violência implícita que vai se mostrando na cadência das frases dessa fala e é sobre artistas é sobre odiar os artistas e lembro da performance de Renan Marcondes, odiar os artistas, mas aqui é desabafo parece e então o humor que está no horror da ignorância rimos rimos há identificação já ouvimos isso em algum lugar mas a ordenação faz com que o tempo o discurso seja

e então uma amabilidade uma sociabilidade algo de passivo agressivo na voz da que diagnostica

nada é pacífico

a história da loucura é a história da barbárie da civilização e lá estão a stodas geniais invenções da norma

normal normal normal tipicidade atipicidade nomear nem sempre é dar contorno pode ser sim domesticar colonizar expulsar marginalizar matar

matar

matar

“sou um mundo em extinção”

pedra. palavra que é matéria bruta e sensível. pedras que gritam pedras que se movem; a urgência das pedras.

[parei para almoçar enquanto outras coisas são lidas]

e as três saladas de Gabriela Perigo são poesia num prato e eu como enquanto ela está lendo algo, desistência, que é um acontecimento em palavras simples e parentescos de comida etimologias do ovo e frases em inglês por causa de séries péssimas e se encaixam as fonéticas e esse gesto da outra língua do estar fora do estar dentro das possibilidades de habitar palavra buscar palavra que é espanto pensei e escrevi espanto no mesmo momento em que ela disse espanto e é isso esse milissegundo de antecipação que gera a impressão prazerosa da sincronicidade uma certeza meio incerta de que estamos todes aqui e é domingo a tarde e o dia está agradável e venta um pouco

quieta e pacífica e não posso e nada é pacífico

“um país e agora sonhar” e ecoa Hamlet mas é outra fundação que se dá aqui diante de nossa de uma subjetividade que se busca nas frestas das palavras no intervalo entre o que se diz o que se pensa o que se inventa um fio um fiapo fiapos

viver é navegar um rio caudaloso quando se pretende inventar a si mesmo diante de tanto que talvez rasgue

parir linguagem

“tudo pode ser destruído e devemos ver isso como uma bênção”

eu suspiro.

“i am a son” e eu entendi “a sun” e ela faz esse jogo de palavras tradução enquanto escrevo isso

algo pulsa em sintonia numa tarde de domingo.

o que move / é a fome

“escrevo porque” e lembro de Daní falando do porquê dela escrever críticas, porque é assim que escolheu passar os seus dias e é sempre uma escolha mas nunca é uma escolha escrever é, como que algo de intransitivo de intransigente de insistente

“escrevo porque os pássaros voam / escrevo porque o vento venta”

é.

a palavra lambe

um trocadilho um duplo sentido é sempre tão divertido mesmo quando se pueril mas algo ali algo que vai além e nos faz ao mesmo tempo dar uma risadinha mas também pensar porque mais cedo João leu um texto que a palavra “lambe” aparecia como único verbo possível e talvez seja isso:

só o lamber ocupa e o lambe materializa a transformação do lugar materializa um território não só sentido imaginado mas sim constituído à olhos vistos inscrever no espaço inscrever de fato no concreto do espaço

“o futuro chega com toda força” alguém cita e é a força disso do que vem e a força do que vem porque foi feito foi plantado (seja com fúria seja com cumplicidade) essa força ‘por isso uma força / me leva a cantar’ solto um pedaço de verso a força não é etérea a força é raiz rizoma

enquanto colam conversam leem frases e se compõe em si algo de uma dramaturgia performativa nesse ato (literal) de colagem e cortes retos e rasgos

e Gabi chega com uma nova esponja e vem enquanto a utiliza pra coçar o próprio braço e é tudo parte e é tudo divertido de observar estar perto

fazer da dramaturgia espaço. fazer do espaço dramaturgia criar composições do que existe e do imaginado

“a gente tá fazendo como dá” tem algo de bonito nisso de fazer sim fazer é preciso fazer mesmo quando. nem sempre aliás quase nunca nada vai ser como planejado esperado mas o sonho que é sonhado ele pode passar a existir da forma que for da forma que se faz da forma quase sempre há uma forma quer dizer não não nem quase sempre tem muita coisa envolvida ontem falamos de condições materiais e condições do desejo e linhas paralelas devem passar a se cruzar sim eventualmente e há um esforço aquele último fósforo da caixa que risca porque é isso que é a fé a fé é ir até o final é essa insistência acreditar é insistir e a força é e vem daí.

há sempre mais parede há sempre mais palavra

o horizontal e o vertical me peguei pensando nisso uma faixa no banco num assento sentar num texto acomodar-se nele fazer dele repouso apoio descanso; outra que sobe na parede até onde irá será como que totem

é Juliana quem começa com Gabriela a subir a faixa a seta a palavra-flecha avança avança ao céu

a palavra repouso a palavra ascese

“acordar ou acalmar as almas” dizia o Chico Pelúcio no Cenas Curtas do Galpão em 2019 e é isso uma palavra que assente uma palavra que é assento uma palavra que é acesso uma palavra que é ascensão

a luz azul é luz negra penso no black light de Denise Ferreira da Silva e grifos laranjas brilham palavras e hoje ouvimos cigarras nos outros dias não Juliana me diz que amanhã vai chover.

a palavra subiu a palavra correu e me pego pensando em mim nesse contexto e só como breve comentário quero registrar aqui o quanto gosto de estar onde há casa me sinto em casa sou recebido como quem recebe alguém em casa o Desterro a URGIA há essa energia essa possibilidade aqui de me sentir como se sempre. fazer-se em casa diante também do estranhamento; do assombro; do espanto.

curta em processo sem título mas que na verdade quase tem título de Filipe Félix

[e a proposta da junção entre curta e realização]

a lividez dos ossos e as cinzas que ficam leio o título na barra do curta, é um título provisório pré-definido; citação do poeta do desterro – Cruz e Sousa

é sobre ou é algo do antigo desterro de onde foram desterrados e então já imagino vislumbro algo de uma fantasmagoria Filipe fala em “lembrar” essa palavra é importante talvez tanto quanto esquecer

cinema imagem palavra como um filme se apresenta na mostra urgia onde dramaturgia é matéria logo é sobre palavra imagem não é palavra “vale mais que mil palavras” bem não sei se esse clichê é verdade.

o curta suscita vontade de produzir sentidos nesses ângulos pequenos recortes montados silhuetas de cidade e o atravessamento

o reflexo

o reflexo

o reflexo é ousadia do espaço de agora se fazendo ver por sobre o espaço de antes. no vídeo outro cenário mas na parede inscrita lambida lambida lambida o hoje o agora.

grupos caminham atravessam ruas vejo esquinas talvez encruzilhadas faixas para veículos ônibus e outros e um fogo pauladas no fogo produzir sentidos é produzir mundos

destruição. na coisa pública na via pública na rua pauladas

um folião fantasiado. olhar a cidade é fabular a cidade há tanto de teatralidade muito antes mesmo sem tão distante do teatro.

um vídeo voyeur e os arranjos os desenhos o que é uma cidade o que é a cidade do Rio de Janeiro o que é o carnaval é isso que palavras vão sempre correr atrás e imagens são sínteses contradições absurdos surreais quando feitas da do tecido mais do mais do mais real sem roteiro só montagem enquadramento e olhar e olhar e olhar e olhar para a cidade deixar-se ver a cidade ver-se visto vendo e eita esse cara parece o Sampaoli

aqui é rio, não é Disney e um carro pega fogo.

olhar pela janela é produzir narrativas do visto e montar as imagens em sequência e edição é compartilhar uma das infinitas narrativas possíveis que se fazem no habitar a cidade e o carro pega mais e mais fogo não é a Disney.

um fumacê e o carro pegando fogo e sendo apagado pode ser um abre alas dos foliões em ônibus e desejos

haja água.

um quarteirão para pra ver mas também outro segue e as luzes da cidade e uma carcaça e desmanche de um carro carbonizado

o desmanche de um carro carbonizado. alguma coisa deve pode talvez não sei valha algo meu deus um carro carbonizado

quando tudo escurece o reflexo daqui se intensifica e uma rua é atravessada pela árvore que se vê na janela

mas há outras coisas que não importa onde só por existirem elas são muito e um cachimbo de crack e a miséria e o centro do Rio e

a humanidade…. eu uso essa palavra e fico pensando que porra é essa, na verdade.

o tanto que olhar para a janela faz mostra apresenta uma galinha uma galinha é um ebó?

encruzilhada.

encruzilhada.

produção de mundos é processo

takes rápidos e outros que insistem zooms detalhes demoras o que é que vai dar e nem sei se o resultado é o que importa mas a imagem a permanência da imagem

oferenda. na nossa mesa que bonito eu disse nossa mesa temos sim na primeira pessoa do plural temos folhas verde escuro para jabutis e ali a carne a carne a galinha depenada

sangue e oferenda e sacrifício quer dizer isso não é beeeem um sacrifício mas é sim um sacrifício como algo sacrificado sem consentimento sem possibilidade de consentimento e engraçado que não é nem bem uma esquina como geralmente se vê mas é um trabalho e agora a câmera filma algo que me parece religioso não sei se igreja não sei qual denominação e silêncio e novamente um ebó uma macumba que parece chutada ou talvez seja essa a ordenação do caos dessa encruza não não chutaram mesmo… foliões caralho foliões quebraram ebós e oferendas é uma ignorância absurda estão na festa da carne na festa da rua e o povo da rua é desrespeitado essas imagens me doem me doem muito parecem crianças com uma mãe? não sei… tantos e tantos ebós nas calçadas esse ponto é daqueles.

a imagem sai e volta mas não dá pra sair não dá é insistir nisso no racismo na ignorância da total impossibilidade de conscientização

ebó esparramado. essas imagens são pulsação lamuriosa são lamento são tristeza

tudo se espalha pelo asfalto.

tudo se espalha pelo asfalto.

tudo se espalha pelo asfalto.

da violência visível no invisível

performance quem vem

enquanto mudamos de lugar leio que Nego Bispo fez sua passagem e isso me é uma rasteira puta que pariu

Juliana canta e o ventilador zune a luz de um cigarro que dança no ar como vagalume

a primavera ela canta

e traga

e volteia o vagalume cigarro que agora some e só o escuro reflexo e ventilador as luzes da rua que inevitavelmente iluminam este desterro este o desterro da glória. o desterro da glória.

o desterro da glória

quem vem quem vem pergunta Filipe sem dizer e isso porque sabemos o nome da performance mas talvez não seja isso não

algo do drama. performance é também palavra performance é texto

palavra é gesto cênico.

palavra é gesto cênico e aí tudo que eu pensava sobre dramaturgia mais cedo. dramaturgia é gesto.

o espaço é dimensão de dança sobe-se desce-se bate num bicho o desterro é o mote do que vemos desterro é o mote do que vemos

vem vem vem

fazer do espaço espaço

as pequenas luzes e a cena.

a associação com o curta é algo disso do que era do que é da vizinhança e depois de tanto ebó esse velho esse velho quem se pensa ser esse velho é uma força daqui uma força evocada de algum modo uma que sim é bem vinda é aceita uma que é

o gato mia bem na hora que ela diz vem aqui e de repente quem vem não é tão assim bem vindo tão assim querido penso em algo do Pasolini do Teorema.

falar com quem não

rodeando a casa e o reflexo de Juliana parece que ela está no muro lá fora e Filipe é silhueta em dor

a luz que se acende que se apaga e os caminhos que ela desenha do movimento da cena

calma. calma. calma.

calma

shhhh

calma.

melancolia

pulsão de

fazer do gesto de abrir a garrafa de cachaça ofertada em si agradecimento pois então já não mais palavra

fim

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