teatro

mas isso ainda diz pouco

crítica de Estudo nº 1: Morte e Vida, do Grupo Magiluth.

Na mesma semana em que o grupo Magiluth, de Recife (PE), estreou seu Estudo nº 1: Morte e Vida em São Paulo (SP), o jovem Moïse Mugenyi Kabagambe, da região de Ituri, na República Democrática do Congo, que chegou ao Brasil na condição de refugiado de guerra em 2011, foi brutalmente assassinado na cidade do Rio de Janeiro (RJ). São muitos os Severinos, iguais em tudo e na sina, que migram, emigram e imigram em infindáveis fluxos e por tantos motivos, saindo das nascentes de seus próprios Capibaribes e acompanhando as águas até os mares sonhados de sua foz. Mas, tragicamente, em muitos casos e por muito tempo, só a morte tem encontrado / quem pensava encontrar vida.

O poema dramático Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, escrito entre 1954 e 1955, é a inspiração do Magiluth para este Estudo nº 1. Mas, como os próprios artistas insistem, em suas tantas tentativas de organizações cênicas, isso ainda diz pouco sobre a obra. O auto natalino retrata de forma singular o movimento migratório do retirante que deixa para trás a seca, a fome e a miséria no Sertão pernambucano, cruzando então o Agreste e a Zona da Mata até chegar na capital. Os artistas do Magiluth, ao lado de Luiz Fernando Marques Lubi na direção e Rodrigo Mercadante na assistência de direção e direção musical, partem da potência presente nesta narrativa para construir diálogos, pontes e fricções com questões e crises do contemporâneo.

Mas isso ainda diz pouco. A insistência de trazer esta afirmação à cena, remetendo ao primeiro movimento do poema, quando o retirante explica ao leitor quem é e a que vai, opera simultaneamente no jogo estrutural da encenação e também na lida, atenta, com seu discurso. Estudo nº 1 é essencialmente espiralar, apresentando uma sucessão de quadros e tentativas de inícios, fins e reinícios – vida, morte, vida, na inconstância e na fragilidade, na busca incessante por aquilo tão belo como um sim / numa sala negativa. 

Também isso ainda diz pouco pois o Magiluth parece muito ciente de que, ainda que diante da desigualdade e da precarização inerente ao capitalismo tardio sejamos todos Severinos, nem todos são iguais em suas sinas. Na projeção vista no palco, a tela compartilhada do navegador traz consigo infindáveis abas: em cada resultado de pesquisa realizado, um espaço de crise. Humanitária, migratória, climática, identitária, econômica; esta última parece atravessar, de algum modo, todas as anteriores. É um terrível horizonte a se observar neste mundo onde só os roçados da morte / compensam aqui cultivar. 

"Estudo nº 1: Morte e Vida", do Grupo Magiluth / foto: Vitor Pessoa
“Estudo nº 1: Morte e Vida”, do Grupo Magiluth / foto: Vitor Pessoa

Em Estudo nº 1: Morte e Vida, o Magiluth apresenta uma travessia fragmentada entre muitas formas possíveis de narrar o que corre nos rios destes tempos. Narram também a si mesmos, no hoje e no ontem. Lubi propõe uma encenação em fluxo, com entradas, saídas e passagens pelo público, além de uma materialidade que se reorganiza a cada cena, com telões, microfones, recortes em sombras, composições no contraluz e uma bicicleta.

A obra, repleta de atravessamentos eminentemente políticos, mantém a autoralidade do Magiluth, verificada na manutenção do frescor de seu jogo cênico, na lida performativa com a construção de narradores e personagens, além de um olhar lançado sobre a própria trajetória enquanto passível de análise sob a ótica da caminhada de Severino. Neste sentido, é curioso pensar em torno dos fluxos de capitais não apenas financeiro, mas também simbólicos – talvez o Magiluth seja o grupo da região Nordeste mais presente nos palcos paulistanos já há alguns anos, tendo estreado seus dois últimos trabalhos na cidade de São Paulo. Mas isso ainda diz pouco. 

Vestidos todos com peças jeans, o elenco referencia diretamente Toritama, presente em Morte e Vida Severina como a cidade onde dois homens estão levando um corpo para ser enterrado. Em Estudo nº 1, Toritama é também a capital nacional do jeans, cenário do documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes que, segundo seu diretor, é um filme que expõe a farsa do neoliberalismo: o sonho da autonomia acaba substituído pela autoexploração.

Conforme aponta o filósofo Byung-Chul Han, nascido em Seul, Coréia do Sul, e professor da Universidade de Artes de Berlim, Alemanha, em sua obra Sociedade do Cansaço, a sociedade deste século vinte e um não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho, onde seus habitantes tornaram-se empresários de si mesmos. O autor avança em um diagnóstico sócio-comportamental instigante, mas isso ainda diz pouco sobre a obra do Magiluth.

Ao mesmo tempo em que as reflexões de Han dialogam com a contemporaneidade, há também outros dados que precisam ser levados em consideração nesta aproximação ao Estudo nº 1. Enquanto é verdade que uma parcela da população adota de certo modo voluntariamente estes modos de produção – e por consequência, de vida – há toda uma imensa multidão que se vê relegada sem escolhas ao jugo neoliberal que transforma a miséria em oportunidade de lucro.

Os Severinos contemporâneos, entre outros apontados pelo espetáculo, são esses tantos que, pela simples e trágica necessidade, se cadastram em aplicativos diversos de entregas, transportes e sabe-se lá mais o que. Dentre eles, aquele, o case mais famoso, cujo nome serviu inclusive para o rebranding da precarização do trabalho, atualizada para o capitalismo tardio: a uberização.

Quando Thiago de Jesus Dias, aos 33 anos, sofreu um AVC na noite de 8 de julho de 2019 e morreu esperando por socorro, ele trabalhava mais de doze horas por dia realizando entregas da Rappi. Um motorista da Uber recusou-se a levá-lo para o hospital por ele estar sujo e molhado. Conforme apontou o professor Dennis de Oliveira em recente entrevista à Ponte Jornalismo sobre o assassinato de Moïse Kabagambe, não existe mais o colega trabalhador na mesma situação, agora todos são concorrentes.

Talvez por isso o Magiluth encerre Estudo nº 1 com um corpo estendido no chão. Que não se levanta diante dos aplausos, que não é ajudado por seus colegas. A imagem é forte – até porque ressalta a impossibilidade de encontrar a vida no final desta jornada, diferenciando-se daquele Severino que emigra e testemunha o nascimento, aquilo que é belo porque é uma porta / abrindo-se em mais saídas.

É difícil apontar para saídas deste Brasil. Deste, de hoje e de ontem. Difícil vislumbrar futuros, também. Espiralar o horizonte parece ser a busca do Magiluth, que encontra cenas de rara poesia em seus próprios movimentos. E apesar de tudo, também diverte, mesmo quando o tema é denso. Quando Mário Sergio Cabral tenta propor um momento hygge, por um instante se pode imaginar: e se fossemos dinamarqueses?. Mas logo a autocitação problematiza a lida com a própria trajetória em confronto com o que nos circunda. 

Os fragmentos de Estudo nº 1 dão saltos tempo-espaciais entre abordagens macro e micro em torno desta caminhada Severina. De Toritama até a luta do kiribatiano Ioane Teitiota e sua família para serem reconhecidos como refugiados climáticos, as águas de Capibaribes, Pacíficos e Ipirangas correm de modos distintos mas os caminhos se desenham quase sempre tristes, o rio afoga na preamar / e sufoca na baixa-mar. Por trás da maré, e da seca, e da miséria, está a roda dentada do capital. As engrenagens do mundo da mercadoria, de onde ninguém escapa.

Mas parece que esse texto ainda diz pouco sobre a obra. Pois o Magiluth, esses homens que brincam, homens que choram, abrem e fecham cortinas e sentidos nesta fricção entre o que há deles naquele Severino, o que há daquele Severino neles. Quando Bruno Parmera insiste em buscar – no Google – sua própria identidade, os resultados, longe de serem representativos para o ator, evocam a visão de nordeste tão imbricada na mente sudestina.

Bruno Parmera em "Estudo nº 1: Morte e Vida", do Grupo Magiluth / foto: Vitor Pessoa
Bruno Parmera em “Estudo nº 1: Morte e Vida”, do Grupo Magiluth / foto: Vitor Pessoa

E então, chega-se ao videoclipe do Michael Jackson do Canavial. Não é possível compreender o contexto preciso do vídeo: um trabalhador rural dança Billie Jean na empoeirada estrada que corta uma grande plantação. Um Severino? De onde veio este lavrador e onde fica a terra que hoje lavra? Na projeção, a tradução da letra da música. Para além da intenção original da composição, em Estudo nº 1 ela parece ecoar o abandono paterno; mas a criança não é meu filho.

Quando Parmera começa a dançar junto com o homem na tela, o palco é preenchido por uma beleza difícil de explicar. Em dado momento da coreografia, o intérprete veste figurino e adereços do Maracatu Rural, manifestação típica da Zona da Mata pernambucana. Ali, de algum modo, o ator evoca a complexidade que há em torno de uma identidade, simultaneamente singular e plural, habitando uma tensão entre tradição e invenção.

Em seus movimentos finais, Estudo nº 1 escancara sua própria dificuldade ao alinhavar, em um diálogo quase extenuante, o impasse contemporâneo no que diz respeito à imaginação e proposição de futuros. No entremear de ideias e discursos, aos poucos revela-se a lógica que sustenta a desigualdade, a miséria e suas tantas tragédias: a lógica do capital, que é a lógica da guerra, ofício de morte onde nem é preciso esperar / pela colheita: recebe-se / na hora mesma de semear.

O confronto é interrompido por um recurso ex machina: enquanto bilionários investem fortunas em escapismos e fetiches disfarçados de exploração espacial, um astronauta Severino cai do céu. Se é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, talvez a parte que nos cabe neste latifúndio seja narrar a nós mesmos e ao tempo que nos coube viver. Mas isso ainda diz pouco. Falar do pão, da pedra e da faca. E também da dor, da tristeza e da melancolia.

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ficha técnica
Estudo nº 1: Morte e Vida

criação e realização: Grupo Magiluth
direção: Luiz Fernando Marques
assistente de direção e direção musical: Rodrigo Mercadante
dramaturgia: Grupo Magiluth
elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral
produção: Grupo Magiluth e Amanda Dias Leite
produção local: Roberto Brandão