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a incrível realidade e a força da ficção

crítica de “A vida e a história de Madam C.J. Walker” (“Self Made”), minissérie produzida pela Netflix.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

[texto com spoilers]

Sarah Breedlove (1867–1919) foi a primeira filha nascida livre em uma família de escravizados — a sexta do casal Owen e Minerva Breedlove. Órfã desde os sete anos de idade, casou-se pela primeira vez aos catorze para fugir do cunhado abusivo. Aos dezoito anos, teve sua única filha, A’Lelia; aos vinte, torna-se viúva. Se casa novamente em 1894; divorcia-se em 1903.

É durante seu terceiro casamento, com Charles Joseph Walker, que Sarah adota o nome de seu marido e, criando sua própria empresa, passa a ser conhecida como Madam C.J. Walker. Seu feito está no Livro dos Recordes: a primeira mulher milionária por seu próprio esforço nos EUA. Madam começou vendendo produtos para o cabelo de mulheres negras produzidos por Annie Malone; posteriormente, passou a fabricar seus próprios e construiu um império, com fábricas e milhares de mulheres negras empregadas como vendedoras pelo país.

Em 2001, sua tataraneta A’Lelia Bundles publicou a trajetória de Madam no livro On Her Own Ground (No seu próprio chão, em tradução livre) — recentemente relançado como Self Made: Inspired by the life of Madam C.J Walker (Por si própria: Inspirado na vida de Madam C.J. Walker, em tradução livre), mudando seu título para o mesmo da minissérie protagonizada por Octavia Spencer produzida pela Netflix e baseada em sua pesquisa.

A introdução é necessária para que agora se faça uma distinção: A vida e a história de Madam C.J. Walker não é um relato puramente biográfico que se detenha a dados comprovados ou mesmo que faça jus à grandeza de Madam C.J. Walker — Bundles relata (link para entrevista em inglês) que sentiu falta, na minissérie, de uma ênfase maior ao engajamento político de sua tataravó: a jornalista afirma que, ao realizar sua primeira conferência nacional com suas vendedoras, Madam inspirou-se nas convenções da Associação Nacional de Mulheres de Cor (NACW, na sigla original), chegando a enviar telegramas para o presidente exigindo urgentemente que o linchamento se tornasse um crime federal.

Além de não lançar luz de uma forma mais ampla sobre tal questão, Bundles aponta para duas grandes ficcionalizações na minissérie: a narrativa de que A’Leila Walker (Tiffany Haddish) seria lésbica e a figura de Addie Munroe (Carmen Ejogo), inspirada em Annie Malone, construída como a grande antagonista da história; aqui, o roteiro não apenas se distancia da realidade como também desenha um certo maniqueísmo que parece se desfazer suavemente no último capítulo.

Na escolha de tornar A’Lelia uma mulher lésbica, surge um conflito entre ela e sua mãe que soa um tanto desnecessário. Há uma sugestão de que essa questão se resolve com a adoção de Mae Walker, para que o legado da família siga nas mãos das herdeiras. Na vida real, Mae é a filha única de A’Lelia, que passou por dois casamentos heterossexuais. A proximidade de A’Lelia com a comunidade queer do Harlem dos anos 1920 e 1930 pode ter sido a inspiração para as roteiristas — ela teve papel fundamental no apoio à cultura negra, sendo uma importante patrona artística.

É fundamental pontuar tais divergências entre fato e ficção, além de refletir acerca do que elas representam ou como reverberam na obra artística. Neste sentido, a sexualidade de A’Lelia tem menos impacto na condução da minissérie, trazendo apenas uma conciliação (que nem seria necessária se não houvesse este dado) entre ela e sua mãe um tempo depois de Madam saber de seu problema nos rins — o diagnóstico e essa espécie de memento mori, aliás, foi uma interessante escolha das roteiristas para a finalização da narrativa.

No entanto, a personagem de Addie Munroe, única fictícia dentro do núcleo principal dos acontecimentos de Madam C.J. Walker, é essencial para que a história se movimente. Além do fato de Malone e Madam terem sido apenas concorrentes na vida real, e não rivais tão ferrenhas, há um dado indispensável para a discussão proposta pela minissérie: a atriz que interpreta Munroe, Carmen Ejogo, é uma negra de pele clara (o que não corresponde à realidade de Malone). Tal escolha insere um dos debates centrais da obra: o colorismo.

Em Madam C.J. Walker, há uma definição muito bem estabelecida entre aliadas e inimigos: além de Munroe, uma outra mulher confronta a protagonista. Dora Larrie foi uma funcionária de Madam que se envolveu amorosamente com seu marido e, aparentemente, agiu com a intenção de roubar as fórmulas dos produtos para abrir sua própria empresa. Ela é interpretada por Sydney Morton, novamente, uma atriz negra de pele clara.

Também, quando C.J. propõe uma racialização da Gibson Girl, considerado o primeiro ideal de beleza feminina dos EUA, Madam se opõe. No diálogo imaginado por ela com a figura da Walker Girl — que representa um fenótipo específico dentro das tantas possibilidades da negritude — reverbera algo semelhante ao que ocorreu no episódio inicial quando, ao confrontar Munroe, aponta para o desejo das mulheres negras serem iguais à ela; menos negra do que Madam.

A competição construída pelo roteiro de Madam C.J. Walker, opõe, dessa forma, uma aceitação ampla da própria identidade — a partir da ideia de que um cabelo nunca é só um cabelo — à venda de um ideal projetado, tantas vezes inatingível; o que se personifica na personagem de Munroe.

Ainda que essa rivalidade — e a perseguição vilanesca de Munroe — esteja muito presente durante toda a narrativa, há elementos muito mais gritantes na minissérie. Primeiro, o próprio contexto é impactante; há menos de 100 anos, negros eram segregados nos EUA. Madam C.J. Walker está focada nas histórias vividas por esta mulher negra e de como ela movimenta as que estão ao seu redor.

Brancos são quase uma fantasmagoria, mas são eles, todos homens, que detém poder; notadamente, surgem em quatro momentos: quando a chegada de um C.J. totalmente embriagado estraga o negócio de Madam com o conselho da 10 Cents or Less, no acordo financeiro com o dono das farmácias Saunders, quando a protagonista conhece John Rockefeller e na morte de Sweetness (Bill Belamy), o primo — fictício — de Ramson (Kevin Carroll). É um importante lembrete da minissérie. Enquanto Madam estava em ascensão, o linchamento de pessoas negras ainda era comum nos EUA.

Neste contexto, a exígua possibilidade de uma mulher negra conseguir construir algo por si própria, como diz o título original de A vida e a história de Madam C.J. Walker, torna a narrativa um feito notável. Logo percebe-se que não se trata de uma empreendedora buscando seu sucesso individual à qualquer custo.

No episódio final, quando Madam encontra-se com seu vizinho — John Rockefeller, considerado o homem mais rico da história moderna — o breve diálogo entre eles evidencia essa diferença. Enquanto para Rockefeller seus empregados eram totalmente descartáveis, a ação de Madam logo após ouvir essas boas vindas à vizinhança é a de ceder às demandas de suas funcionárias — e ao real objetivo de sua empresa: ajudar outras mulheres.

Nesta sequência de cenas fica nítido um dos pontos principais do discurso construído pela minissérie: o entendimento de Madam sobre o poder da independência financeira para uma existência duplamente subalternizada como é a da mulher negra. Parafraseando Angela Davis, a compreensão de que o movimento dela, somado ao movimento das tantas que a acompanham e que acompanharão seu legado, pode mover com as estruturas; desestabilizar a base da pirâmide social.

A vida e a história de Madam C.J. Walker, de fato, nos apresenta uma Madam muito menos envolvida com associações e comitês políticos do que a história real nos mostra. No entanto, suas ações presentes na minissérie, dentro do contexto norte-americano segregacionista, com as chagas das plantations ainda tão abertas, podem ser lidas como revolucionárias dentro da ótica capitalista e colonial. É uma subversão das expectativas — até mesmo dentro de sua comunidade.

No primeiro encontro com as esposas dos participantes da Liga Nacional de Negócios Negros (NNBL, na sigla em inglês), elas relutam em apoiar Madam. Logo após, interrompe o discurso de Booker T. Washington (Roger Guenveur Smith), relevante liderança afro-americana da época, projetado nacionalmente após seu discurso de 1895 conhecido como Atlanta Compromise (Concessão de Atlanta, em tradução livre), onde defendeu que negros não lutassem contra a segregação.

Antes da interrupção, Washington está sendo ovacionado por seu público, cuja única mulher é Madam, até o momento onde evoca o nome da doutrina jurídica que sustentou leis segregacionistas: separados, mas iguais (separate, but equal). Silêncio. Ao encontrar-se com Madam após sua subida ao palco, vocifera sobre ela um misto de racismo e misoginia. É por isso que vocês devem ser mantidas em seus lugares, diz o homem que acreditava em elevar a raça negra nos Estados Unidos.

Ao escancarar os mecanismos do machismo existentes dentro da comunidade negra, A vida e a história de Madam C.J. Walker lança luz sobre o necessário entendimento interseccional de como as opressões atuam sobre indivíduos cujos marcadores sociais de raça, classe e gênero se sobrepõem (talvez, neste sentido, a homossexualidade de A’Lelia venha para somar a essa percepção). Na breve aparição da mãe de Munroe, ela diz a filha que o patrão a amaldiçoou com uma filha mulher. A maldição de ser, além de negro, mulher — mas ressalta que por ela ser de pele clara, é capaz de tudo.

C.J. não sabe lidar com o fato de sua mulher ser a dona do próprio negócio — seu pai, Cleophus (Garrett Morris), reproduz ideias patriarcais ao criticá-lo por isso. John Robinson (J. Alphonse Nicholson), primeiro marido de A’Lelia, sente-se diminuído por não ter mais espaço na empresa, ainda que pouco faça por merecer, acabando por trair a confiança da família Walker.

A vida e a história de Madam C.J. Walker nos apresenta uma Sarah já adulta, mas longe de ser a Madam bem-sucedida: em quatro episódios, a minissérie consegue conduzir de forma muito competente uma narrativa de grande densidade. Cabe destacar a trilha sonora, cuja contemporaneidade contrasta com o ambiente de início do século XX. Latashá, Janelle Monáe, Queen Latifah, Andreya Triana: a grande maioria das músicas é de mulheres negras, fazendo jus à visão de negócios de Madam C.J. Walker.

Há, também, uma citação direta à uma canção de Big Bill Broonzy em uma fala de Madam. Quando vê Dora e as demais vendedoras seguindo Munroe na entrada da igreja, ela diz, caminhando sozinha: if you’re white, you’re alright, if you’re brown, stick around, but if you’re black, get back (se você é branco, tudo bem, se é marrom, fique perto, mas se você é preto, vá embora). É mais um exemplo da utilização de referências que transbordam o tempo-espaço dos acontecimentos: a música Black, Brown and White foi lançada pelo cantor em 1951.

As ficcionalizações propostas pelo roteiro se justificam não apenas pelos conteúdos trazidos para o debate, mas também pela forma dinâmica de composição que elas permitem. Ainda que, evidentemente, os episódios componham um todo de uma história, cada um deles carrega consigo particularidades muito bem-vindas. Os dois primeiros são dirigido por Kasi Lemmons; os seguintes, por DeMane Davis. Nicole Jefferson Asher assina o roteiro do primeiro e do último; Janine Sherman Barrois, o segundo e Elle Johnson o terceiro.

Em cada episódio, há um espaço onde se constroem imagens oníricas ou metafóricas que circundam os acontecimentos. No primeiro, Madam enfrenta Munroe numa luta de boxe, em uma alusão à chamada luta do século entre Jack Johnson — primeiro pugilista negro a tornar-se campeão mundial dos pesos-pesados — e James J. Jeffries, que havia desistido da aposentadoria para enfrentá-lo. Jeffries tornou-se a Grande Esperança Branca; construiu-se, dentro de uma atmosfera extremamente racista, a expectativa de que ele conseguiria vencer Johnson — o que passou longe de acontecer. Madam começa a vencer enquanto Johnson consolida-se como grande campeão.

No segundo episódio, Madam já enxerga seu futuro de sucesso: mulheres dançam enquanto exibem seus produtos, homens abrem caminhos para suas ações. É como se a minissérie desse vida a seus sonhos, inserindo-os na realidade. No episódio seguinte, é a Walker Girl que conversa com Madam enquanto ela pensa sobre a peça publicitária de C.J.; depois, surge nas ruas de Nova Iorque, quase que contrapondo aquele ideal de feminilidade negra à pluralidade do real observado no Harlem.

No último, memórias surgem vertiginosamente junto à doença que levaria Madam à morte. Como nos demais episódios, essas abstrações dão indícios do pensamento e das ações futuras da protagonista. Assim, a consciência do próprio estado de saúde torna-se base dramatúrgica para uma série de atos de Madam, desde a conciliação com A’Leila e o sexo com C.J. até a revelação — fictícia — de que roubou a fórmula de Munroe.

Inicialmente, não há muita nitidez nas imagens; parecem dolorosas lembranças das plantations e do duro passado familiar. Ao final, ressignificam-se na visão dela ainda criança, sonhadora frente aos fogos. Sugerem-se muitos tempos: além da celebração na propriedade de Madam, cabe lembrar que a luta do século — sobreposta aos primeiros movimentos de uma jovem Sarah — ocorreu em um quatro de julho, dia da Independência Americana, assim como é possível que este seja o motivo dos fogos observados pela criança junto a seus pais. Dia da Independência.